sábado, 16 de dezembro de 2017

Opinião: MULHER GUINEENSE E O EXERCÍCIO DA CIDADANIA

A cidadania é o exercício prático dos direitos e deveres de um indivíduo num determinado Estado. O combate pela cidadania é um fenómeno recente na Guiné-Bissau, no qual as mulheres têm tomado parte cada vez mais ativa. A participação das mulheres na luta de libertação nacional, sob a liderança de Amílcar Cabral, teve o grande mérito de já nessa época, introduzir conceitos de justiça social e de igualdade de género no processo da luta e revelou-se determinante para o reconhecimento da importância da participação da mulher na vida política e social da Guiné-Bissau.
 
Infelizmente a visão de Cabral na luta pela emancipação da mulher, não foi secundado, no período pós-independência, pela consolidação da posição feminina na sociedade guineense. A esfera pública esteve até há pouco tempo, completamente ocupada pelo Estado e pelos partidos políticos, numa representação quase que exclusivamente masculina. Salvo a rara e honrosa excepção de Carmen Pereira, única mulher a desempenhar, até hoje, o cargo de presidente da Assembleia Nacional Popular.
 
Na Guiné-Bissau, a Lei Fundamental consagra o princípio da igualdade entre o homem e a mulher, que é salvaguardado no artigo 25º da Constituição da República e que consta de várias convenções internacionais das quais o Estado Guineense e signatário, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Todavia, e não obstante as mulheres representarem perto de 51% da população, continuam relegadas a papéis secundários na esfera política, económica e social. As mulheres constituem o grupo humano que concentra todos os males de que sofre a sociedade guineense.
 
São as vítimas mais frequentes de violações de direitos humanos; casamento precoce e forcado, violência doméstica, mutilação genital feminina, violência sexual e abusos de todo o género, passando pelo assédio sexual nos locais de trabalho. Os indicadores económicos e sociais demonstram a difícil e por vezes mesmo dramática situação vivida pelas mulheres na Guiné-Bissau.
 
De acordo com os dados do último Inquérito aos Indicadores Múltiplos-MICS 2014:
  • A Guiné-Bissau é um dos piores países  do mundo para ser mãe: a fraca cobertura nacional em termos de recursos humanos e financeiros no setor da saúde, a falta de informação e a não gratuitidade dos cuidados de saúde materno-infantil, resultam numa taxa de mortalidade materna extremamente elevada, uma em cada 13 mulheres morre durante ou em resultado de complica coes do parto.
  • 37% das mulheres da Guiné-Bissau são sujeitas ao casamento precoce. A idade mais ou menos comum do casamento para as meninas, dependendo da etnia e da situação económica das famílias, situa-se entre os 12 e os 16 anos, sendo que quanto mais jovem for a menina menor a possibilidade de esta recusar o casamento. São cada vez mais os casos de raparigas que fogem ao casamento forçado, umas com maior sucesso que outras.
  • Mais de 44% de mulheres são submetidas a mutilação genital, o que leva a uma vida de sofrimento. Na maioria dos casos a excisão é feita em péssimas condições sanitárias e sem recurso a anestesia, resultando frequentemente em problemas de saúde e até na morte, em caso extremo.
  • A taxa de analfabetismo e de 66% para as mulheres em comparação com 48% para os homens.
A situação degradante da mulher na sociedade guineense encontra respaldo nos agregados familiares, nas comunidades e nas estruturas do Estado.
 
Nas famílias: A maior parte das famílias guineenses reserva um lugar privilegiado aos rapazes em detrimento das meninas, a estas é-lhes negado o acesso à educação (os rapazes em geral completam o ciclo básico de escolaridade, as meninas frequentam os dois ou três primeiros anos de escolaridade e só em caso de a família possuir recursos suficientes), ficando confinadas ao trabalho doméstico e ao papel de esposas e de reprodutoras, permitindo assim a instalação de uma espécie de ciclo vicioso em que a pobreza é transmitida de mãe para filha;
 
Nas comunidades: Os centros de poder são tradicionalmente ocupados por homens, são eles os líderes religiosos, os chefes e representantes da comunidade. Quase todos os diferentes grupos que compõem o mosaico étnico e religioso da Guiné, reservam um lugar subalterno às mulheres, (salvo algumas excepções não significativas dos bijagós- que têm uma sociedade matriarcal), sobretudo nas zonas rurais onde representam 52% da forca de trabalho no campo. São as primeiras a levantar-se e as últimas a dormir, depois de desempenhar múltiplos e duros trabalhos durante o dia, desde pilar, cozinhar, carregar água, tratar do gado e da lavoura e ainda depois desta longa jornada, assumir os seus deveres conjugais a noite, não lhe sobrando nem tempo nem energia para qualquer outra atividade de ordem cívica ou social.
 
Nas zonas urbanas a situação é semelhante pois são elas que desde cedo, providenciam o sustento dos respetivos agregados, com o seu pequeno comércio, constituindo mesmo as principais agentes económicas, embora a sua atuação seja limitada ao setor informal. Graças a sua capacidade de resiliência face as adversidades, a mulher guineense representa, na sua grande maioria, o pilar e a principal força de trabalho nas respetivas famílias e comunidades.
 
Hoje, 23% das famílias guineenses são chefiadas por mulheres, sendo que nos grandes centros urbanos como a capital Bissau sobe para 31%. Outro fator curioso e que o nível de incidência da pobreza tende a ser menor em agregados dirigidos por mulheres – 56% de índice de pobreza em comparação com domicílios chefiados por homens que apresenta níveis de pobreza perto dos 68%. Nos últimos anos, as mulheres têm tido um papel extraordinário na definição das estratégias de luta pela sobrevivência familiar, têm resistido muito melhor que os homens a choques externos e cada vez que a nossa sociedade cai, são elas sempre as primeiras a levantarem-se.
 
