terça-feira, 24 de novembro de 2015

COMO POLITIZAR UMA TRAGÉDIA


Sam Kriss – Jacobin, Londres - Opera Mundi

IN PG
 
A luta é contra os que atacam cafés e casas de espetáculo, os que bombardeiam cidades com caças e com seus próprios corpos, os que abandonam refugiados para fora de suas fronteiras e aqueles que os obrigam a deixar sua terra
 
Se escrever poesia após Auschwitz é barbárie, escrever reflexões em forma de artigo após os ataques em Paris também é uma barbárie. Não politize; não use o assassinato em massa para obter pontos retóricos contra o adversário, não pragueje com je te l'avais bien dit, ("eu bem que te avisei"), não brinque de cabo de guerra com os cadáveres, não aja como se os fatos dissessem respeito a você mesmo, não aja como se fosse uma questão de política.
 
Na verdade, isto tudo é bastante estranho: a morte é sempre política, e não há nada mais político do que um ataque terrorista. Estes eventos acontecem por razões políticas e têm consequências políticas; ter uma opinião é algo bom, embora frustrante, em tempos de paz, mas é absolutamente essencial em tempos de crise.
 
No entanto... Surge um sentimento de repulsa assim que as pessoas comentam sobre o fechamento sem precedentes das fronteiras francesas, afirmando que nada disso teria acontecido se a medida tivesse sido tomada antes; quando começam a resmungar sobre a ameaça global do Islã ou sobre a presença dos estrangeiros; quando presunçosamente afirmam que a legislação antiarmas deixou a população indefesa.
Esta tendência não está limitada à direita: há muitos que se dizem de esquerda e que também tratam do massacre como um palco propício à encenação de seus autos de moralidade. E se os agressores fossem brancos? Não estaríamos todos falando sobre saúde mental? Você sabia que não muçulmanos também cometem atrocidades? Por que você se importa com isto, e não com todas as outras tragédias que estão ocorrendo no mundo? Você não consegue perceber que todos estes cadáveres existem apenas para provar que eu estava certo desde o princípio?
 
Normalmente, o dever de não opinar seria aplicável apenas a um pequeno setor da população, mas nos últimos anos estivemos todos envolvidos. A maioria destas participações acontece na internet, e parece absoluta e inteiramente errado prognosticar solenemente o futuro de centenas de catástrofes pessoais nas mesmas plataformas e da mesma forma como se fala sobre os programas de TV e partidas de futebol.
Boa parte disso tem a ver com as demandas do próprio meio: você se sente constantemente encorajado a dar sua opinião e participar da conversa, a preencher constantemente caixinhas brancas com palavras, já que agora o que você pensa sobre qualquer assunto se tornou extremamente importante. Antes mesmo de você perceber, no ímpeto de dar sua opinião e participar da conversa, já está pisando sobre os mortos. Rabiscamos nossas ideias com sangue. Expressar qualquer coisa que não pesar é monstruoso.
 
No entanto, veja só o que está sendo dito. Na noite do ataque, o presidente francês François Hollande esteve do lado de fora da casa de shows Bataclan, onde dezenas morreram, para declarar: "vamos lutar, e a luta será impiedosa". Haverá mais guerra, mais mortes e tragédias.
As emissoras de TV estão levando ao ar especialistas que insistem na ideia de que a culpa é dos migrantes e estrangeiros, como se os refugiados levassem consigo a violência da qual fugiram. Mais repressão, mais crueldade, mais pogroms. Ataques terroristas, como todos sabemos, são levados a cabo com o intento de colocar as pessoas umas contra as outras e intensificar a violência do Estado, e é isto o que está ocorrendo: a população está dividida e o Estado anuncia sua determinação em agir com violência.
Isto já é politização da tragédia, e falar abertamente contra esta situação é apenas outra forma de politização: será ela inaceitável?
 
No dia anterior aos ataques em Paris, dois homens-bomba se explodiram em Bourj el-Barajneh, um subúrbio predominantemente xiita de Beirute, matando 43 pessoas inocentes que tocavam normalmente suas vidas. Agências de notícias como a Reuters noticiaram um ataque contra um "reduto do Hezbollah".
A humanidade das vítimas desapareceu, elas foram brutalmente reduzidas a um partido político que grande parte delas sequer apoia. Não foram tratadas como pessoas, mas sim como um partido, o Hezbollah, como se o que tivesse sido atacado fosse uma fortaleza armada, e não um bairro repleto de famílias. Muitas pessoas manifestaram muito claramente seu horror diante disto. Mas fazê-lo também foi uma forma de politizar a tragédia: isto também era inaceitável?
 
Quando honestamente mobilizada, a ordem de que não se politize uma morte significa não torná-la parte de outra coisa: ela não diz respeito ao tema com o qual você sempre se importou, não diz respeito a você. Fazer isso é fazer um certo tipo de política. Mas há outro. Insistir na humanidade das vítimas é também um ato político que continuará sendo necessário enquanto a tragédia for transformada em conflito civilizacional ou em desculpa para vitimar os que já são vítimas.
Há a politização que se aproveita da morte para atingir objetivos políticos limitados, e há a politização que recusa qualquer texto padrão pré-determinado a não ser o da libertação. Este último tipo insiste na natureza política da tragédia não para capitalizá-la em prol de uma ou outra narrativa, ou para impor um filtro de direita ou de esquerda sobre as imagens da carnificina, mas porque a política é a saída para tudo isto.
 
A atrocidade demanda solidariedade. Compaixão absoluta pelas vítimas; por todas as vítimas. Insistir em ter uma opinião, não o desdém de quem acreditava estar certo desde o início, mas solidariedade irresoluta diante da devastação. Lutar contra os que atacam cafés e casas de espetáculo, contra os que bombardeiam cidades com caças e com seus próprios corpos, contra os que abandonam refugiados no frio para fora de suas fronteiras e contra aqueles que os obrigam a deixar sua terra. Lutar: a luta comum de todos os que sofrem, contra o sofrimento.
 
Tradução: Henrique Mendes - Artigo original publicado no site da revista norte-americana Jacobin - Foto Efe