sábado, 29 de outubro de 2016

Crônica: À PROVA DO MACHADO

otinta-age
E todos os olhares se viraram para onde vinha a voz. Não se sabia ao certo se o Chefe estava louco, ou se estava possesso por demónio, ou se era um intriguista embutido, ou se era burro pra cachorro; ou se era ainda um sujeito dissimulado que passara anos a gozar de bom nome quando, na verdade, era um grande mentiroso, e vigarista prime.

Não se sabia nada. E o barco que estava a atravessar o grande rio do Geba, ia afundando mas, paradoxalmente, acolhia serenamente o sofrimento da embarcação. Só não se sabia para que ilha se estava a ir. Se era para as ilhas do Norte, ou se para as do Sul, seja ela continental, seja ela insular, ou se paras as ilhas do leste. E a região noroeste, da capital, também era para lá que se seguia?
Never. Estava a embarcação a ir para lugar nenhum. Pois, o piloto do barco, o Capitão de gravatas e de lopés, seguia soturno. Pois, nas suas viagens de marinha mercante, aportara em terras de reis, em reinos fundados há mais de 3 a 4 décadas para aprender como é que se instauravam as monarquias, ainda que não pertencente ao sangue azul, ainda que não fosse da linhagem dos jagras; queria, contudo, e a todo o custo, instalar-se no trono, numa ilha desconhecida dos seus. Tão ingenuamente ele que vinha doutras paragens para ser educado por outrem no coração do chão sagrado de NTin.