As estruturas do Estado naturalmente reproduzem os cenários existentes a nível das famílias e das comunidades, repetindo a discriminação relativa as mulheres pois, não existe uma base sociocultural para aceitar a liderança feminina, justificando assim a sub-representação política das mulheres. Veja-se a fraca representação feminina-14%, na atual configuração da Assembleia Nacional Popular – no universo de 102 deputados, apenas 9 são mulheres.
 
Uma das explicações possíveis e o facto das sucessivas turbulências existentes a nível das estruturas políticas do Estado, com o lote de violência que por vezes as acompanham, afugentarem as mulheres do espaço público.
 
Para reforçar a tese de que a violência afasta as mulheres da esfera política, basta analisar a representação feminina na ANP nas eleições realizadas imediatamente depois do conflito político-militar de 1998; o número de mulheres eleitas deputadas diminuiu significativamente, somente 7 mulheres num universo de 95 homens.
 
Na verdade, apesar do quadro geral ainda ser bastante negativo, um grande esforço tem sido feito pelas organizações da sociedade civil, nomeadamente as redes associativas femininas, que com ações de sensibilização, de formação e de informação aos deputados, obtiveram a aprovação pela Assembleia Nacional Popular, de leis protetoras da integridade física e moral da mulher, como a lei contra a violência doméstica a lei contra a mutilação genital feminina, que hoje é penalizada, já tendo sido condenadas algumas fanatecas pelo crime de prática de excisão. Foi aprovada igualmente a política nacional para a Equidade e Igualdade de género
 
As redes associativas femininas trabalham também na criação e manutenção de estruturas de apoio às vítimas de excisão e das raparigas que fogem do casamento forçado. Estão igualmente empenhadas em ações de pressão e sensibilização para fazer aprovar a proposta de instauração de um sistema de quotas a nível das listas eleitorais dos partidos políticos – 40% reservado as mulheres em lugares elegíveis. Contudo e apesar destes esforços, a regulamentação e aplicação prática dessas leis constituem um desafio permanente.
 
Neste contexto, a participação das mulheres na Guiné-Bissau, enquanto cidadãs de parte inteira, constitui ainda um longo caminho a per correr. Não se pode pretender que elas tenham uma participação cívica ativa, consciente e responsável, sem que as premissas básicas constituídas pela educação, pela saúde, pela gravidez acompanhada, pelo planeamento familiar, pela segurança social, por um rendimento condigno e pelo emprego, estejam garantidas. O Estado tem uma responsabilidade acrescida na realização destes direitos mas reconhecemos que o peso negativo da tradição, dos valores culturais e da religião são frequentemente utilizados para restringir os direitos das mulheres e impedir que sejam autónomas. É utópico pensar em alterar a realidade que afeta mais de 50% da população somente com medidas legislativas, será necessária uma profunda transformação da sociedade a todos os níveis; económico, social e cultural.
 
Enquanto se mantiverem as relações injustas e desequilibradas entre cidadãos e governantes, a condição deplorável das mulheres não será alterada. São as mulheres e os jovens, as grandes vítimas do sistema disfuncional em vigor no País. Um sistema feito do binómio-político/militar que criou uma rede de corrupção e clientelismo, parasitando uma grande parte das instituições públicas e privadas. Hoje, este sistema entrou em convulsão, minado pelas suas próprias contradições e incompetências.
 
A transparência na gestão de fundos públicos e a obrigação de prestação de contas, permitiria poupar e afetar recursos materiais e financeiros que serviriam para melhorar o atual quadro socioeconómico da Guine Bissau e principalmente a condição da mulher guineense.
 
Nas zonas rurais, é necessário que elas sejam libertas das tarefas penosas do campo, através de acções praticas que promovam e encorajem o seu acesso a terra e a propriedade, que sejam criados programas de aquisição de máquinas de pilar, de debulhar, de criação de animais de ciclo curto, com o objetivo de aliviar a carga de trabalho a que estão sujeitas e permitir a melhoria das condições de saúde, sanitárias e nutricionais para elas e para as crianças.
 
Nos centros urbanos, são necessários programas específicos de treinamento de gestão de pequenos negócios, para ajudá-las a reduzir o risco ligado as suas atividades e inseri-las posteriormente no circuito bancário, apoiando-as assim a integrarem o sistema económico formal.
 
Por todo o País, campanhas de comunicação, de informação e de sensibilização nas rádios- principalmente as comunitárias, nos jornais, nas redes sociais, deverão sustentar e acompanhar estes programas de longa duração (no mínimo 5 anos). No meu entender, estes são alguns elementos que poderão favorecer a autonomização da mulher e permitir a sua plena participação na sociedade.
 
O combate pela cidadania levado a cabo pelas mulheres deve revestir uma exigência de transformação económica, social e cultural do Pais, servindo igualmente de viveiro para a emergência de lideranças femininas.
 
Este e o grande desafio que deve ser enfrentado solidariamente pelas mulheres na afirmação da sua autonomia e participação enquanto cidadãs, na construção de uma sociedade portadora de valores democráticos, baseada na justiça social, na igualdade de género e na liberdade de expressão.
  
Por:  Nelvina Barreto
Gestora de projetos de desenvolvimento, Consultora e antigo quadro do Banco Africano de Desenvolvimento- BAD