Depois de uma penosa caminhada pelos corredores judiciais, um percurso que afinal só gerou frustrações e fadiga tanto a nível interno como externo, o arrastar da crise política guineense continua a provocar danos graves à Guiné-Bissau – à dignidade das suas instituições, à imagem externa do seu Estado e à autoestima do seu povo. Tensão sem fim entre as instituições da República; rutura comunicacional entre protagonistas incontornáveis; um registo internacional que oscila a apreciação do Estado guineense pelos adjetivos “compaixão” e “desprezo”; e, enfim, a prolongada angústia dos guineenses. Tudo isto parece incompreensível, chocante e muito triste.
Ora, diante de uma crise com esta magnitude – interna (política), externa (de relações diplomáticas) e ética (crise do ethos, crise de responsabilidade moral) – o clamor, “acabem com esta crise, já!” é algo que me parece bem fundado. É uma expressão que tomei de empréstimo do título do último livro de Paul Krugman, Prémio Nobel de Economia – “Acabem com esta crise, já” -, livro em que o ilustre professor trata, claro, de uma outra crise…
Mas pode ser que o repetido fracasso das ”mediações” internacionais sirva, ao menos, para provocar um sobressalto de lucidez que, pela sua intensidade, devolvesse aos guineenses o sentido das suas próprias responsabilidades morais e políticas. O que – se assim fosse – já não seria nada mau. Mas, vamos a ver…
Recapitulemos, sinteticamente a lista dos pecados “mortais” do Acordo de Conacri:
1. Sem cláusulas de segurança – refiro-me aqueles incentivos que servem ou para premiar ou para punir -, o Acordo de Conacri expôs-se ao risco de ser transformado numa mera “carta de boas intenções”, um acordo de muito duvidosa eficácia. Ainda assim, isto é, apesar das ambiguidades e das brechas que contém e, sobretudo, por constituir uma boa base de trabalho para o futuro próximo, o Acordo de Conacri, do meu ponto de vista, não deve ser rasgado;
2. Todos levaram, para Conacri, os seus nomes “prediletos”, o que não foi nada bom. E mesmo em Conacri ainda continuaram a “chover” nomes primo-ministeriáveis, um desfile de nomes de quadros nacionais (localizados) e de quadros internacionais (globalizados). Sucedeu que, mal chegaram a Bissau – e ainda não tinha secado a tinta com que rubricaram o Acordo -, estalou-se imediatamente o “desacordo” entre os protagonistas, um “quebra-cabeças” ainda sem solução, até hoje. Tinham todos “muita pressa”, e – como se viu – a pressa nem sempre é boa conselheira. Oito meses depois, ainda se discutem nomes! Prova de que o processo que foi desencadeado em Conacri, no mínimo, não começou bem.
Pior ainda: ter passado oito meses a discutir se, afinal, houve ou se não houve “consenso, provou uma lastimável falta de atenção, uma vez que discutir “consenso” no pretérito é destrutivo para o propalado consenso mesmo que, na véspera, tal “consenso” tivesse sido realmente reunido. O consenso reitera-se, renova-se, constrói-se ou se reconstrói, não se discute. Discuti-lo é um contrassenso. Em vez de – caso tivesse havido dúvidas ou falhas de perceção -, incitar os protagonistas a regressarem à mesa do diálogo, fez-se exatamente o contrário: promoveu-se uma discussão estéril, “raivosa”, com insultos e tudo, na praça pública, nas ruas, nos blogues, entre os comentadores radicalizados, enfim, foi e ainda é a “guerra” por todo o lado!
O ambiente psicológico que, assim, se criou irresponsavelmente só serviu, pois, para afastar em vez de para aproximar atores políticos relevantes! Como é que não preveniram essa deriva negativa e suas consequências nefastas?
3. É verdade que a não reintegração, prévia, de “os 15” não tornava necessariamente impossível reunir consenso para formar governo, porém, tornava esse objetivo mais difícil de alcançar. Pior ainda: com “os quinze” na posição de “variável independente” tornou-se bastante atrativo trocar “princípio de consenso” por “princípio de maioria”, um recurso que, se for ativado, extravasaria o conceito que inspirou o Acordo que todos rubricaram. É claro que se pode substituir o modelo de “governo de consenso” por um modelo de “governo de maioria” mas, para isso, tal alternativa teria de estar prevista – e não está;
4. Ao Presidente da República, terá faltado, a meu ver, um pouco mais de prudência ao ter aceitado “levar nomes” a Conacri. Resultado: inibiu-se logo de se poder colocar acima das disputas partidárias, um “distanciamento” que, se fosse observado, teria reforçado quer a autoridade institucional do Presidente da República quer a legitimidade moral do seu magistério presidencial. Tanto mais quanto é certo que o “consenso interpartidário” e a “confiança presidencial” não são conceitos intermutáveis. Ou, dito de outro modo: seja por razões constitucionais (de direito), seja por considerações éticas (políticas) seja ainda por considerações prudenciais (de reduzir a exposição do Presidente da República a críticas e ataques desgastantes) era, no mínimo, contraproducente substituir consenso interpartidário por confiança presidencial.
Mais bem aconselhado, o Presidente da República teria podido, então, depositar sua confiança institucional nas duas únicas instituições relevantes para reunir consenso: o PAIGC (com “os 15” incluídos) e o PRS, que, como se sabe, representam mais de 96% do universo parlamentar guineense.
