Duas investigadoras denunciam mais uma violação dos direitos infantis na Guiné-Bissau. Crianças com doenças ou características diferentes são consideradas feiticeiras, maltratadas e por vezes mortas pelas famílias.
No dia 16 de junho celebrou-se o Dia Internacional da Criança Africana, mas um pouco por todo o continente as crianças ainda enfrentam muitas violações dos seus direitos.
Na Guiné-Bissau, são frequentes os casos de abusos contra crianças talibés, de mutilação genital feminina ou de casamentos precoces. Mas há no país uma outra forma de violação dos direitos infantis que é menos falada: as crianças-irã.
Uma criança-irã é um menor com alguma patologia ou característica específica que o torna diferente e que, por isso, se acredita que seja uma manifestação de um deus com poderes sobrenaturais.
Crianças com paralisia cerebral, epilepsia, desnutrição crónica ou trissomia 21 são consideradas feiticeiras e, por isso, são ostracizadas, maltratadas e por vezes mortas pelos seus familiares e comunidades.
Sofia Alves e Filipa Gonçalves são investigadoras da Fundação Fé e Cooperação (FEC) e realizaram, durante três anos, um estudo acerca deste tema, que consideram ser um problema grave, mas pouco falado na sociedade guineense. O "Estudo das Crianças Irã: Uma violação dos direitos das Crianças na Guiné-Bissau", foi desenvolvido no âmbito do Projeto Bambaram di Mininu – Observatório Nacional dos Direitos da Criança, implementado pela Cáritas e pela FEC, e financiado pela União Europeia.
"Esta prática está muito associada a uma prática religiosa animista das religiões tradicionais africanas, neste caso da guineense. Estas crenças não têm uma explicação para situações como gémeos, trissomia 21, epilepsia ou paralisia cerebral e, por isso, atribuem estes problemas a uma manifestação sobrenatural. Acreditam que estas crianças estão, de alguma maneira, possuídas por este deus que é designado irã", explica Sofia Alves.
O nascimento de gémeos ou até mesmo a morte da mãe durante o parto são motivos suficientes para se atribuir esta nomenclatura à criança, como explica a investigadora: "por exemplo, no caso de gémeos o que é entendido é que um deles é bom e o outro não. Há a crença nas religiões animistas de que é mau quando este irã encarna numa pessoa e, sendo mau, deve ser eliminado."
"Quando nascem crianças com deficiências, normalmente são mortas. Muitas vezes são abandonadas na margem de rios ou no meio da floresta, e acredita-se que se não for uma criança-irã esta irá sobreviver", conta Sofia Alves.
Apesar disto, a investigadora sublinha que há cada vez mais famílias que se preocupam com o bem-estar das crianças e que recusam esta prática tradicional. "Há situações em que alguns pais não eliminam, nem põem estas crianças em perigo e tendem a entregá-las a casas de acolhimento."
"Não é visto como um homicídio"
As investigadoras dividiram o seu estudo em várias amostras e identificaram diferentes crenças e percepções sobre o tema. Concluíram que muitas vezes não há sentimento de culpa com a morte destas crianças, pois estes atos são vistos como necessários e como fruto da decisão de um deus.
"Não há um sentido de culpabilidade por justificação das crenças que as pessoas têm de que isto é algo que os ultrapassa, que é uma decisão da comunidade, que é uma decisão dos deuses, e por isso muitas vezes não é visto como um infanticídio ou homicídio", explica Sofia Alves.
Fernando Cá, administrador da Associação dos Amigos da Criança (AMIC), uma organização não-governamental guineense, afirma que estas situações estão muito relacionadas com a pobreza e com o nível de escolaridade da população.
"Se alguma criança nascer com problemas consideram-na irã, e então as famílias fazem aquilo que consideram ser um 'tratamento': abandonam a criança junto do mar ou de um rio, numa altura em que a maré esteja cheia. Obviamente, a criança morre. As famílias sabem que isto é um crime, mas é também uma forma de evitarem assumir alguns encargos, porque ao nível do país não há nenhuma estrutura, sobretudo estatal, que esteja encarregue de recolher estas crianças. Tudo isto está muito relacionado com a pobreza e com o analfabetismo", afirma.
Fernando Cá conta que estas práticas são feitas em segredo: "estas situações são esporádicas, e quem as pratica sabe que está a cometer um crime, por isso é tudo feito no mais absoluto sigilo."
É necessária uma revisão do quadro legal de proteção infantil
Sofia Alves acredita que é necessária uma revisão da lei na Guiné-Bissau para punir estes atos de forma mais sistemática e mais adequada.
“Uma das conclusões e recomendações do estudo é a revisão do quadro legal do país no que toca à proteção da criança. É necessário haver um acompanhamento e uma sinalização destes casos. Isso é um processo complicado porque, muitas vezes, a lei choca com as práticas tradicionais. A questão do infanticídio/homicídio está na lei, contudo é insuficiente, nomeadamente em termos de pena. Como muitas vezes esta prática tem atenuantes por causa da tradição, o máximo que se pode atingir de pena são oito a nove anos."
A investigadora considera que a Guiné-Bissau tem demonstrado uma maior advocacia no sentido de melhorar a situação das crianças, que ainda é bastante frágil.
Fernando Cá considera que os direitos das crianças guineenses ainda enfrentam graves problemas e que tem de ser feito mais para travar estes abusos.
"Há práticas tradicionais e culturais que as pessoas continuam a considerar como algo normal, mas nós, AMIC, enquanto estrutura que trabalha nessa matéria, consideramos que essas práticas são nefastas e devem ser banidas. Por exemplo, a excisão, os casamentos forçados de meninas com 13 ou 14 anos com homens muito mais velhos, de 40, 50 ou até mesmo 60 anos, além dos maus-tratos que acontecem quase todos os dias. São aspetos muito negativos e que estão associados à pobreza no país", diz o administrador da AMIC.
Os casos de crianças-irã são mais frequentes na África Oriental e Central. O Sudão, a República Centro-Africana e Angola são alguns dos países que registam casos.
Joana Rodrigues - Deutsche Welle IN PG
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