domingo, 30 de outubro de 2016

Crônica: TUA DOR É MINHA E NOSSA LÁGRIMA

image
Há muitas crianças nas mesmas condições ou ainda piores que Totala, tanto na nossa capital Bissau, assim como no interior do país. Aqui na nossa rua é quase normal ver menores a trabalharem como se fossem adultos. Um exemplo vivo é a pequena Totala.

No dia 1º de Junho deste ano (2016), fui obrigado a fazer algo em sua homenagem, dedicando-lhe esta data tão importante na vida de qualquer um de nós, porque todos passamos pela infância.
Como não sei o seu nome, trato-lhe por Totala [sem nome – na língua mandinga]. Trata-se de uma menina que sempre vem apanhar água no poço da nossa residência. Ela pode ter cerca de dez anos de idade ou menos. Não consigo precisar sua idade, porque nunca lhe perguntei nada disso, ao longo das oportunidades que tive para tentar impedi-la de apanhar água, devido à sua idade e ao perigo que aquela actividade e o balde cheio de água constituem para uma criança.

Kin ki mandau kata iagu – quem te mandou apanhar água?”, são algumas de muitas frases que troquei com a menina que trabalha como ninguém.
totala-sem-camisa-com-balde-a-cabeca-e-de-pes-descalcos
A criança transformada numa pequena escrava disse-me a mim e ao meu irmão Ismael que tinha vindo para ser educada [kriadu] pela sua tia, cá em Bissau. Mas constatámos que invés de receber a educação que precisa como criança para poder enfrentar melhor o seu futuro, ela foi transformada numa máquina de trabalho. Ela trabalha de madrugada ao pôr-do-sol.
Ismael e eu tentámos intimidá-la, apenas como forma de pressão no sentido de fazer chegar o nosso recado à pessoa responsável por ela, mas não sabemos se por culpa do medo, ela nunca se queixou à malvada criadora. Mesmo não estando na nossa residência todos os dias, de manhã à noite, por causa das nossas actividades laborais, eu cá em Bissau e meu irmão Ismael em Mansaba, não obstante a nossa ausência prolongada de casa nos dias úteis e aos fins-de-semana, cruzamo-nos sempre com a triste Totala.
Para mim e meus irmãos Ismael e Idrissa, já não é de estranhar ver Totala descalça, pois ela foi forçada a habituar-se a isso. Ou seja, para Totala, andar de pés descalços virou um dom.
A minha Totala e querida amiga trabalha como ninguém e vive como uma criança sem mãe nem pai, enquanto os pais lá por terras mansoancas pensam que a filha está em Bissau a desfrutar de melhores condições de vida que não tinha na aldeia. Pelo contrário, está pior que nunca. Esta é minha suposição!
A Totala, minha irmã querida, nunca teve medo nem levou em conta as minhas investidas. Aliás, as minhas e as do Ismael. O Idrissa sempre aparenta ser quem se preocupa menos que nós, mas é apenas um disfarce. Conheço o seu coração. É meu irmão mais novo e provavelmente sente mais que nós! Ele está sempre a dar aquele RISO, perguntando-me a mim – “Ficou admirado?”. Às vezes não respondo às suas brincadeiras, mas sempre gostei, porque fazem-me sorrir um pouco, mesmo sem vontade. Na verdade, aquele sorriso forçado que sempre procura arrancar de mim alivia um pouco de sofrimento que me vai na alma.
Num belo dia, talvez de sorte, estava eu a lavar as minhas roupas na varanda da nossa casa. De repente vi Totala a levar à cabeça um vasilhame de água, com a ajuda de outro menino, quase da mesma idade, que também tinha ido ao poço com o mesmo objectivo de apanhar água. Indo ao essencial, naquele belo dia consegui tirar-lhe uma foto com meu telemóvel, como testemunha para quando quiser contar a alguém, eu ter um suporte. Mesmo sabendo que tirei a imagem sem o seu consentimento, sei que se ela crescer e ganhar consciência, não me processará reclamando os direitos de imagem, pois gosto dela. Não tenho como ajudá-la se não partilhar essa história real que vivo na minha zona do Bairro Militar – zona de Pedrada.
A nossa zona é para mim, uma das piores em casos de género. As pessoas deixam as crianças irem sozinhas ao poço, para catarem água com baldes de mais de dez litros do líquido precioso, sem contar com os enormes baldes que são obrigadas a levantar até à sua cabeça e depois transportá-los até as residências dos pais ou encarregados de educação. Algumas vivem com familiares e outras até com os próprios pais, que não têm a noção do perigo que os filhos e sobrinhos correm.
O balde adaptado para tirar a água do poço, além de peso que as crianças não conseguem suportar, constitui também um risco grave a vida e à saúde das meninas e dos meninos, tendo em conta que os seus órgãos não estão preparados nem maduros para enfrentar um trabalho duro e pesado, como é puxar água do poço tradicional.
Totala, tendo em conta ao sofrimento que vejo no teu rosto, a denúncia será o único apoio que, de momento, posso te prestar. Levo a sua situação a quem de direito e as organizações que lutam pelos Direitos da crianças.
Até já Totala, que Deus te proteja como sempre fez. Dedico-te este 1º de Junho de 2016 e todos os dias, Totala!
 
Por: Sene Camará
Jornalista Licenciado em Comunicação Organizacional