O CASO TCHERNINHO
Na
Guiné-Bissau de hoje, a linha entre o poder político e a criminalidade
institucionalizada tornou-se irreconhecível. O recente “caso Tcherninho”,
tratado com frieza e cinismo pelo Presidente da República, não é um simples
episódio disciplinar, como nos querem fazer crer. É, na verdade, a exposição
pública da podridão interna de um regime que construiu o seu poder à margem da
Constituição, das Forças Armadas e da legalidade republicana.
Tcherninho
– também conhecido como Tcherno Bari – nunca foi militar de formação. Foi um
técnico ajudante, aprendiz do reputado Zé Bissau, especialista em ar
condicionado e de aparelhos electrónicos. Começou por limpar e encher os
aparelhos com gás nas residências de Úmaro Sissoco Embaló. Deste relacionamento
quase doméstico nasceu uma confiança pessoal que catapultaria Tcherninho da
condição de limpador de aparelhos de ar-condicionados para chefe de uma força
de segurança privada e extraconstitucional do Presidente da República.
Durante
a antepenúltima campanha presidencial, Tcherninho integrou o núcleo duro da
caravana eleitoral de Embaló. Usando o seu acesso privilegiado e capitalizando
a ausência de escrutínio, organizou entre jovens acompanhantes, militantes do
MADEM-G15 e “lumpens” urbanos, um grupo de segurança improvisado. Foi o embrião
de uma milícia presidencial cuja existência passaria despercebida ao país — mas
não ao círculo restrito do poder.
Após
a vitória de Embaló, essa força informal ganhou corpo. Jovens provenientes das
chamadas “bancadas” — grupos urbanos vulneráveis — foram recrutados e enviados
para formações paramilitares em países como Senegal, Nigéria, Gana,
Congo-Brazzaville, Venezuela, Rússia, Cuba e até Israel, onde operava um
especialista identificado como Dudik Hazam (“David”). Em Bissau, os quintais do
Palácio da República tornaram-se, sob a proteção de Tcherninho e os comandos de
Embaló, um verdadeiro centro de instrução paramilitar.
A esta força foram atribuídas missões de repressão política e terror de Estado: raptos, espancamentos, vigilância de opositores e operações de intimidação. Sem base legal, sem estatuto formal e fora do controlo das Forças Armadas, esta milícia presidencial tornou-se o braço armado de uma autocracia que governa pela força, pela chantagem e pelo medo.
Do narcoestado ao choque de gangues
Mas
como em todo império erguido sobre a lealdade cega e o dinheiro sujo, chegou a
hora da rutura interna. Com o crescimento exponencial das redes de tráfico de
droga e os milhões que começaram a circular no submundo do poder, os aliados
transformaram-se em concorrentes.
Tcherninho, sob orientação direta do israelita David, começou a demonstrar ambições próprias. Exigia maior controlo, autonomia operacional e parte dos lucros. Embaló, mais experiente e com mais tentáculos no aparelho do Estado, fingiu não ver, mas preparava o contra-ataque. Quando decidiu que Tcherninho se tornara um problema, acionou a máquina da repressão — não contra um desertor militar, como cinicamente declarou, mas contra o ex-braço direito que sabia demais.
O Presidente apresentou o caso como
um “assunto disciplinar”.
*
Mas como pode alguém que nunca pertenceu formalmente às Forças Armadas ser
acusado de deserção militar?
*
Que regulamento disciplinar se aplica a uma milícia presidencial informal
criada nas traseiras do Palácio da República?
*
Onde estão os decretos que instituíram tal força?
* Onde está o controlo do Parlamento, do Ministério da Defesa, da Justiça, da sociedade civil?
O verdadeiro problema: o Estado
guineense já não existe
A
realidade nua e crua é que a Guiné-Bissau está hoje sem Estado funcional. Não
há Parlamento legítimo. O Supremo Tribunal está capturado. As Forças Armadas
foram neutralizadas. E o poder real está nas mãos de milícias, mercenários
estrangeiros, e redes de narcodinheiro que financiam um regime pessoalista e
repressivo.
O caso Tcherninho não é uma exceção — é a regra do regime sissoquiano. Um sistema que promove e despromove com base na lealdade pessoal e no silêncio cúmplice. Onde os fiéis são elevados ao estatuto de “bestiais”, e os que se tornam incômodos, caem à categoria de “bestas” — descartados, humilhados, criminalizados, silenciados.
Conclusão: A verdade incomoda, mas
liberta
O
caso Tcherninho é um espelho cruel do país que nos querem impor: sem
instituições, sem legalidade, sem moral. Mas é também um aviso: quem alimenta
um monstro, cedo ou tarde, é devorado por ele.
É
hora de a sociedade guineense, os seus quadros patriotas, os partidos
democráticos, a juventude consciente, os militares de honra e a comunidade
internacional tomarem posição.
É
urgente desmontar este sistema de poder paralelo.
É
vital recuperar o controlo republicano das forças de segurança.
É
indispensável abrir um inquérito nacional e internacional sobre a criação e
atuação desta milícia presidencial.
É
inadiável devolver o país às suas instituições legítimas, antes que a
Guiné-Bissau sucumba por completo ao caos institucional.
Porque
quando o terror se torna norma, o silêncio torna-se cumplicidade.
Fonte: João M'Bitna
Bissau, 24 junho 2025