segunda-feira, 18 de julho de 2016

Opinião: JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA É EXPRESSÃO DE UM SISTEMA PARTIDÁRIO COMBALIDO – ACÓRDÃO 04/2016

Timóteo Saba M’bunde, Mestre em Ciência Política
Há pouco mais de um ano os movimentos da política guineense têm sido norteados por acórdãos judiciais que decidiram matérias políticas que não deviam sequer sair do fórum político, quer do plano partidário como dos níveis político-institucionais mais abrangentes dos poderes executivo e legislativo. O deslocamento de esfera de decisão de questões que normalmente caberiam aos poderes executivo e legislativo para o âmbito judiciário se caracteriza como a judicialização da política. Vários são os motivos que podem explicar a emergência desse fenômeno. No caso da Guiné-Bissau, que é o que nos interessa neste momento, o recurso às instâncias da justiça como método para a resolução dos problemas de natureza política nos últimos dois anos é reflexo de flagrante fragilidade do sistema partidário guineense.
O Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) é a maior expressão de atrofiamento do sistema partidário em análise. Tomado por fricções e dissonâncias longe de serem inéditas e incomuns ao partido hegemônico do país, este não teve capacidade de curar as próprias feridas no fórum partidário próprio como pouquíssimas vezes teve, possibilitando, deste modo, com que a crise excedesse os limites e fosse repousar no fórum judicial. Facto curioso e instigante é que o recurso à justiça foi concebido por facções desavindas como mecanismo ideal de resolução dos imbróglios partidários que precederam o início da corrente legislatura obstruída e viabilizada por entre decretos presidenciais e acórdãos do tribunal superior da justiça.
A radicalização das posições entre a facção dissidente e vigente direção do PAIGC revela que o partido apenas tem funcionado como instrumento eleitoral e não como uma entidade eficaz de gestão política e atenuação de conflitos que são naturais e atrelados à política, mormente à política partidária.
Os 15 dissidentes eram considerados o principal problema da crise, em outro momento as acusações pendiam muito mais sobre a figura do presidente do PAIGC, e ao longo de toda a crise o Presidente da República era/é caracterizado como o factor desse crítico cenário político. Por outro lado, o Partido de Renovação Social (PRS) é enquadrado como o sustentáculo dessas incessantes dissonâncias, tendo sido a agremiação que deu condição para que o país tivesse actual governo cuja constitucionalidade o PAIGC questiona(va) na superior corte de justiça.
É importante não perder de vista de que ao longo de todo esse capítulo de inquietações políticas o partido de milho e arroz mostrou-se uma agremiação atabalhoada, tendo tomando posições não menos incongruentes, movidas mais pela sede do poder e que facilmente desarmam o próprio discurso romântico cujo slogan era “disponibilidade e flexibilidade em participar em qualquer governo para viabilizar a necessária governabilidade”. Razoável coerência do partido que pudesse fazer transparecer a linha ideológica orientadora da agremiação se sucumbiu em prol de um demasiado pragmatismo político.
Penso que a variável independente que costurou este cenário, a qual merece um olhar mais sofisticado, é a debilidade do sistema partidário, tendo sido o principal factor para a condução dessa matéria do fórum político para o judicial. Entre outras formas, a fragilidade de um sistema partidário se revela quando os partidos são vulneráveis a disputas personalistas e de facções, sendo estes instrumentalizados, em muitos casos à revelia de seus estatutos, em conformidade com interesses particulares e grupais de determinadas figuras da organização. Um sistema partidário combalido é movido por orientações políticas circunstanciais, forjadas por membros mais influentes e carismáticos, sem se respaldar em orientações ideológicas e estratégicas baseadas em programas partidários de médio e longo prazos. Associado a tudo isso, um sistema partidário enfraquecido também se revela pela ausência de mecanismos e capacidade de gestão de conflitos que surgem nos partidos.
Penso que devido à ausência de capacidade e vontade política dos agentes para ultrapassar os conflitos e face ao extremar dos mesmos, comprometendo o presente e o futuro do país, a pronúncia do tribunal (convidado a fazê-lo) para dar solução definitiva a essas disputas passou a se caracterizar como um mal necessário e aplicável para a restauração de estabilidade governativa e institucional da Guiné-Bissau. Seja qual fosse o resultado de julgamento contido no referido acordão, causaria não só indignação como contestação por parte dos perdedores, devido à insuficiência de dispositivos objetivos para o julgamento da matéria em causa. Quando é assim, e foi assim, as hermenêuticas dos juízes que se pretendem apenas jurídicas e isentas deixam transparecer algum grau de inclinação política do momento, ainda que de forma muito tênue.
Portanto, penso que o acórdão 04/2016 não deve constituir objeto de maior preocupação relativa à hodierna conjuntura político-jurídica guineense. Claro que as consequências do mesmo são dignas de análise,em função de suas implicações para os sistemas partidário e político do país. Contudo, os elementos que deram condição para que tivéssemos hoje esse acordão, ou seja, os motivos que impulsionaram um conflito partidário para as esferas judiciais são ainda mais dignos de um pente fino.
Pode se abrir um precedente para a reedição de quadros semelhantes no futuro? Sim, desde que não se faça nada para evita-lo. Dito de outra forma, é evitável.Um dos mecanismos possíveis para os partidos sufragados para governar se protegerem dessas eventualidades que a vigente Constituição da República não dá conta com substancial clareza, passaria pela própria reforma constitucional que permitisse o fortalecimento do sistema partidário através de uma relação de maior verticalidade do partido em relação ao deputado. As implicações políticas de eventual efetivação desta proposta mereceria uma análise isolada.
Por: Timóteo Saba M’bunde, Mestre em Ciência Política.
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