segunda-feira, 23 de abril de 2018

POR UMA SOCIOLOGIA DE “IRANS” E "DJANBAKUSIS" COMO PROPOSTA DE REFORMA POLÍTICA E MUDANÇA SOCIAL NA GUINÉ-BISSAU


Por, Dr. Ricardino Dumas Teixeira, IN IBD
 
Vinda de uma família de classe popular, de origem rural e urbana, vários fatores influenciaram em minha socialização na Guiné-Bissau. Creio que uma das mais fortes influências foi o meu conhecimento na adolescência sobre a interpretação do “mundo da vida” da Guiné real a partir das crenças locais suficientemente numerosas, crenças essas aqui entendidas como espaço étnico e social de consagração ao sagrado como forma de resolver ou tentar resolver os nossos eventuais problemas existenciais em sociedade quer em situações de festa e momentos ritualísticos, como é o caso de “tokathur’ (ritual pós morte dos adultos em casa ou “tabanka” de parentes), quer ainda na nossa relação com órgãos públicos (do Estado e do governo, por exemplo) são marcadas pela intimidade com o “sagrado”, através de várias representações e práticas cotidianas.
 
É a partir de tais representações que a vida em sociedade se torna possível, em suas diversas formas e variações existentes. As estruturas étnicas e sociais guineenses mantiveram essa prática e, em muitos casos, assumiram um papel relevante na resolução de disputas e de solidariedade tanto no âmbito familiar e social, como na esfera estatal formal. Inclusive as pessoas academicamente formadas e socializadas em universidades e cidades europeias, que hoje vivem e trabalham na Guiné-Bissau, ou fora do país, em instituições altamente formalizadas, mantiveram de alguma maneira um forte atrelamento entre consagração ao “sagrado” e procedimentos burocráticos estatais ou institucionais. Por exemplo, um guineense confia no Estado, por meio de tribunal, pela sua lógica institucional formal para a resolução de conflitos, mas sempre que enfrenta uma situação difícil recorre “iran”, “djanbakusi” ou “muro”, encarnadas em pessoas ou espíritos que representam algum tipo de “poder simbólico” suficientemente praticado e reconhecido por diversos grupos étnicos e sociais no que tange ao predomínio de representações que regem as relações entre os indivíduos e as instituições formais estatais. Tais práticas ocorrem quer no que se refere a questão da identidade, daquilo considerado tipicamente guineense e daquilo que não é guineense na satisfação de alguma necessidade material ou simbólico. Todavia, não é algo fora da esfera racional, típico do homem guineense, portanto, tais representações não devem ser confundidas como folclóricas que distinguiria guineense de outros povos do mundo, mas algo que se renova cotidianamente em decorrência dos valores compartilhados que os indivíduos mantêm entre si e nas suas múltiplas relações com o Estado. No Brasil, também é assim. Conheço professoras e professores universitários que acreditam na existência desses espaços de representações e prática social e religiosa que indica a existência de tais manifestações, dentro e fora da universidade. Na Europa, diversas estruturas de autoridade foram objeto de estudo dos clássicos da Sociologia, como se verificou nos escritos de Durkheim e Weber sobre a religião. Na Guiné-Bissau a presença de “irans” e “muros”, heterogênea na sua composição e crenças compartilhadas, preserva uma ordem social e étnica fundamental, mas muito pouco pesquisada e discutida para uma proposta de reforma constitucional e política hoje vinculada estritamente a esfera legal-formal do Estado. A ausência dessa dimensão no debate político e acadêmico na esfera pública está intimamente relacionada a reprodução linear do modelo jurídico, social e político do Estado colonial, isto é, da “extroversão conceitual” da sociedade guineense, virada para fora, incapaz de promover uma reapropriação crítica das visões estabelecidas a priori sobre os problemas sociais e políticos presentes na sociedade guineense. Eu acredito seja possível (re)pensar a Guiné Bissau nesses moldes pela insuficiência do positivismo social e jurídico enquanto “pensamento único”. Nesse caso se coloca a necessidade de uma redefinição conceitual na forma de olhar a sociedade guineense, articulando, ainda que de forma tensa, o constitucionalismo sociopolítico a partir do qual emergem outras racionalidades sociopolítico.
 
