domingo, 21 de agosto de 2016

Crônica: SER ESCRITOR, UMA VOCAÇÃO SUBLIME!

Jorge Otinta
Na cidade de Farim, nos idos anos 70 a 80, vivíamos os quatro irmãos, eu Jorge, mais o Flávio (Dinho) – o lagarto de Farim -, o Zeca e o Daniel, quatro filhos do jovem casal, Ana e Raimundo Otinta. Lembrava, dentre tantas reminiscências de infância, das nossas amizades e desavenças de quatro irmãos que disputavam não só o amor dos pais para ser o mais preferido deles, mas também os estudos. Porque o nosso pai, o Otinta, depois de ter trabalhado, em Bissau, na Casa Gouveia, fora a Farim, a serviço militar, terminado este, entrou para o ensino.
 
A nossa mãe, doméstica, embora tendo sido educada na Casa de Formação, e entendia de Corte e de Costura, além de educação, preferiu cuidar dos filhos em casa. Tarefa chata, porém nobre. Pois coube a ela exigir de nós que fizéssemos os trabalhos de casa antes que fóssemos brincar com os colegas do bairro, Gan Sapo que, hoje, chamam de Bangladesh – sei lá porquê.

O nosso pai, por seu lado, tinha o hábito de fazer com que todos os seus filhos fossem capazes não apenas de estudar para compreender a matéria em questão, em termos de domínio do conteúdo ministrado nas aulas, mas que fossem, de um modo especial, capazes de os explicar a ele e à nossa mãe para que pudesse, efectivamente, analisar a nossa capacidade de oratória.
Ora bem, meu caro leitor d’O Democrata, talvez ali começava a nascer a minha vocação para a escrita, e ao mesmo tempo, para a arte do bem escrever e do bem falar. Não como um sujeito acabado, mas como um sujeito em permanente processo de construção de uma personalidade de escritura. E, portanto, escritural.
Lembro-me que, nos anos em que entrei para o pioneiro do PAIGC, como todas as crianças daquele tempo, uma das tarefas que meus formadores me imputavam a mim era, justamente, a récita de Poesia para os membros do Governo que vinham nos visitar, e como sempre, a contar as proezas da revolução pela independência nacional. E ficávamos, horas a fio, a ouvir discursos inflamados, e os admirávamos, dos heróis vivos da nossa pátria. E, ao mesmo tempo, ficávamos tristes pelos que tombaram nas matas do país, tudo em prol da liberdade.
Convivi com isso em Farim tal como em Biombo, onde acabei por concluir os meus estudos primários. Antes que, anos mais tarde, passássemos a viver em Quinhamel, Cidade Mel. Sabi sabolada.
Foram estes anos de recitador oficial dos pioneiros que acabei, a gosto ou a contragosto, não o sei dizer, a enveredar-me por este ofício – que é o campo da Literatura. Porém, ainda que paradoxalmente, gostava era das Ciências Exatas, pouco gosto tinha pelas Ciências Humanas ou outras áreas que fossem no domínio do Conhecimento científico.
1. Escritor é um homem realizado
Dizia eu que preferia as Ciências Exatas se tivesse tido a chance de fazer escolha. Não a tive. Quem o fez – julgo-o ou julgo-a um(a) grande FDP -, talvez pensasse que pudesse castrar as minhas faculdades intelectuais.
Danou-se. E enganou-se, a bem da verdade, esta estrutura espiritual hipócrita eclesiana.
Enveredei-me, a partir dos tempos de Pioneiro da Organização dos Pioneiros Abel Djassi (OPAD) e da Juventude Africana Amílcar Cabral (JAAC), pela Literatura, através de poesia de exaltação patriótica – um tanto ufanista.
Na Literatura encontrei o aconchego. Nela, aprendi a beijar os céus, a fazer amor com o mar, e a amar a terra. Este chão que nos acolheu quando viemos, pela primeira, a esta luz que ilumina nossos passos e a este sol que nos dá calor tanto do suor quanto do amor que recebemos de nossos pais e transmitimos aos nossos filhos. E, de preferência, na mesma intensidade.
A literatura, que é “a arte casada com o pensamento”, escreveu o exímio Fernando Pessoa tornou-se, há anos, na estrutura fundamental que permite minha realização pessoal, mas também profissional.
