A obra prometia polémica e esta, de facto, não falta. Onésimo Silveira Uma Vida, Um Mar de Histórias, o último livro de José Vicente Lopes, já aí está para agitar consciências e discussões. Uma obra que é uma viagem pelas memórias e pela vida do primeiro presidente eleito da câmara de São Vicente, desde a infância até à actualidade. 420 páginas da História e de histórias do homem, do político, do romancista, do poeta, do ensaísta, do combatente, do diplomata, do controverso Onésimo Silveira.
É fácil pôr os cabo-verdianos a discutir de forma extremada. Basta pegar no tema do assassínio de Amílcar Cabral. Neste livro, em formato entrevista, Onésimo Silveira deita a sua acha para a fogueira e afirma que Aristides Pereira foi o responsável pela morte do fundador do PAIGC. Porquê? Porque era ele o responsável pela segurança.
“Havia de facto um problema de segurança e nisso o Aristides era o principal responsável. Ele é que era o responsável pela segurança. Mas, isso não impediu que ele viesse para Cabo Verde e se tornasse presidente da República. Não está no meu feitio julgar ou punir, mas sim analisar e dizer as coisas com frontalidade. Vim a saber depois que eles tinham recebido sinais premonitórios do que estava em marcha, de muita gente em Conacry. Os cubanos também estavam por dentro”.
Onésimo Silveira, que na altura já tinha rompido com o PAIGC, esteve em Conacry nas cerimónias fúnebres de Cabral e recorda um episódio que considera burlesco e surrealista. “Lá [em Conacry] havia uma casa onde estavam os mutilados de guerra e quando souberam que Cabral tinha sido morto, indivíduos sem pernas e sem braços, aos gritos, davam saltos de contentamento: ‘Cabral mori, a nu liberta!’. A cena desses indivíduos a pularem de contentamento dá ideia dos recalcamentos criados pela luta. Mas atesta também o nível de contradições que o PAIGC já tinha gerado no seu interior”.
Silveira recorda ainda uma conversa com Sekou Touré, também no funeral de Cabral, em que o presidente da Guiné-Conacry considera que o PAIGC cometeu erros graves. “Na lógica dele devia haver dois partidos, um da independência da Guiné e outro da independência de Cabo Verde. Segundo ele, a divisão entre guineenses e cabo-verdianos tinha minado o partido por dentro. Fiquei também com a sensação que o Sekou Touré não derramou uma lágrima pela morte de Cabral”.
Aristides Pereira é também apontado como responsável pelo não regresso de Onésimo Silveira ao PAICV, o que esteve quase a acontecer já no fim do partido único. Segundo Silveira, o problema é que havia várias correntes dentro do PAICV, “uma que não queria nem ouvir falar do Onésimo Silveira e outra [de Pedro Pires e Silvino da Luz] que achava que eu poderia ter um papel na construção dos pilares de Cabo Verde. Na outra corrente, aqueles que não queriam nada comigo, estava o Aristides Pereira. Não sei porquê o Aristides sempre teve uma reserva visceral contra mim. O Aristides era daqueles que dizia que era preciso cortar as rédeas ao Onésimo Silveira”.
Ainda sobre o antigo presidente da República cabo-verdiano, Onésimo Silveira afirma que nunca teve uma ideia concreta como personalidade política. “O Aristides, para mim, tinha uma dimensão institucional, instrumental, mas não tinha uma dimensão política nem filosófica. Não era um pensador, era seguidor. De intelectual não tinha mesmo nada. Ele ficou na história como o político africano do consenso, mas o consenso é inimigo do compromisso. Devo realçar, contudo, que sempre que ia a Conacry ele tratava-me bem. Por isso surpreendeu-me a atitude em relação a mim depois da independência. Várias vezes lhe levaram a proposta para eu voltar ao partido, mas ele vetava sempre”.
A abertura política é considerada uma coisa extraordinária e a campanha de 91 recordada como um momento de forte empenho por parte de Onésimo Silveira. “Mas era mais uma campanha a favor da democracia do que a favor de outro partido. Pressupunha uma oposição ao PAICV. Mais nada. Eu estava sim a ajudar a empurrar o PAICV para fora do poder”.
Uma década depois, o regresso ao poder do PAICV merece uma análise curiosa por parte de Onésimo Silveira. “O MpD trouxe não só a ideia de modernidade, como da modernidade das instituições, que o povo, na sua maioria conservadora, não teria aceitado com agrado numa situação normal. A primeira vitória do MpD e a segunda acontecem num quadro de absoluta anormalidade política, num país com os nossos baixos níveis de conhecimento. Diante de um novo quadro, uma vez mais de ruptura, a balança do povo pendeu para o conservadorismo e quem o podia representar só podia ser o PAICV. Ao contrário do MpD, na altura, o PAICV voltava a aparecer como um partido de gente madura, responsável, capaz de devolver a tranquilidade e a normalidade institucional a Cabo Verde”.
A regionalização não falta, aliás, vai aparecendo transversalmente por todo o livro. Onésimo Silveira defende a ilha-região e que deve ser uma regionalização definida pela região e não imposta a partir do centro. “Os governantes tratam São Vicente como uma entidade periférica. Não há uma maneira de resolverem os problemas, a solução dos nossos problemas é emperrada na capital. E gostem ou não eu tenho de combater o centralismo que tomou conta da politica em Cabo Verde, em que a Praia em concreto, enquanto centro de poder, procura o tempo todo dispor dos destinos das outras ilhas. Tenham paciência, é hegemonismo que não cabe no figurino democrático. A regionalização é o único antídoto ao hegemonismo e ao totalitarismo que nos divide e ameaça”.
Onésimo Silveira Uma Vida, Um Mar de Histórias é um livro por onde passa não só a história do narrador como a própria história de Cabo Verde e de outras latitudes. Uma obra onde a vida do protagonista se cruza com a de outros vultos da cena nacional e internacional. Lê-se num instante.