UMA PROPOSTA PARA A REFORMA POLÍTICA GUINEENSE
 
É muito difícil acreditar que a esfera jurídica constitucional, por si só, seria capaz de resolver todos problemas da Guiné-Bissau. Houve várias tentativas de resolução de conflitos e (re)construção do Estado, tendo por base a “reforma constitucional” a partir do modelo português. A cultura de reprodução de modelos, inclusive o modelo de Estado proposto inicialmente pelo “movimento de libertação no poder”, que, embora defendesse a alteração radical das estruturas coloniais de poder, não conseguiu formular um modelo de Estado fora do referencial europeu, entendido como uma modernização, em que o “esgotamento da tradição” seria uma via política para o “desenvolvimento”. A construção do Estado guineense (numa vertente socialista, ainda que não assumida formalmente pelo movimento de libertação) pesou de maneira predominantemente forte, a ponto de se considerar as particularidades étnicas e regionais como problemas secundários que não poderiam ser confundidos com os “problemas gerais” de desenvolvimento e consolidação do Estado nacional. E, como consequência política, institucionalizou-se na Guiné-Bissau um “pensamento abstrato” acerca do caminho que deveria ser seguido, em que as etnicidades foram analisadas, em grande medida, de forma instrumental, ou seja, de cima para baixo. Isso porque apesar das ambições populares do movimento de libertação no poder, o modelo de Estado defendido era burguês.
Deste modo, a presença de "djanbakusis" e "muros", saberes anteriores a luta de libertação e ao colonialismo, foram entendidas pelo movimento de libertação e durante a democratização como encarnação folclórica dos grupos étnicos em contraposição à modernização nos moldes estritamente constitucional europeia, mas de matriz colonial, não captando de forma precisa e adequada as diversas instancias e suas funções mediadoras nas relações entre a consagração ao “divino” e o “procedimento burocrático” na Guiné-Bissau, na atualidade.
 
O argumento que eu defendo é que “irans”, “djanbakusis” e “muros” sejam vistos também como instâncias que potencializam o enfrentamento da crise política através da articulação entre consagração ao “agrado” e procedimentos burocráticos estatais, isto é, entre Guiné formal e Guiné real. Por exemplo, em juramento constitucional, na cerimônia de tomada de posse dos membros do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, ou mais concretamente, de presidente da república, do primeiro-ministro e presidente da assembleia nacional popular, eleitos pelo povo, o caráter sagrado de “irans”, “djanbakusis” e “muros” poderia ser articulado na medida em que sua violação é entendida por muitos guineenses como “sanção divino” pelo seu descumprimento em sociedade. Se, por um lado, a elite política “djinton” reconheça o caráter institucional de representação política constitucional e sua capacidade de resolução de problemas, por outro reconhece também seus limites operacionais, recorrendo frequentemente a “irans”, “djuanbakusis” e “muros” e às pessoas que supostamente detém o “poder simbólico”. A presença sagrada de “irans”, "djanbakusis" ou “muros” - que regimenta as normais e as relações étnicas e sociais na Guiné-Bissau - tem igual reconhecimento à semelhança do Estado na Guiné-Bissau, e deve ser considerado como uma alternativa para a reforma política. A crença compartilhada baseado em crenças locais e suas implicações para a mudança política não enfraquece os princípios do Estado democrático, mas sim, poderá constituir-se num ponto nodal com capacidade de facilitar o desenvolvimento da cultura de prestação de conta, impondo, assim, limites em defesa aos princípios da administração dos recursos públicos. Seria uma forma simples na qual ficaríamos a saber se tais poderes simbólicos da etnicidade guineense funcionam na esfera estatal formal como ocorre no "mundo da vida".