quarta-feira, 23 de agosto de 2017

PORTUGAL: SER POLÍTICO E HOMOSSEXUAL. "O PAÍS MUDOU PARA ACOLHER ESTE PASSO"



"As pessoas vão dizer: porque é que isso é importante, o que é que tem a ver?" Eduarda Ferreira, 55 anos, está na Irlanda. Não andou a ler comentários à entrevista de Graça Fonseca, secretária de Estado da Modernização Administrativa, ao DN de ontem, a entrevista em que a governante revela ser homossexual. Nem leu a entrevista; soube da sua existência pelo Facebook. "Estou com pouca net, não consegui ler ainda toda. Fiquei surpreendida, embora ache que já era mais que tempo de acontecer. E achei extremamente importante que o primeiro governante a falar disto fosse uma mulher. Mas não é difícil imaginar as reações."


Eduarda é uma das dinamizadoras do Clube Safo, primeira associação lésbica portuguesa, fundada em 1996, inativa desde 2008. E sorri quando ouve o argumento, que muitos repetem, de que "já não faz sentido falar da orientação sexual em entrevistas". Pela sua experiência, mas não só: "Trabalho numa escola como psicóloga educacional e vejo que os miúdos ainda têm dificuldade em falar nisto. Há um peso, ainda é um estigma. A representação é negativa, não é positiva, embora a anos-luz do que era; as mudanças legais mudaram muito as coisas. É importante que alguém com poder no país se assuma - a visibilidade pessoa a pessoa faz a diferença."

E a visibilidade de uma mulher. Como Eduarda, Isabel Fiadeiro Advirta, ex presidente da ILGA-Portugal, frisa-o. "Este passo da Graça Fonseca é um orgulho para mim que sou lésbica e não vejo praticamente nenhumas mulheres a afirmarem-se. Alguns homens, quase nenhuma mulher." Isabel, que trabalha na Câmara de Lisboa, já admirava o trabalho da ex-vereadora. "Acompanho o percurso dela há muito, foi ela que pôs o orçamento participativo a andar, por exemplo. E também fico feliz por o PS mostrar que está diferente - isto não podia ter acontecido há uns anos. Aliás, há uns 15 anos esperávamos que o primeiro partido a ter homossexuais assumidos fosse o BE. E não é. No PS, tivemos dois homens homossexuais eleitos deputados [Miguel Vale de Almeida, 2009, e Alexandre Quintanilha, 2015]. Agora uma mulher. O espaço para sair do armário já existia, mas se a Graça está longe de ser a primeira pessoa em cargos governativos lésbica ou gay, foi a primeira a dizê-lo."

Nuno Pinto, presidente da ILGA, não tem dúvidas de estar perante "uma afirmação histórica". E também por se tratar de uma mulher: "A invisibilidade sobre as mulheres lésbicas é ainda maior do que nos homens. Quando se fala em homossexualidade pensa-se em gays." Mesmo quando, aponta Isabel, é para comentar a assunção de uma mulher homossexual: "No artigo do Expresso em reação à entrevista, só falaram com homens."

É de esperar que surjam mais atitudes como a de Graça? Nuno Pinto suspira. "Em Portugal não é só na política que não temos LGBT assumidos. É em tantas áreas - no desporto, por exemplo." Concede porém que um gesto como o de Graça tem resultados paradoxais que podem demover muita gente: "Quando a pessoa se assume homossexual essa dimensão passa a dimensão por excelência pela qual somos reconhecidos. Anula de alguma forma tudo o que somos para além disso. É muito importante reconhecer que as pessoas LGBT são muito diversas e essa identidade é só um aspeto delas." Outra coisa fundamental, acrescenta, é "a Graça ter explicado muito bem na entrevista a diferença entre a dimensão privada e a identidade. Ser lésbica faz parte da identidade dela, não é exposição da privacidade. Uma coisa é quem sou, outra com quem faço o quê."

Alguns exemplos de fora

Gauthier e as primeiras-damas

Na Conferência da Organização do Tratado do Atlântico Norte em Bruxelas, na Bélgica, Gauthier Destenay, marido do primeiro-ministro luxemburguês, Xavier Bettel, posou para a foto juntamente com as mulheres dos líderes mundiais, enquanto os homens participavam na conferência. Chefe do governo luxemburguês desde 2013, Bettel casou-se dois anos depois com o arquiteto belga, com quem tinha uma união civil oficializada desde 2010. Bettel foi o primeiro líder em exercício na União Europeia a casar-se com alguém do mesmo sexo.

Islândia

Entre 2009 e 2013, Jóhanna Sigurðardóttir assumiu o cargo de primeira-ministra da Islândia e casou-se com uma mulher, a escritora Jónína Leósdóttir. Antes de assumir a homossexualidade, Jóhanna foi casada e teve dois filhos.

Bélgica

Elio Di Rupo, ex-primeiro-ministro da Bélgica, assumiu a sua homossexualidade em 1996, tendo falado sempre abertamente sobre o tema. Doutorado em Química, assumiu o cargo em 2011, aos 60 anos, e exerceu funções até 2014. É também líder do Partido Socialista.
Estados Unidos
Em 2012, a democrata Tammy Baldwin tornou-se a primeira senadora homossexual assumida nos Estados Unidos, ao vencer o republicano Tommy Thomson, ex-governador do estado e ex-secretário de Saúde na Presidência de George W. Bush.

Irlanda

A Irlanda elegeu um primeiro-ministro em junho deste ano que se assume homossexual. Leo Varadkar, 38 anos, tornou-se um caso especial, já que foge aos padrões: é o mais jovem chefe do executivo da história do país, filho de um imigrante indiano e homossexual assumido. A sua orientação foi tornada pública em 2015, numa entrevista.

Peru

Em 2014, numa entrevista a um jornal, Carlos Ricardo Bruce, de 60 anos, assumiu a sua homossexualidade. "Sim, sou gay e estou orgulhoso de o ser", afirmou o congressista da república do Peru. Bruce, ex-ministro da presidência, tornou-se, assim, o primeiro político a assumir publicamente ser homossexual no país. E impulsionou a criação de um projeto para a união civil entre pessoas do mesmo género.