Durante muito tempo, foi um tabu falar de escravatura em Portugal. Colóquio de historiadores começa hoje na Biblioteca Nacional.
A escravatura em África não é uma invenção levada nas caravelas quando o navegador português Diogo Cão chega à foz do rio Zaire, em finais do século XV. Esse já era o destino dado aos numerosos prisioneiros de guerra que decorriam das disputas tribais. Mas havia regras, e são essas regras que vão ser ignoradas.
“Até à chegada dos portugueses a coerência étnica é forte: o africano não escraviza membros do seu grupo sócio-étnico-político. Mas isso muda com estes incentivos vindos do Atlântico”, diz José Carlos Curto, historiador especializado no estudo da escravatura em Angola.
Este professor da York University, em Toronto, é um dos historiadores que vão apresentar as suas investigações sobre escravatura no Atlântico Sul num colóquio que tem lugar quinta e sexta-feira na Biblioteca Nacional, em Lisboa. Em termos de estudos historiográficos, Angola tem sido sobretudo abordada enquanto ponto de abastecimento de escravos para o tráfico transatlântico – entre 1710 e 1830, cerca de 1,2 milhões de pessoas terão sido “exportadas” de Luanda –, ao passo que a presença de escravatura no que é hoje o território angolano é uma problemática mais negligenciada; José Curto fala mesmo de “um silêncio estranho”.
“É muito mais fácil trabalhar questões relacionadas com o comércio de escravos no Atlântico Sul: as fontes são mais numerosas, de mais fácil acesso, etc.”, diz ao PÚBLICO. Além disso, existem poucos historiadores que se dedicam a esse período da história de Angola. Os que existem “são praticamente todos estrangeiros”, nota José Curto. Os escassos historiadores angolanos “ainda não têm interesse pelo período pré-colonial”, anterior à Conferência de Berlim em 1885, na qual as potências europeias acordaram entre si a divisão e ocupação do continente africano.
O atraso historiográfico não é uma exclusividade angolana. Como nota o organizador do colóquio, Diogo Ramada Curto, historiador e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (e colaborador do PÚBLICO), existem “algumas resistências” e “preconceito” em Portugal contra o tratamento da questão da escravatura. “Existiu uma guerra cultural que, nalguns círculos, perdura até hoje. Nem todos os círculos aceitam debater o envolvimento do império português na escravatura”, sob o risco de isso ser confundido com um discurso anti-português.
Esse preconceito não é detectável na investigação historiográfica de outros países europeus que estiveram envolvidos no tráfico esclavagista?
“O facto de Portugal ter tido até tão recentemente um império e esse império ter estado ligado a novas formas de escravatura – formas de trabalho forçado, formas de trabalho a contrato que escondiam formas de escravatura – fez com que o preconceito eventualmente pudesse ficar mais enraizado”, nota Diogo Ramada Curto. “Houve uma necessidade política de justificação do colonialismo. Em muitos casos, o contributo de uma ideologia luso-tropical, que pensava o império português como uma excepção relativamente aos outros – um império mais doce, menos violento e menos racista – fez com que se fugisse ao tratamento destes mesmos assuntos. Eles surgem esporadicamente, de uma forma extremamente defensiva, em declarações e manifestos, muitos deles com repercussão internacional, onde se procura vincar que Portugal também foi pioneiro na abolição da escravatura. Embora a prática de trabalho forçado nas colónias portuguesas tenha durado até ao início da década de 1970.”
Durante muito tempo, foi um tabu falar de escravatura em Portugal, e quem o fazia no interior da própria academia era marginalizado, conclui o historiador. Mas Diogo Ramada Curto, que em 2010 criou a primeira cadeira de História da Escravatura numa universidade portuguesa, acredita que o facto de o colóquio contar com o apoio e colaboração de “tantas instituições” – o Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) da Universidade Nova de Lisboa, a Fundação para a Ciência e Tecnologia, o Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e a Biblioteca Nacional– é “um sinal de que as coisas estão a mudar positivamente”.
A crescente visibilidade que o debate sobre a escravatura, associado à temática do racismo, tem adquirido no plano internacional poderá estar a exercer uma espécie de pressão sobre as instituições, conscientes de que a indiferença resultará em irrelevância.
“A profusão de estudos sobre a história da escravatura nos dias de hoje do ponto de vista internacional é muito grande e Portugal não pode ficar alheio a esse movimento”, explica o organizador do colóquio. Os arquivos portugueses, que “estão cheios de informação por explorar”, podem contribuir “extraordinariamente” para a historiografia internacional.
“A história é uma forma de nos libertarmos do passado, não é uma forma de retirar lições do passado do ponto de vista moral, do ponto de vista de uma divisão entre bons e maus”, defende Diogo Ramada Curto.
Um historiador não julga. Quando se pergunta a José Curto o que é que a sua investigação permite concluir sobre a responsabilidade africana na experiência da escravatura, ele responde: “Somos todos humanos. Tudo depende das circunstâncias.” Escravizar ou ser escravizado, por exemplo. “Se existe uma possibilidade de ganhar dinheiro em escravizar outros africanos, então é isso que se faz. Essa problemática – escravizar o outro – não se levanta naquele tempo em termos morais. Isso é uma coisa mais recente.
Foto: Postal com comerciantes portugueses no Dondo, Angola, no início do século COL. PRIVADA DE FILIPA VICENTE