sábado, 22 de outubro de 2016

Crônica: AMOR À DUAS VOLTAGENS

otinta-age
A vida tem destas: as surpresas sempre presentes especialmente no campo do amor. Às vezes, perguntamo-nos por que será que fulano ou fulana não consegue deixar o cicrano ou a cilcrana. E a resposta que parecia que podia ser fácil torna-se, na maior parte das vezes, dificílima. Afinal das contas, acredito eu,amor não se explica vive-se.

Nos meus idos 27 anos de idade, conheci uma menina – aliás não fora na altura a minha preferida -, mas invadiu-me a vida, e consequentemente, o coração, que fiquei deveras perdido. Perdido, porque sem o querer, acabei por envolver-me com ela. E, para piorar, apaixonei-me perdidamente por ela, ao ponto de pedi-la que considerássemos a hipótese de nos casarmos. E, ela, é claro, ficou felicíssima da vida.

Não tinha ela nem os 20 anos, estava no último do Liceu quando nos conhecemos. Ouvira falar de mim, um recém-formado que, em tempos de Liceu, tirava a brincar o Quadro de Honra. Pensara ela que também seria brilhante na vida, não sabia que neste solo pátrio peca-se, e das grandes heresias, por ser um(a) aluno(a) brilhante.
Aqui não conta a inteligência, e sim a contingência da burrice.
Se você for um aluno(a) aplicado(a) você se transforma no inimigo número do Estado, portanto alvo a abater. E quando não o conseguem fazer, fá-lo-ão intrigando-te, ou caluniando-te, inventando mentiras, armando situações para que tu caias nas suas armações, e assim puderem abater-te como fazem com as vacas no Matadouro Municipal.
O pior é que dispensam todo o tempo e toda a energia para correr por todos os bairros de Bissau, e quiçá, também no exterior para semear inverdades ao teu respeito.
  1. Amor à primeira voltagem…
Como dizia há bocado conheci a menina, trocamos olhares, fizemos o câmbio de sorrisos, e, num dedo de prosa, partilhamos gentilezas, e também elegâncias de sua esmerada educação.
Preta, fina, elegante. Extremamente dedicada aos estudos. Prestava atenção às minhas elucubrações filosóficas, aos meus devaneios científicos, e às minhas loucuras de escritor. Mais do que isso, entregávamos ao sexo com uma paixão avassaladora, inimaginável.
Meus vícios por mulheres, é claro, – todos eles -, ou quase todos eles, despejei nela, e todas as minhas sapiências eróticas depositei nela.
Eu era para ela o amante e ao mesmo tempo o namorado. E ela se sentia feliz, no paraíso, e eu muito mais ainda. É preciso que reconheçamos a satisfação plena quando somos correspondidos no amor.
A medida que fomos vivendo intensamente a nossa relação, mais ela me amava a mim e eu a ela, e fui esquecendo a minha noiva que deixara no Brasil, e que esperava por mim.
Fui esquecendo ou estas de “ardigansas di tchon” de Bissau foi-me matando os ouvidos que, a cada dia que passava, ficavam mais moucos.
No entanto, enquanto crescia o amor também crescia em proporções maiores os ciúmes que ela tinha por mim. Não podia virar nem para olhar as passantes, isso denotava meu interesse, segundo ela. E isso começou a stressar-me. E preso que era a ela, isso me angustiava ainda mais a sensação de rutura que parecia iminente.
Cheirava-me o corpo, especialmente o material precioso que o corpo comportava para certificar-se que não tinha molhado o ganso. Isso me angustiava, mas paradoxalmente me excitava vê-la tão decidida a vigiar o que “é dela”?, conquistado pelo o augusto direito de viver.
Invadia-me a casa. Subia à janela do quarto de dormir para ver se estava com outra. E quando não via, permanecia ali sentada até que eu voltasse para a sessão de cheiro.
Vezes sem conta, arrombava a porta. E não encontrava nem a mim e nem vestígio de mulher.
