Rui Peralta, Luanda IN PG
Líbia, Sudão, Somália, Mali, pertencem á extensa lista das nações africanas que sofreram uma intervenção militar norte-americana e/ou europeia. Ao colonialismo seguiu-se o neocolonialismo, primeiro assente no aproveitamento das dinâmicas internas dos Estados africanos e, na actual fase, caracterizado pela destruturação das nações e sociedades africanas. A destruturação tem as suas reminiscências em contextos históricos anteriores, pertencentes ao colonialismo e/ou á primeira fase neocolonial e que não se completaram, não assumiram a sua forma final. É o caso da “balcanização” na Europa (no contexto histórico de finais do século XIX europeu), da “congolização” (os factos ocorridos no ex-Congo Belga, que levaram ao assassinato de Lumumba e que geraram um período de grande instabilidade no Congo, actual RDC, culminando com a ditadura de Mobutu) e da “somalização”.
Estas três etapas representam, também, uma mutação nas formas de racismo. Após a II Guerra Mundial o racismo cultural (etnema do neocolonialismo) substituiu o racismo biológico (etnema do colonialismo). O racismo cultural foi paulatinamente acrescido, a partir da segunda metade da década de 80 (quando se inicia o processo para terminar com o apartheid na África do Sul), pelo apartheid social, que apresenta-se sob diversas formas desde a questão religiosa (elemento amplificado com base no forma de racismo cultural, estruturado na ideologia da “guerra das civilizações”) até às formas mais requintadas e almofadadas do africapitalismo e das “reformas estruturais” do chamado “consenso de Washington”, que têm no Banco Mundial e no FMI os seus principais quartéis-generais, assessorados, claro, pela NATO.
A destruturação ganha forma como objectivo para África, na Somália (“somalização”, processo que foi experimentado, também, numa fase pré-negocial em Angola pela UNITA e que teve em Abel Epalanga Chivukuvuku – que parece continuar a ser recebido na Casa Branca com honras de chefe de Estado - o seu principal porta-voz, sob o olhar atento de Jonas Savimbi, não fosse o diabo tecê-las). Está presente na Líbia e na utilização do fascismo islâmico no continente (Mali, Níger, Nigéria, Camarões, Quénia e outros Estados) com o objectivo de “redesenhar a periferiaafricana”.
Esta nova forma que assume o neocolonialismo actual parte da velha tese colonial (e que já estava nas premissas neocoloniais da etnosofia da “negritude” de Senghor e da “autenticidade” de Mobutu, ou das ideologias de outros Estados africanos submetidos ao domínio neocolonial) de que algumas sociedades, culturas, religiões, estão dotadas de historicidade, enquanto outras não, afirmando que o “drama africano” consiste no facto do africano não “entrar o suficiente” na História. Neste sentido a nova tese neocolonial, a destruturação, retoma as ideologias imperiais da justificação da escravatura e da colonização. Desta forma legitima a presença dos colonizadores e certifica a inferioridade dos colonizados, através de um artefacto, que é a História Oral. A Europa é Histórica, tem tradição escrita. África é a-Histórica, a sua tradição é oral. Movida pelos seus valores intelectuais e espirituais a Europa desempenha, através da missão colonial, um movimento que provoca a entrada de África na História. Que ilusão falaciosa!
Esta leitura dos tempos do antanho prevalece, sob diversas capas e cores, assim como prevalece a sua função política e social que consiste em negar interacções. As interacções estão presentes em todas as dinâmicas da economia-mundo actual, ou melhor, todas estas dinâmicas são interactivas. Para neutralizar a interacção formalizam-se esquemas explicativos, fortemente hierarquizados. Estes esquemas representativos constituem a essência do racismo, tanto naquilo em que é constante, como nas suas mutações. Todos os rostos do racismo, desde o biologismo ao apartheid social, passando pelo culturalismo pretendem hierarquizar a humanidade. Por sua vez, cada rosto do racismo corresponde a um grau de relação económica, social e politica. Ao capitalismo monopolista correspondeu a escravatura e o colonialismo, como forma de dominação politica e económica, e o biologismo como forma de racismo. Ao capitalismo actual corresponde a destruturação – nova fase neocolonial - como forma de domínio e o apartheid social como forma de relacionamento. Pelo meio ficou o capitalismo que prevaleceu apos a II Guerra Mundial até á década de 90, caracterizado pelo primeiro modo de neocolonialismo como forma de dominação que o centro usava na periferia (e que ainda prevalece como dominante em África) e a “etno-cultura”, como racismo.
Esta nova orientação neocolonial não é uma simples opção ao nível da política externa mas, sim, a expressão de uma profunda alteração nas estruturas globais do capitalismo, em particular do capitalismo no Ocidente. O que suscitou a passagem do colonialismo ao neocolonialismo foi a monopolização do capitalismo. Da mesma forma, o que suscita a actual fase neocolonial - a da destruturação - está ligada ao aparecimento dos oligopólios globais e á extrema rapidez e fluidez de circulação dos capitais, assim como á consequente volatilidade a que os mercados internacionais estão sujeitos. A periferia africana necessita de ser redesenhada e a melhor forma de a redesenhar é destruturar o continente.
Destruturar o continente africano passa pela destruição da memória, também esta uma questão sociocultural. Para redesenhar mapas há que reescrever (ou "re-oralizar") o passado. E, para mistificar o passado, que se apague as memórias…