sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Reitor da UAC: “CABRAL PARA NÓS É MAIS QUE UM AGRONOMO! É UM CIENTISTA SOCIAL, ESTADISTA E ESTRATEGA MILITAR”

[ENTREVISTA] O Professor Doutor Fodé Abulai Mané, Reitor da Universidade Amílcar Cabral, disse que aos olhos da universidade que dirige, o fundador das nacionalidades guineenses e cabo-verdiana, Amílcar Lopes Cabral, é mais do que um agrónomo. É um cientista social, estadista e acima de tudo, um estratega militar. O docente universitário e investigador sénior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) fez estas constatações numa entrevista exclusiva concedida ao Jornal O Democrata, a Radiodifusão Portuguesa (RDP) e a Radiodifusão Nacional (RDN) com o propósito de abordar da iniciativa da “Semana Académica” bem como dos trabalhos desenvolvidos pela sua direcção para o funcionamento daquela instituição universitária.

A Semana Académica decorre de 17 a 23 do mês em curso nas instalações da Universidade Amílcar Cabral (UAC), em Bissau. A conferência académica vai coincidir com a abertura oficial do ano lectivo 2018/2019 naquela universidade, que conta apenas com três cursos superiores que são: Tecnologias de Informação e Comunicação, Ciências Agrárias e Ambientais e Humanidades.

UAC PROMOVE SEMANA ACADÉMICA PARA REFLETIR SOBRE O PENSAMENTO DE CABRAL


A iniciativa da realização da “Semana Académica”, de acordo com o reitor, visa proporcionar aos estudantes momentos de convívio académico e uma oportunidade para dialogar sobre as diferentes temáticas numa abordagem científica, mas principalmente nos domínios do ambiente e da tecnologia.

A universidade pretende levar a cabo um conjunto de atividades culturais, académicas e desportivas em simultâneo com assinaturas de acordos de parcerias com instituições internacionais. A Semana Académica conta com a participação dos representantes das redes e associações juvenis, estudantes do ensino superior público e privado entre outras instituições e entidades.

Fodé Abulai Mané explicou que a realização das atividades levadas a cabo no âmbito da semana insere-se no quadro da comemoração do dia da Universidade Amílcar Cabral, 20 de janeiro, que a nível nacional é considerado o dia dos heróis nacionais [data do assassinato de Amílcar Cabral]. Contudo, sustentou que em termos gerais a universidade tem sempre programado, no quadro da sua missão, juntar a formação teórica das salas de aulas, com alguns debates de ideias e uma interação com a comunidade.

“Para além de assinalar o dia, costuma-se fazer um conjunto de atividades académicas, culturais e desportivas. Para isso, este ano temos programadas atividades académicas de acordo com os serviços que oferecemos. Vamos iniciar o dia de 17 com a abertura da semana académica. Teremos uma parte cultural que será consagrada à apresentação de teatro de marionetas relacionada com a própria imagem e perfil de Amílcar Cabral e aquilo que ele pensou para o país. A peça teatral vai ser apresentada pelo Grupo dos Oprimidos, ligado ao Fórum de Paz, sob o tema Cabral i di nós – Cabral é nosso em tradução livre, para tentar mostrar que Amílcar não é de um partido ou de uma etnia”, observou.

Assegurou ainda que durante a semana vai se apresentar uma palestra intitulada “Ouvir Cabral e Pensar a Formação”, que permitirá uma análise profunda sobre o tipo de formação ou o tipo de homem ou quadro foi pensado pelo líder da guerra de libertação. Criticou a falta de uma política clara em termos de formação no país, tendo sublinhado que é preciso elaborar uma estratégia em termos de formação e não formar só por formar porque há pessoas disponíveis.

“Nós temos que pensar que tipo do desenvolvimento queremos e quais são os meios que temos. E os quadros têm que ser formados de acordo com as nossas necessidades e segundo o tipo do desenvolvimento que pretendemos. É nessa base que vai se promover o debate que vai ser lançado no dia 17, depois fazer as pessoas refletir sobre as ideias de Cabral e começar uma discussão mais técnica”, espelhou o reitor, para de seguida avançar que o dia 18, o segundo dia da semana, será consagrado ao debate sobre temas ligados à agricultura sustentável e ao desenvolvimento.