Foi então que comecei a desconfiar que aquilo já não era amor, mas sim a destruição do amor. Comecei a perder o controlo dela, a perder o controlo de mim, e estava a caminhar para uma descompostura total.
Sem titubear, pus um ponto final, depois de longos meses de muiiiiiiiiiiiiiito amor, intensa paixão, e múltiplos orgasmos. Decidi cair fora. Foi um descontrolo total de sua parte. Chorava e dizia que mudava de comportamento. Recusei terminantemente. Pois prometera isso várias vezes, e nada mudara.
Para fechar este primeiro ciclo, escrevi-lhe a seguinte missiva – que ela guardara entre seus livros como sendo texto de leitura obrigatória. Guardara-a porque acreditou que um dia fóssemos voltar. Guardara-o nos abraços, nos beijos, nas carícias e nas sessões de sexo total que mantínhamos como casal de namorados. Tal fato aconteceu, e eis o seu teor:
BISSAU, 29 DE MAIO DE 2003
OLÁ MGV,
Nem sei como começar, mas em todo o caso, direi algumas palavras esperando poder com elas esclarecer algo a respeito do nosso namoro.
Trata-se, na verdade, de muita interferência de terceiros na nossa relação; isto é, tu ouves muitos os zum-zum-zums que os outros dizem sobre mim – àquilo que veem em mim como defeito: álcool e mulheres. Por isso a nossa relação foi-se desgastando, pouco a pouco, sem falar, entretanto, de seus atrasos com os horários combinados.
Suspeito ainda que estejas ligada ao teu ex-namorado. Isso significa ademais que tu não podes colocar dois pés em duas canoas.
Apaixonei-me por ti; gostei muito de ti, mas tu nunca acreditaste nisso. Até hoje gosto, e muito de ti – amo-te de verdade -, porém olha, voltar para ti depende de muitas mudanças.
Beijos, Otinta
  1.  E a segunda voltagem
Soube anos mais tarde que fora estudar. Encontrei-a no Hi5, adicionei-a; só que nunca consegui esboçar alguma reação que pudesse “motivar alguma aproximação”. Para ser sincero perdi interesse.
Ora essa, o fantasma do ciúme desmedido e doentio não saíra da minha cabeça, e do meu coração; por isso, não fiz esforços para que a volta acontecesse.
Enviei-lhe uma mensagem em que falei sobre amenidades da vida. Nada além disso. Encorajei-a a dedicar-se nos estudos.
O tempo foi passando, e as nossas vidas a ganharem novos contornos, e cada um, à sua maneira, a prosseguir o seu rumo.
Numa noite desta, já cá em Bissau, por volta das 23 horas da noite, estava só, absorto em meus pensamentos, e a tomar umas cervejinhas, quando toca-me o celular. Do outro lado da linha estava sua amiga, a melhor amiga. Esta, cumprimenta-me, e eu a ela. Diz-me “olha Otinta, há alguém muito especial que quer falar contigo”. Respondi-lhe de pronto: “podes passar a ligação”.
Do outro lado da linha, ouvi, aliás escutei timidamente, a sua voz meio rouca a dizer melosamente: “boa noite, Otinta, como estás?”. Respondi-lhe que estava tudo bem, e perguntei-a como também estava, e chamei-a pelo nome. E isso causou muita admiração, após oito anos de separação.
A solidão que me rodeava naquela noite, só, num bar a tomar umas cervejinhas – no tempo em que as bebia com frequência -, levou-me a que aceitasse seu convite. Foi, por iniciativa dela, na mesma noite, pediu-me que queria muito que nos víssemos. E, se possível, que viesse ao meu encontro. Aceitei e …
O resto são favas contadas. Estamos juntos. E estamos nos reconhecendo no amor.
A ocasião faz ladrão. E, assim, a cada dia que passa, e a cada clarear da aurora, a cada beijo, a cada carícia, a cada comportar dos nossos corpos um no outro, a cada orgasmo, fazendo sol ou fazendo chuva, não importa se de menos ou se de mais, estamos sempre à alta voltagem.
Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio, a partir de Ouagadougou, no Burkina Faso, a 17 dias do mês de Outubro de 2016.
 
Por: Jorge Otinta