Por FRANCISCO SEIXAS
DA COSTA*
Num dia dos anos 80, numa
conversa em Luanda, quando era por lá diplomata, uma figura que viria a ter
responsabilidades nas relações externas daquele país disse-me, mais ou menos,
esta frase: "O peso da guerra colonial é muito forte. Portugal e Angola
estão "presos", um ao outro. Umas vezes, isso será uma coisa boa,
noutras vai ser bastante má. O futuro estará nas mãos dos que melhor souberem
gerir a impaciência e a irritação que, durante muitos anos, vai continuar a
existir entre nós." Isto foi afirmado num momento menos bom das relações
bilaterais, com guerra civil angolana e fortes tensões entre Luanda e Lisboa.
Lembro-me dessa frase muitas vezes e ainda não encontrei razões para infirmar a
sua justeza.
Durante quase quatro décadas de diplomacia, assisti a todos os
registos possíveis na atitude portuguesa face a Angola. Não os vou tipificar a
todos, mas sempre direi que foram desde um seguidismo quase subserviente, para
"não aborrecer o Futungo", até a atitudes de grosseira ingerência na
vida interna do país, deliberadamente provocatórias para o governo de Luanda.
No primeiro dos casos, por realpolitik, económica ou estratégica, noutros casos
pelo exacerbar de raivas de quem parece não se conformar com o fim do prazo de
validade da atitude neo-colonial. Ambas as posturas permanecem ainda hoje por
aí, continuando a ser caricaturalmente ridículas. E perigosas.
A primeira apressa-se a calar qualquer reação a tudo quanto emane,
oficial ou oficiosamente, de Luanda. Perante declarações de responsáveis ou
editoriais furibundos da imprensa local, que descarregam ácidos comentários
sobre Portugal e a figura de alguns portugueses, a propósito da atitude da
nossa Justiça face a atos praticados por cidadãos angolanos em território
português, logo surge a conhecida legião dos "angolorrealistas" a
recomendar silêncio, à luz da sacrossanta proteção dos "interesses
portugueses em Angola". Nalguns casos, a tese do "apaziguamento"
vai até onde agora se viu.
A segunda é a velha escola da contestação da legitimidade do MPLA
e das autoridades políticas angolanas em geral. Num primeiro tempo, essa
doutrina apoiava-se numa patética hagiografia da UNITA, titulada pelos utentes
dos "Jamba tours", cegos para a barbárie do líder do "Galo
Negro". Mais recentemente, essa atitude transmutou-se e surge escudada nas
preocupações éticas, apoiadas numa espécie de "droit de regard"
paternalista, que parece autorizar a que Portugal possa dar-se ao luxo de ter
opiniões firmes quanto ao modo como os angolanos, não apenas organizam o seu
poder político, mas a própria distribuição interna dos seus recursos.
A relação entre Portugal e Angola é demasiado importante para
ficar limitada por esta dicotomia. Como antigo profissional da diplomacia
portuguesa, só posso lamentar que o nosso entendimento bilateral com Angola
esteja, em permanência, dependente de humores induzidos do exterior ou motivada
por agendas ideológicas. Da mesma forma, a nossa política externa não pode
continuar num tropismo quase exclusivamente reativo, enredando-se,
ciclicamente, em epifenómenos tristes e degradantes. E, embora nada tendo a ver
com isso, devo admitir que isso possa também corresponder ao interesse de
Angola, um Estado com um crescente perfil internacional, uma potência regional
que não parece poder ter a menor conveniência de deixar-se arrastar,
diretamente ou por intemediários oficiosos, numa espécie de esquizofrenia
diplomática com a antiga potência colonial, a qual, a prolongar-se neste
registo, se arrisca a conferir-lhe uma imagem de imaturidade no plano
internacional.
Separemos, de uma vez por todas, as coisas: à Justiça o que é da
Justiça, à política o que é da política!
Meço bem estas palavras: aos responsáveis angolanos deve ser dito,
de forma clara e frontal, que não podemos deixar de considerar inamistosos
comentários oficiosos, ou sem visível reação de distanciação oficial interna,
que põem em causa a imagem de Portugal, bem como a honra e o funcionamento das
nossas instituições judiciais, a pretexto de incidentes que envolvam figuras
angolanas no nosso território; da mesma forma que não seria admissível, da
parte oficial portuguesa, a expressão de suspeitas sobre o comportamento da
Justiça angolana, num conjunto de casos em curso, que, embora pouco conhecidos,
envolvem hoje interesses e a liberdade de cidadãos portugueses que vivem ou
trabalham em Angola.
Cá como lá, nenhum operador da Justiça está acima da crítica, mas
convém lembrar que os sistemas judiciais dispõem de meios próprios de
contestação e recurso, que permitem regular posições que se opõem. A Justiça
faz-se nos tribunais, não nos jornais. E, em Angola como em Portugal, ela deve
atuar de forma independente, sem atender aos apelidos e às "cunhas".
Temos o dever, de uma vez por todas, de acabar com a ideia de que
Portugal e Angola são dois países eternamente reféns um do outro, através de
misteriosas conspirações, chantageados por interesses ou por ódios ideológicos
ou outros. É obrigação dos responsáveis de ambas as partes dar passos através
de um diálogo político frontal, no sentido de descrispar este ambiente, que não
é salutar nem digno de dois Estados soberanos, unidos por muitos e legítimos
interesses, que estão muito para além dos fait-divers de conjuntura.
Para o futuro, temos a obrigação de saber estruturar com Angola
uma relação diplomática madura e sem tabus, por muito que isso possa desagradar
aos "enragés" da vingança pós-colonial, de ambos os lados da
fronteira, a qual, aliás, não existe entre nós. Resta a convicção de que, com o
tempo, e também de ambos os lados, esses persistentes militantes da acrimónia
bilateral acabem por cair no "caixote do lixo da História", citando
um clássico que, cá como lá, já esteve mais na moda.
*) Embaixador
Fonte:Aqui