Mané disse que o terceiro dia da semana consagrar-se-á às influências de novas tecnologias, porque “há perigos relacionados com a utilização das novas tecnologias, por isso é necessário debater se vamos introduzir as novas tecnologias em tudo. Nesse caso, discutiremos sobre como conciliar as novas tecnologias com esses aspetos”. Adiantou neste particular que durante as cerimónias oficiais da comemoração do dia de patrono da universidade, serão assinados alguns acordos de cooperação com alguns parceiros, em particular com a rede das organizações que trabalham no domínio de segurança alimentar e nutricional bem como com uma associação de professores de língua inglesa que colabora com a Embaixada dos Estados Unidos da América.

O reitor disse que a universidade já está a responder aos desafios que a sociedade a lançou, mas também está a exigir que a sociedade venha ao seu encontro e que mostre que a riqueza do país está na sua juventude que é o futuro de qualquer país. Sublinhou que as jornadas académicas servem para trazer as comunidades à universidade e levá-la às comunidades e aproveitar a interação com as outras instituições de informação.

Questionado se a semana académica conta com a participação de alguns especialistas internacionais, em particular, dos países da áfrica lusofona, respondeu que nesta fase não conta com a participação de oradores provenientes do estrangeiro, porque pretende um debate interno onde os participantes vão mastigar todos os temas de uma forma detalhada para propor soluções para os diferentes problemas.

“Este aspeto da cooperação tem que ser definido. Na semana académica, vai ser definido quais são as cooperações prioritárias, porque há ofertas da cooperação inclusive em termos de cursos. Temos que ver se esses cursos são prioritários neste momento para a Guiné. Por exemplo, Temos uma oferta para abrir um curso de administração, mas no levantamento que vimos, constatamos que já existem muitas escolas a formar pessoas em administração e talvez o ideal seria a universidade tentar ajudar no aperfeiçoamento dessas pessoas”, notou.

Solicitado a debruçar-se sobre as estratégias definidas pela universidade para a divulgação de ideias de Amílcar Cabral, explicou que a previsão é criar uma “Cátedra Amílcar Cabral”. Acrescentou que a “Cátedra Amílcar Cabral”, mais do que divulgar, também será uma Cátedra de estudos e de chamada de atenção e da promoção da própria imagem, mas de forma académica.

“Infelizmente aqui não temos, mas já há uma ‘Cátedra Amílcar Cabral’ numa universidade da Venezuela. Essa universidade tem uma ‘Cátedra Amílcar Cabral’ ligado à agronomia, baseada nos trabalhos de conclusão de curso de Cabral há 60 anos, sobre a produção de beterraba e outros tubérculos que podem ser transformados em açúcar”., observou o reitor, que entretanto, defendeu que “Cabral para nós é mais do que um agrónomo! É um cientista social, um estadista e estratega militar, então a Cátedra que vamos criar é para ver essas diferentes vertentes de Amílcar Cabral”.

REITOR: UNIVERSIDADE AMÍLCAR CABRAL SENTE MUITO POUCO A PRESENÇA DO ESTADO

Segundo Fode Mané, a Universidade está em condições de implementar a sua visão ampla, mas ao mesmo tempo deixa claro que a aplicação dessa visão não poder ser imediata, pelo menos a curto termo, mas prefere que seja de forma gradual. Neste sentido, aponta que a primeira tarefa tem que ser a visão de uma Universidade Pública para dar resposta às necessidades do Estado e do país, contribuir na definição das necessidades, na projeção e formar as pessoas em função desses planos ou estratégias dessas visões a longo prazo, servindo-se também de medida às outras Universidades existentes no país, em termos de equivalência, uniformização e resultados.

O Reitor da UAC disse na mesma entrevista que a Universidade Amílcar Cabral sente muito pouco a presença do Estado, porque a grande prioridade do país era o Ensino Básico e a Alfabetização, e isso inviabilizou um pouco a necessidade de se investir mais no ensino superior. Tanto os parceiros como o próprio governo descuraram-se um pouco em relação àquilo devia ser o Ensino Superior e esta falha refletiu-se na organização do Ensino Superior e, consequentemente, isto resultou na falta do Estatuto da Carreira Docente Universitário, enquanto os países da sub-região para além de terem mais de dois ou três universidades públicos ou institutos públicos têm ainda as academias de ciência.