Ela é, sem sombra de dúvida, a base que sustenta a minha idoneidade, permitindo a materialização, sem mácula, dos sonhos, transformando-os em projetos realizáveis.
A realidade, sem capuz da mentira, parece-me ser o fim para que deveria tender toda a satisfação seja ela individual seja ela colectiva de um povo. Um povo sem literatura – o com conhecimento sobre a literatura, o cerne da cultura – é um povo perdido. Porque todo o esforço de realização cultural de um povo deve ser para dispender todo o esforço, mais nobremente humano, para que trilhe no caminho do verdadeiramente humano.
2. O dizer literário como construção da virtude cidadã
Estou em crer que sendo a literatura questão de engenho (invenção) e arte (criação) só pode ser coisa de Deus. Assim, todo o escritor, independentemente do adjectivo artista de que lhe designam, é um porta-voz de Deus, o primeiro grande artista, arquiteto, engenheiro, médico, escritor.
Quando um escritor diz uma coisa, ele está é a dar-lhe existência no mundo. Esta coisa passa a existir performaticamente.
Criar é conservar a virtude divina do ato primeiro da criação ex nihilo, isto é, a partir do nada. Quando criamos inventamos o mundo, e criamos as coisas, e nos reinventamos. E passa a fazer muito que isso: vencemos a morte tirando o temor dela sobre nossas consciências.
Deste modo, avançamos, evoluímos, e deixamos, sobretudo, de ser humanos para nos tornarmos divinos.
Eu sou mais eu, a partir do momento em que crio. Pois faço a obra existir, ela que estava dentro de mim a dormitar, e a pedir-me incessantemente para sair, para que que eu a dê vida. E vida em abundância.
Quando minha mão esquerda toca a minha mão direita, acontece o casamento entre o meu pensamento e o meu sentimento, e é por isso que a minha relação com as coisas que estão ao meu redor transformam-se. Mudam-se de feição e de valor.
Pois o ato da criação/invenção é uma sublimação.
Os meus desejos se tornam mais autênticos, minhas nervuras mais albas, minhas neuroses mais calmas como as águas do rio de Pinkaly, em Quinhamel.
O sexo – quero dizer o ato sexual – torna-se mais animalescamente humano. E as fantasias sexuais mais excitantes, mais expectáveis, e mais gratificantes.
E a natureza se transforma, já que nada se cria nela – tal como disse o físico francês, Lavoisier. E nisso de transformação estamos todos sujeitos a ela. Todo o ser humano deve tender-se às grandes transformações em sua vida, tornando-se cada dia melhor. É melhorando a si, em todos os aspectos, que avançamos humanamente em direcção à perfeição. Ao divino, queria eu dizer.
Se os campos são mais verdes, é porque a natureza está em constante processo de transformação. Trata-se do verde da cor dos mares do nosso solo pátrio, o verde das nossas florestas, e o verde cor da esperança que anima nossos sonhos de infância. Sonhos esses que perpassam todas as fases da nossa vida.
Ainda me lembro que quando vejo as flores, cheias de vida, colorindo a paisagem da nossa geografia humana, porque prenhes do ar da imaginação, sinto-me transplantado para uma nova galáxia literária. E a literatura se torna assim para mim num oceano de paixões. E, por falar em oceano de paixões, mais uma vez utilizo a água como metáfora, ela que é a seiva da vida, seja ela humana, seja ela animal e seja ela vegetal.
É das metáforas e das alegorias que se tecem textos literários, que se costuram história que alimentam nossa imaginação tanto real quanto ficcional.
Nossas vidas são permanentemente fruto da narrativa histórica de que é feita a nossa humana ambição.
Em suma, no Universo todo, todas as cores do arco-íris entram em sintonia. E tudo fica uma magnífica sinfonia. E passamos a viver num processo de contínuo celebração da vida celular.
Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.
Por: Jorge Otinta,
Poeta, ensaísta e crítico literário Guineense