5. As duas equipas partidárias (do PAIGC e do PRS) é que apresentariam ao Presidente da República o nome do “capitão da equipa”, ou os nomes do capitão e do vice capitão da equipa e ainda do elenco governativo “bem calibrado”. Mas isso aconteceria só depois de terem feito um patriótico, competente e institucional “trabalho de casa”. Por conseguinte, reservando-se o Presidente da República no papel de os encorajar – de severamente os corresponsabilizar – nessa importante e intransmissível missão bipartidária de dar à Guiné-Bissau um governo inclusivo, um governo “normalizador”.
Custa-me muito pressupor que dois grandes partidos – o PAIGC e o PRS – se mostrassem totalmente incapazes de “baixar as armas” e formar um governo equilibrado em nome do interesse nacional! Foi uma pena, não se ter tentado isso. Mas – confiando no aforismo – “mais vale tarde do que nunca.”
Incluir, na busca de consenso governativo, menos atores políticos do que esses dois protagonistas partidários (PAIGC e PRS), teria sido uma medida “de menos”, logo, pecando por defeito; arrolar mais atores políticos além do PAIGC e do PRS teria sido uma medida “de mais”, logo, pecando por excesso. De facto, o voo à Conacri “levou” muita gente a bordo: esteve “sobrecarregado”, comprou ineficiência, gerou muito ruído num tempo que devia ser de máxima concentração intelectual e responsabilidade política;
6. O teste presidencial de “confiança pessoal” referido ao primeiro-ministro (fosse quem fosse o primeiro-ministro escolhido) resultaria de um exercício de supervisão temporalmente diferida: que o Chefe de Estado exercerá não a priori, não preventivamente, mas só no decurso do exercício de funções por parte do “capitão” da equipa governativa. Contudo, não se deveria excluir uma magistratura presidencial moderadora (bem diferente da iniciativa de escolha) em caso de, na pior das hipóteses, a equipa bipartidária “perder a cabeça” e apresentar um candidato inconveniente ao cargo de primeiro-ministro;
7. A ‘chave’ da normalização parlamentar (isto é, da normalização do funcionamento da ANP) está unicamente nas mãos do PAIGC e do PRS e de mais ninguém. Porquê? Porque são eles os únicos verdadeiros protagonistas parlamentares, pelo menos enquanto se “arrastar” esta conturbada IX legislatura. E mais: porque o Acordo de Conacri, se bem entendido, advoga uma saída da crise que seja institucional e de base parlamentar – uma travessia institucionalmente ordenada, passando através de um rio turbulento rumo à margem da estabilidade -, com que todos, aliás, se vincularam por escrito. Quer isto dizer que a pressão sobre a ANP é, claramente, uma pressão desfocada: é sobre os dois protagonistas parlamentares (o PAIGC e o PRS) – e unicamente sobre ambos – que se deveria e se deve exercer uma pressão normalizadora de incidência parlamentar;
E agora?
8. Frustrada a mediação internacional (aliás, frustrados que foram tantos bons ofícios por parte de diversas instituições e personalidades), por que não encarar, agora, a constituição de uma “mesa de diálogo nacional”, aliás, um dispositivo previsto no Acordo de Conacri? (A esse propósito, veja-se os pontos 4 e 6 do Acordo).
Esta “mesa de diálogo nacional” tentaria compensar a manifesta dificuldade (ou fadiga) da CEDEAO em “normalizar” a Guiné-Bissau, o que implicaria que, dadas as circunstâncias agravantes que hoje já são muito visíveis, teria (a “mesa de diálogo”) de ir um pouco além dos termos de referência que lhe foram inicialmente cometidos pelo Acordo de Conacri. Trata-se de um recurso que – diante do fracasso de tantos esforços já encetados -, viria agora configurar e ativar uma estratégia de contingência destinada a libertar o Estado de um bloqueio institucional que já durou tempo demasiado;
9. A “mesa de diálogo nacional” – que o Presidente da República criaria por decreto presidencial, se, porventura, aderisse a esta ideia – teria por incumbência o seguinte: promover o diálogo político entre o PAIGC e o PRS com vista à normalização institucional do Estado guineense; e, num segundo tempo, alargar a intercomunicação a outros atores (que sejam relevantes) com vista a operacionalizar a tematização inscrita no Acordo: programa do governo até as próximas eleições; responsabilidade e transparência; reforma da constituição; reforma da lei eleitoral; revisão da lei dos partidos políticos.
Não excluo a implicação da CEDEAO na criação desta “mesa de diálogo nacional”, embora considere que – do meu ponto de vista – ficaria melhor fazê-la nascer por uma decisão guineense autónoma, isto é, por decisão do nosso Presidente da República. Aliás, seria igualmente uma boa resposta endógena ao coro de apelos internacionais à resolução interna dialogada de uma crise politica que já degradou muito o Estado guineense. Mas pode ser que – dado o nível que já atingiu a crispação politica interna -, seja necessário um pequeno “empurrão” no bom sentido, por parte da CEDEAO;
10. Seja-me permitido emitir um voto: desejaria muito ver dois jovens na “mesa de diálogo nacional”, claro, se o Presidente da República decidisse criá-la: um representante do Conselho Nacional da Juventude (CNJ) e, outro, um representante da Rede Nacional de Associações Juvenis (RENAJ). Porquê? Para nos fazerem lembrar de que o melhor político é aquele que pensa mais na próxima geração do que aquele que se preocupa mais com a próxima eleição.
Enfim, estou convencido de que o funcionamento da “mesa de diálogo nacional” contribuiria significativamente para serenar os espíritos, baixar a temperatura política no país, relançar a intercomunicação política entre os protagonistas, sobretudo, conciliar a sociedade civil e o Estado. Para isso acontecer não se pede muita coisa: apenas humildade. E mais um bocadinho de bom senso. Com isso – acreditem! -, ganharia a Guiné-Bissau, a nossa terra.
Por: Fernando Delfim da Silva, docente e analista político guineense