domingo, 17 de julho de 2016

Crônica: A VACA E O BURRO

Jorge Otinta_colunista
Ninguém, mas ninguém em sã consciência há-de desacreditar nesta história que, entretanto, só será contada no final do texto em causa. Ainda que isto pareça espantar muitas das almas incrédulas.

O humor doce, o andar ritmado feito ao som do ñañero, os buracos de balas disparados ao longo do fatídico 7 de Junho parecem vergalhões retorcidos que, aparentemente, pendem sob o teto de um dos prédios a construir na Chapa de Bissau.
A vida, tida tal como ela é, está a ir-se como uma velocidade tamanha que funcionam como nervos que se movem numa fratura exposta quando nós nos machucamos quer por descuido quer por brutalidade que nós é peculiar. E, em suma, muito familiar.

Além disso, as vozes que ecoam sobre o céu citadino de Bissau com estrondos de barulhos que atrapalham nosso sono mexem com estruturas outras que, em bulícios típicos da nossa cidade, perpassam pelos contornos estonteantes das ruas e ruelas da cidade.
1. Sete dos sonhos noturnos
1998 abortou o sonho de um país que caminhava finalmente para o desenvolvimento. Acabou, assim, por criar fantasmagorias no imaginário social, apesar de intervir no processo da nova configuração social por que passou o nosso país.

A beleza da cidade fina, elegante e exuberante deu lugar a uma cidade feia, suja em que o cenário de vida entre ruínas e descasos, destronam a utopia entre as curvas no deserto de ideias e de pensamento.

Deserto de sonhos no horizonte da desesperança.

É assim que nós jovens fazemos amor, serpenteiando-nos entre as flores do jardim da Praça dos Heróis Nacionais e as folhas das mampufas do atual Parque de NBatonha.
Gostaria de todos nós nos sentíssemos à vontade para experimentarmos o novo vocabulário do isolamento circulando pelos entornos do Parque de forma espetacular e sensual.
2. Em ruínas
Estou mais interessado é em ver o progresso da vida monótona que teimosamente levamos que, a bem da verdade, nem vida é, por nem começar com o epíteto de sobrevida.
Por isso, procuro incessantemente uma espécie de progresso de vida que parte de um equilíbrio e sobriedade humanas para atingir o terreno baldio da harmonia de um outro terreno que circunda pelos buracos de bala nas paredes do 7 de Junho logo ali ni canal de 12 de Abril.

12 de Agosto, 12 de Outubro, 12 de Maio é tudo a mesma audiência da fatalidade. Vidas a esvaírem-se, esperanças a arrefecerem-se. Tudo ermo. Tudo parado.
E o silencia sisudo do avarento continua a fustigar-nos a alma. Show da incompetência. Show da mediocridade.
3. A utopia às avessas
O grande arquitecto do universo, Deus, seu nome há-de proteger-nos desta sinfonia da incompetência e da corrupção.

Sociedade de malandros, os verdadeiros discípulos da máfia. E a máscara que usavam, vai cair?

Ah, quase que ia-me esquecendo, há muito que já não se acredita nos homens daqui. Somente eles, ingenuamente, acreditam que nós acreditamos neles. Nesse refrão de fome que cantamos todos os dias não há lugar para a utopia libertária. Só para o amordaçamento do direito da palavra. Sim senhor – eis a palavra de ordem!
O avesso da utopia, meu caro leitor d’O Democrata, tem formas curvilíneas e agarradas à natureza, ao mar, e aos minérios do nosso solo pátrio.

Não há chave potente que se possa abrir esta porta portentosa para o futuro.
Há um elo entre vontades malandras distantes e vontades cínicas não distantes. Tudo em função de um futuro calcado na ordem geométrica de um projeto concebido no lodo – aquilo que em bom kriol chamamos de pot-pot.
Mãos na merda, e pés no pot-pot!
É chocante ver (e sentir isso no estômago) a fome que a todos irmana. Parece que estamos em ruína total. O país deteriorou-se.
Existe vida na sobrevida penosa?

Há uma vida parada ali à espera que façamos algo por ela. Mas o que podemos fazer se esta mesma vida (alma queria eu dizer) nos engana a cada dia que passa? A cada sonho que temos? A cada esperança que alimentamos?

Os jardins da cidade estão sujas não obstante o verde da chuva que a colora gentilmente. Quando sento-me no centro da cidade de Bissau vejo as moças a balançarem suas ancas sensuais. E isto me faz esquecer as agruras do quotidiano.
4. A história
Conta-se que dois amigos, a vaca e o burro, saíram de manhã para dar um passeio no Estádio Nacional 24 de Setembro. Trocaram conversas sobre a noite anterior, sobre os planos para o futuro. E por falar em futuro, a vaca disse ao amigo:
– Caro amigo Burro apetece-me ir para a Índia…
O burro, atónito, quis saber as razões que levam à amiga a empreender a emigração.
– Mas que ideia maluca é esta. Fazer o quê na Índia? Conheces alguém por lá, ou tens algum membro da tua família naquela terra distante?
– Não, mas é que já me cansei daqui. Lá pelo menos sou respeitado, adorado como se fosse um Deus. Aqui não, matam-me a toda a hora nas esmolas e nos toca-choros. Não me preservam a vida, e portanto a dignidade.
– Só por isso?
– Julgas isto pouco? Viver num país onde tens o direito à vida, e sendo ela sagrada, tu exerces portanto o direito à felicidade.
Sem esperar por mais explicações, retorquiu-lhe o burro.
– Desejo-te boa sorte. Por mim, valha-me aqui, pois somente aqui posso vir a ocupar um lugar cimeiro na República. Aqui é o único país onde burro manda. E, claro, eu quero mandar em toda a nação.
Contrapõe-se, como de costume, a presença fantasmagórica de uma bela mulher solitária, que passeia pelo Parque de NBatonha, no Chão de Pepel, com seus jardineiros a podar arbustos com os quais fabricamos as mampufas com as quais fazemos tetos, entre outras utilidades. Circulo por entre prédios arruinados comprados a negócios escusos desta nossa Praça de Bissau. Vejo velhinhos em suas caminhadas pelo Centro da cidade e por ruas de Bissau.
Trata-se da paralisia estranha. Esta forma, sui generis, de ser guineense. Percebe-se que a guineidade fica ela congelada no tempo, ao mesmo tempo em que flutuando sobre espelhos d’água – os quais sempre estorricados -, está a ser desafiada por movimentos da negação da negação. E a população, já indiferente de si, encolhe os ombros. Acreditar em vãs promessas? Recorda-se, com desdém, da semelhança actual da cena que está patente nos seus olhos, com os vestígios da brutalidade mas, sobretudo, da mediucridade da politiquice nacional.

Dou conta das cadeiras empilhadas – e talvez em estado de putrefacção – no Mão de Timba.
Para não incomodar o público guineense, ponho-me a contemplar os objetos plásticos deitados ao chão num espetáculo da destruição. Às vezes, de longe, vejo flutuar sob céus estranhos as coisas imperceptíveis. E, assim, eu me pergunto: as sentinelas vão reagir de novo?

E, quiçá, terão deixado descer algumas naves voadoras cheios de cinzas a pairar sobre o chão que o comandante dos comandantes libertou bravamente, depois de se ter embrenhado por anos a fio pelas matas de todos os pontos cardeais deste sacro solo.
Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.

Por: Jorge Otinta, poeta, escritor e crítico literário guineense
odemocratagb.com