sábado, 15 de outubro de 2016

Crônica: REFRÃO DE FOME

Os filhos sentados, cada um, na sua turpesa. Uma tigela no meio. E dentro dela um cuntango malcriado. Olham-se um para o outro. E nenhuma palavra saía da boca de um deles sequer.

O pai também ele sentado noutro ângulo da varanda, olha para eles sem os ver. E vendo-os não consegue reparar na amargura de encarar aquele prato que, embora servido com amor, porque fora preparado pela mãe, provocava neles a azia no estômago.

Um dos filhos mais novo comemorava os 5 anos de vida. Estava ali junto dos irmãos, dos pais, dos vizinhos e dos familiares seco como o prato que tinha a s sua frente para almoçar. Bolo? Apagar as velas? Nem pensar.

Um silêncio fúnebre regia a orquestra que se preparava para tocar a 43ª Sinfonia Desvairada. Só não tinha audiência; o palco, este só tinha músicos de ouvidos moucos.

Foi então que o pai, desolado, vira para a mãe que, sorridente como sempre, encoraja-lhe. O toque aliado ao olhar meio e sedutor de sua mulher recobraram-no o ânimo. O pesadelo começara a esvair-se de dentro de si. Pensou de si para si…

Ele que dormira com os sentidos postos na rua. Tentara, em vão, pregar os olhos para ver se o sono, ao de leve, apoderar-se-ia dele. Levantou-se, várias vezes, ao meio da noite, para tomar algum calmante, mas não vira nada. Foi para a cozinha ver se na geladeira encontrava algum leite do filho que ainda mamava, e nada.

Tentou o quanto podia todas as formas, chá, limão-água-e açúcar para se acalmar, e nada. Parecia que este era o pior dos dias que tinha tido em sua vida. Virou-se para a esposa, e esta dormia um sono de dar inveja. As crianças dormiam no chão ao lado, pois todas elas partilhavam com ele e a esposa o mesmo quarto de dormir.

A casa tinha apenas um quarto de dormir. A varanda é que fora adaptada para a dispensa e a cozinha, e uma outra parte, no lado direito da varanda, em direção ao norte uma pequena casa de banho para que os vizinhos também não pudessem ver a sua privacidade. Era assim que levava a sua vida com os seus.

Mas este dia era particularmente terrível. Tratava-se, sem dúvida, de dias daqueles que gostaríamos de esquecer para se sempre, sempre que possível.

Pensou no subemprego que tinha. Pensou na sorte maldita de ter aceitado casar-se, e ainda por cima, ter gerado quatro filhos. Quatro bocas para dar o sustento nesta cidade de Bissau? Pensou na sorte que poderia ter tido se tivesse emigrado nos idos anos de 1990. Talvez, repito talvez, tivesse se livrado da desgraça de 7 de Junho de 1998.

Muitas ideias fervilhavam na sua cabeça. Chegou a sentir uma enxaqueca. Não sabia o que fazer.

Não tendo alternativa, voltou para a cama, para o desassossego. Passou a mão nos cabelos da mulher. Tocou carinhosamente o rosto dos filhos que dormiam num colchão improvisado no chão. Olho-os e sentiu um duplo remorso. De um lado, o repentino pensamento que o fez arrepender-se de os ter; e, de outro, o fato de se ter casado com a mãe dos meninos. Dois rapazes e duas meninas. Disse os meninos, porque assim manda a regra da gramática desta nossa última flor do Lácio.

Dizia, com maestria, meu professor de Latim, no Liceu João XXIII, Paulo Ekine, que, na língua latina podia-se ter 21 substantivos – já que estamos no século XXI – e tivesse apenas um do género masculino, todos os demais, em termos de concordância, passam ao género masculino.

Que machista a língua latina. E o povo romano também o era? Ou é a tal vir, viri, homem macho – da bendita virilidade masculina – que impôs isto também na Gramática da nossa língua portuguesa?

Olhou o quarto com resignação.

O sol estava a despontar-se nos primeiros sinais vindos do céu. Olhou-se por inteiro como se estivesse a frente do espelho. Viu-se desnudado de sua dignidade.