O investigador guineense chamou atenção por isso que se o país continuar a não ter um grupo de pessoas de têm a qualidade (professores doutores) que estão a fazer a carreia, não se pode fazer uma academia de ciência e academia tem contribuído para fazer com que as pessoas de letra e cultura se elevem, portanto para incentivar também as pessoas a investigação e a contribuírem de outras formas para a sociedade, não só a nível político.

Infelizmente, hoje na Guiné-Bissau, como aconteceu também noutros países, são heróis apenas as pessoas que se destacaram a nível político. Mas a nível da ciência e investigação também se contribui. E a Universidade pode servir de embrião para isso.

“Para nós, na lógica e na missão da Universidade Amílcar Cabral, também temos a consciência de que temos um papel que não é apenas dar formação, mas também dar rumo à investigação, à carreia académica e à cultura em geral. Por isso é que candidatamo-nos para em 2020 organizarmos uma conferência sobre o Crioulo, que já vai na sua sexta edição. As cinco anteriores foram organizadas todas fora da Guiné-Bissau”.

“Imagine uma conferência sobre o Crioulo da Guiné-Bissau que não é organizada no país porque não existe estrutura para acolhê-la ou interesse em estudá-la”, lamenta, justificando que a UAC decidiu candidatar-se para mostrar ao Estado que quer e pode também fazer e que é necessário mostrar confiança do Estado da Guiné-Bissau. Ou seja, o Estado já deu e falta os quadros do país darem a sua contribuição para que o próprio Estado possa saber que é insuficiente àquilo que deu. Reforçando essa ideia, lembra que o Estado deu instalações e autonomia para que a universidade possa ir procurar ela mesma os seus apoios, porque reconhece que ultimamente não interfere muito na política educativa da UAC.

“Porém também precisamos ir alertar as pessoas e as jornadas que organizamos servem também de alerta”.

“Infelizmente não recebemos até agora a ajuda financeira que o Estado deveria dar. Temos problemas relacionados com o pagamento de salários aos professores e a outros funcionários, as telecomunicações que estão cortadas há duas semanas, do parque e de equipamentos. Temos um conjunto de equipamentos incluindo um servidor que não ligamos faz muito tempo, mas é um equipamento que tem que trabalhar 24 horas non stop e não temos a autonomia em termos de energia”, notou, lembrando que hoje em dia não há parceiros para as universidades.

Contudo, realça a contribuição da cooperação portuguesa que tem apoiado à Faculdade de Direito de Bissau e a contribuição de Cuba para com a Faculdade de Medicina. Em relação à UEMOA, Fode Mané avança que esta instituição Monetária Oeste Africana tem dado também a sua contribuição, mas dentro de uma política comum para todos os países. Apenas a Guiné-Bissau não pode receber esses apoios porque está atrasada, apesar de estar inserida no seio de países com uma tradição de mais de cinquenta anos de Ensino Superior, fato que limita grandemente a universidade Amílcar Cabral da Guiné-Bissau e a impede de estar no mesmo nível com as universidades de outros países e a UEMOA. Esta organização tem também as suas limitações. Neste quadro, o país não consegue concorrer para poder beneficiar de apoios.

“Por exemplo, para equipar a nossa biblioteca vamos ter que comprar um conjunto de livros, todos em francês. Quando apresentarmos as necessidades em relação a algumas traduções e publicações, não há resposta e nós temos a necessidade neste momento de publicar muito, traduzir e incrementar a língua portuguesa, não por mero capricho de patriotismo ou nacionalismo, mas porque justamente é a nossa língua. E quando deixamos a língua crioula ou a portuguesa, deixamos de ser guineenses e é neste sentido que a universidade entra para ajudar a preservar e alertar a sociedade”, referiu.