  1. O governo dos homens e dos animais
O soberano da República do Cal. Estava rodeado por alguns homens e animais – repare estas últimas não eram sacrificadas. São do tempo, no mais antigo dos tempos, em que homens e animais partilhavam dos mesmos sonhos, faziam amor uns com os outros, e ora geravam filhos semi-humanos e também os puramente humanos, ora geravam filhos quase animais; ou puramente e simplesmente, animais.
Havia um problema que aparentemente era insolúvel. Para que as coisas começassem a andar direito. Era preciso que uma donzela e virgem, que nunca fora tocada por nenhum homem, fosse sacrificada aos deuses.
Só que esta donzela e virgem tinha que ser a filha do rei – ou do candidato a ser rei num reino que não é dos seus. Porém, com a sua esposa legítima. Ora essa, o Capitão de gravatas era um sexagenário. Como podia ele conceber uma virgem com a esposa – que é legítima -, embora dizem que o rei também tenha tiques de pederasta. Isso, o dizem às más-línguas. Retomo a questão: a esposa também ela quase uma sexagenária poderá conceber? Ou terá ele que desposar outra, desfazendo deste casamento de há anos feito com suor e amor?
Duas consequências inevitáveis saltam aos nossos olhos: a primeira era preciso que a dona de casa aceitasse que o marido tivesse de tomar uma segunda mulher por esposa para materialização do sonho de reinado. Contudo, ela não podia saber deste plano de reinado. Porém, o rei pela educação que recebera de seus pais, não podia terminar este casamento.
Mas também havia uma outra questão. A segunda consequência dizia respeito ao tempo, e este estava a passar, e muito, e tornava demorada a travessia para a outra margem do rio. E isto poderia criar a impaciência na tripulação. E as consequências, melhor não as prevermos.
Aliada a esta. Se a first lady decidir mover um processo de divórcio na justiça da UEMOA ou da CEDEAO, revelando horrores para ficar com a boa parte da fortuna acumulada – dizem com trabalho sério e honesto. Talvez tenha nas suas viagens exploratórias pelos mares nunca dantes navegados, encontrado algum tesouro, e dos mais valiosos, no fundo do mar Egeu.
Mulher que, a vida toda, sempre cumprira escrupulosamente o seu papel de mãe e de esposa. Nada mais que isso. Tinha deveres e obrigações para com a família. Nunca tivera o mínimo direito de opinar sobre nada. Nothing! Nem tão pouco pelo que está a passar neste momento.
Discutida a saída, proposta a chance de escape pelo imbróglio que se criou na embarcação, era preciso que chamassem os jambakusis e os sábios anciãos. Pois isto de Ciência sem ConsCiência estava a atrapalhar as coisas.
Foi chamado o grande muro. O muro chegou e impôs a receita. Tratava-se em saber qual seria a forma de transitar-se do rio Geba para a outra margem lá do Arquipélago. Disse em tom peremptório que era preciso resgatar a donzela que fora entregue ao irã do mar.
Entretanto, quando foi isso? Quem foi que o fez? Em nome de quê o fez? São estas e outras questões que deixaram o Capitão atordoado.
Pensando consigo mesmo – se é que tem faculdades intelectuais para o fazer – pediu que chamassem seu Jambakus preferido.
Este veio. Foi-lhe apresentado o enigma. Ele mexera no seu barkafon, derramou aguardente, quase um litro, e disse:
– Meu Senhor, não há necessidade de se sacrificar uma donzela, nem mesmo de libertar a que supostamente está presa no fundo do mar pelo grande irã. Apenas matemos, 10 cabeças de vacas, 30 cabeças de cabras e 40 cabeças de porco. O resto das oferendas fica a critério da quantidade que o Senhor entender para fartar aos tripulantes, antes que a maré baixe e fiquemos encalhados na areia, a espera doutra maré.
O capitão de gravatas parecia feliz, mas também parecia que alguma coisa ainda faltava para a resolução cabal do problema. E, assim, foram procurar um outro, cuja fama kambou a cabeça das fronteiras humanas.
  1. O jambakus que conhecia os segredos dos defuntos
Como a embarcação não zarpava, e os tripulantes impacientes, e o comandante, meio que perdido pelas artimanhas que vinha maquinando na sua cabeça tosca; a medida que o tempo foi passando, a angústia aumentava em tamanho desproporcional.
Toda a tripulação, já de si cansada, começava agora a duvidar-se das boas intenções do Capitão de gravatas. Toda ela incrustou o olhar naquele estranho homem: sisudo, mas um tando burro e malvado.
Horas depois, viram chegar perto do barco uma nova massa ínfima de homens, e de dentro dela saíra um. Era um homem baixo, rude, mas de um olhar penetrante, a contrastar com seus olhos avermelhados, porém agudos de tanta sabedoria acumulada neste ofício de mistérios incomensuráveis. E inimagináveis para nós os simples mortais.
Este novo Jambakus fez as suas miscelânias de farinhas e de pós, jogou Whisky no chão, e disse para o Chefe:
– Chefe, esta cerimónia tem de ser regada a whisky e a champagne.
Todos eles, o Chefe e os seus vassalos, entreolharam-se. E àquele deu sinal com a cabeça para que cumprissem com o pedido feito. Deram-no de pronto. Pôs muito no mar, e bebeu outras tantas, até embebedar-se. E, em tom profético, disse alto e lacónico:
– A menina do fundo do mar já não tem rosto de pekadur como nós, ela já se transformou numa serpente, a esposa do irã.
Todos se entreolharam incrédulos. E continuou:
– Em relação a questão relativa a desposar uma nova mulher é pura perda de tempo. Pois o grande irã não quer – já que meu Senhor não é Jagra, tua filha donzela e virgem, se é que a tem.
Um silêncio sepulcral tomou conta de todos, do Capitão e da sua fragata – e quiçá da sua gravata -, mas também da tripulação que andava absorta em seus pensamentos, com a preocupação de chegar para a outra margem do rio.
Mas, o Jambakus, não se fez de rogado, embora estivesse ele já bêbado, não aguentaria permanecer-se em pé para uma cerimónia que exigiria a presença de muitos colegas seus de profissão. Precisava, pois, de livrar-se do alto mar. Uma tarefa ingrata que lhe fora entregue porque havia uma avultada soma em dinheiro. E muita coisa estava em jogo.
Impaciente, o Capitão pediu que o dissessem o que deveria ser feito, e que o fizessem com muita pressa, pois a maré estava a esvair-se, e ele não queria passar a noite, em claro, no alto mar. Porque aquilo era fatal para continuar como marinheiro.
Não era a tripulação a sua preocupação, era ser apenas, mas sobretudo, o Capitão do barco. Nada mais que isso.
E o Jambakus, sem alternativa, mas também sem pestanejar, disse-lhe que os espíritos do chão lhe disseram que transmitisse aos vivos, mas especialmente a ele, o rei o seguinte:
– Meu Senhor, para safar-se, o senhor terá que sacrificar em oferenda ao grade irã, a tua filha caçula, para dar prova de que pretende continuar a ser o Capitão do barco. Caso contrário, a embarcação, toda ela, afundar-se-á. Ninguém sobreviverá. Nem mesmo o Senhor – afirmou àquele em tom de vaticínio.
– Nem morto! – respondeu ordenando que o Jambakus descesse do barco.
– Vou-me embora, e que o Senhor tenha boa sorte; pois precisa dela, e de muita sorte mesmo – dito isto levantou voo como um pássaro desaparecendo no horizonte – para a estupefacção geral da tripulação; e do própro Capitão.
Sem saberem ao certo por onde rumar, e a maré baixou por completo, uns querendo pular do barco, entretanto não havia alternativa, tiveram, à força, que permanecer no barco à espera da próxima maré cheia.
E todos caíram num sono profundo e assim permaneceram, à deriva, até ao amanhecer.
E de volta à terá firme, a panela de pressão que há muito ameaçava explodir-se pela elevada temperatura, impôs-se:
Ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta ta
TAU
RAU
E acabou………………………………………………………………
Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio, a partir de Dakar, no Senegal, a 16 dias do mês de Outubro de 2016.
 
Por: Jorge Otinta, poeta, ensaísta, e crítico literário guineense