Passara décadas a acreditar que tudo ia passar. Mas, hoje, particularmente, hoje, entendia, e admitia mais que entendia, que estava condenado a envelhecer-se sem que, no entanto, pudesse alimentar a esperança de que as coisas iam mudar.

A cada sol, uma bala; a cada chuva, um prato vazio. Vácua eram as promessas de interesses inconfessos.
Um pai impotente. Acordou sem ter dormido.

O homem de que falo chama-se Mydana. Ponho ípsilon para não se parecer com nenhum real. Vai à casa de banho fazer-se para mais uma faina. Pôs as roupas no corpo, colocou os sapatos nos pés. Ligou a rádio para escutar músicas.

Mas, quando desceu as escadas. A mulher chamou-o:

– Amor, vais assim…?

Ela não precisou dizer mais nada. O marido sabia. Sabia tanto que os passos minguaram-se. Perdeu a compostura. Apoderou-se dele um mutismo fatal.

Ele sabia que não tinha deixado dinheiro para a feira. E os filhos reclamavam do cuntango. Mas não tinha. Estava liso. O que responder à mulher? Titubeou-se, e lá do fundo de sim, respondeu-lha:

– Não, apenas estou é a dar umas voltas na vizinhança.

Custou-lhe mentir mas não tinha alternativa. Em seguida os miúdos acordaram. E quase que em uníssono choraram. E ele sabia tanto quanto ela do porquê daquelas lágrimas tão matinais quanto infantis.

Fitou os céus para ver se Deus o via. E lembrou-se que há anos que Deus não vira o seu rosto para a Guiné-Bissau. Lembrou-se das histórias de ninar que sua avó lhe contava. Quis buscar alguma força, por mínima que fosse, para safar-se deste momento. Mas tudo lhe parecia sul no azul. Paradoxo de doer o estômago.

Voltou-se para a esposa, e esta cabisbaixa, deu-lhe sinal que seguisse em frente, que fosse trabalhar. E pensou: deixo minha esposa com os meninos sem o café da manhã?

Pensou, pensou, pensou, pensou, e ficou só a pensar… e concluiu: isto aqui não é para pensar… Bissau, a cidade dos abutres, não é para menos fome, mas sim para mais miséria neste prostíbulo político em que se você não tem vínculo com o dono do prostíbulo você morre de fome como cão sem mandíbula.
A pose do raio

O piscar de olhos da mulher a dizer-lhe carinhosamente vá que resolvo, detonou ainda mais a sua impotência. Quis reclamar alguma coisa, mas não podia, mesmo que o quisesse. Afinal, nem ele tinha solução para a situação embaraçosa em que se meteu. Ou melhor, no infortúnio que se acometeu sobre ele.

Naná entrou no quarto. Passou em revista todas as buras que tinha. Sacudiu uma por uma. E numa delas puxou algumas notas e as moedas caíram-lhe no colo. Estava safa a família.

Assim que regressou do trabalho viu seus filhos fartos, mas não se contentou. Pensou no pior, mas conhecendo-o como a esposa o conhecia, entrou no quarto, e tirou de lá as buras, e mostrou-lhas.

Um sorriso escapou-lhe do rosto. Deu-lha o resultado de suas “viragens de ‘dubriagem'” pelo centro da cidade.

E mesmo tendo eles acostumados a cantar o refrão da fome, todos os dias, ao longo destas décadas de sol, suor, mentiras e sangue, embrenharam- se pelo quarto, mandando as crianças para irem brincar com seus colegas, e sem medo que viesse mais pimpolho, entregaram-se ao amor.

Afinal, na linguagem do amor não há necessidade de intermediário, nem de tradutor, e sim de saber ser intérprete do momento. Não há necessidade de cupido.

O amor, tudo foi feito muito quente e cheio de paixão. Devoraram-se um ao outro.

Finda a sessão de amor, entoaram em coro uníssono com os filhos, o refrão de fome:

JITU KA TEN!

KASABI NA PASA!

DEUS TEN!

SABI NA BIN MAMPASA!

Ai, que preguiça!, meu caro leitor d’O Democrata, podias imaginar que fosse um sexo rápido, frenético, mas não o foi. Foi longo, demorado e gostoso. E, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.


Por: Jorge Otinta