Fode Mané encara por isso 2019 como ano de consolidar o que a universidade tem, lançar novos cursos e levar a universidade a cumprir a sua missão, ajudando, por exemplo, na formação de animadores cívicos na sensibilização de potenciais eleitores guineenses, porque as universidades são componentes da sociedade civil muito importantes, ou seja, não estão fora dessa esfera e é até de componentes mais transformadoras. Para ser específico, o investigador guineense traz exemplo do Senegal, França, Portugal e dos países de outras partes do mundo, onde todos os grandes movimentos transformadores partem das universidades. “Nós não estamos ainda em condições de atingir este nível, mas temos estado a trabalhar e a preparar uma massa crítica”.

Defende, no entanto, que a universidade tem que ser encarada ou vista como o centro de debate de ideias, isto é, não deve ter receio de promover debates de ideias, por isso avança que a ideia central que vai ser lançada nas jornadas será a de igualdade de oportunidades para todos ( entre homens e mulheres), tanto nos cursos quanto a meios financeiros, bem como em termos de qualidade. Na visão de Fode Mané, tem que existir uma ligação intrínseca com as opções políticas de desenvolvimento do país, porque a universidade “não pode ser um mundo totalmente a parte das opções de desenvolvimento”.

“Repara que a interferência do governo pode ser negativa quando impede a universidade de desenvolver os seus planos ou programação e pode ser positiva quando o governo vai buscar as capacidades, as visões dos trabalhos feitos para orientar a governação. Para um governo que tem a noção de que governar é ciência e programação, não existe problemas de relacionamento com a universidade, mas quando se entende que governar é a sorte, claro que a universidade se incomoda e é aí que entra a nossa capacidade de sermos objetivos e mostrar o que é recomendável. O que a universidade está a fazer não é para agradar alguém”, insistiu, indicando que a universidade estará aberta a todos os quadros que revelarem a sua capacidade académica, mas alerta ao mesmo tempo que não será admitido que se faça política partidária na UAC ou deixar que se aproveite dela para tirar vantagens políticas. Reconhece que há risco de este fenómeno afetar a universidade, porque em tempos as escolas, pequenas empresas, institutos públicos, etc. serviram em algum tempo ou em algumas ocasiões para financiar atividades políticas e agendas individuais ou para pagar favores de quem nomeou uma determinada figura para exercer uma determinada função.

“Felizmente, desde que assumimos a diretoria não nos defrontamos com esta situação, porque talvez não tenhamos dinheiro, mas é uma realidade”, sublinhou, enfatizando que os critérios para admissão serão com base na igualdade de oportunidades e capacidade.

Revelou ainda que a universidade decidiu avançar com três cursos, tendo em consideração o seu plano estratégico de formação feito em 2012 com o apoio da União Económica Monetária Oeste Africana (UEMOA), onde se inventariaram vinte e duas fileiras prioritárias, atendendo às especificidades próprias da Guiné-Bissau.

“Iniciou-se com curso de tecnologias de informação e comunicação, porque é transversal e segundo porque houve disponibilidade de meios da parte da UEMOA. Como a nossa economia é basicamente assente na agricultura e o meio ambiente, planificou-se e houve universidades disponíveis para apoiar tecnicamente nesta área. O curso das humanidades foi criado para banir o fenómeno de todos os alunos irem para terceiro, quarto ou quinto grupo porque têm medo das disciplinas práticas nomeadamente, Matemática, Física e Química. O curso das humanidades que temos dará a possiblidade de especialização em Sociologia, Antropologia, História, Ciências Políticas e o indivíduo que sai da universidade com esta formação poderá ir para a administração pública, trabalhar no setor privado, fazer jornalismo, exercer a docência etc. porque tem uma preparação ampla e muito mais sustentável. Se notarem, o que temos feito foi mais uma abertura de áreas, não de cursos propriamente dito”, referiu.

Sustentou ainda que uma das maiores apostas da UAC será trabalhar para que os diplomas que sairem daquela instituição superior pública de ensino sejam reconhecidos a nível externo.

Lamentou, contudo, o fato de a Universidade não possuir ainda uma base de dados de pessoas vocacionadas para lecionar na academia. Segundo Fode Mané, uma parceria com outras instituições será fundamental para a concretização desses planos, por isso é que a universidade resumiu as suas apostas à formação, à ligação com a comunidade e cooperação, “enquanto pilares importantes”.



Por: Assana Sambú/Filomeno Sambú
odemocratagb.com