terça-feira, 19 de abril de 2016

GRANDE ENTREVISTA: FERNANDO DELFIM DA SILVA AO DIÁRIO DE BISSAU

Para mim, esse acórdão do Supremo Tribunal da Justiça está completo, não carece de mais nada, não precisa de mais aditamentos. De maneira que, tentar arrastar mais ainda um processo judicial esgotado, parece-me ser algo exagerado e contraproducente, talvez mesmo politicamente perigoso. O Estado, do meu ponto de vista, precisa de se “renormalizar” no funcionamento das suas instituições, sem mais demoras, refutando, ao mesmo tempo, a tese das chamadas “eleições gerais”.
 
Grande Entrevista: Fernando Delfim da Silva
 
Como comenta o desfecho judicial produzido pelo último acórdão do Supremo Tribunal da Justiça?
 
Para quem – como eu – não é jurista nem pretende sê-lo, e que nem sequer defendeu uma solução judicial para a crise político-partidária que a expulsão de 15 deputados veio agravar – o paradigma que o Supremo Tribunal da Justiça acaba de fixar, pelo seu acórdão n° 03/2016, salvo melhor opinião, é este: não se pode decretar perda de mandato de qualquer deputado por causa do voto ou da opinião que (o deputado) tiver expressado; nenhum plenário o pode fazer – nem o da ANP, nem o plenário de qualquer outro órgão, incluído o plenário do próprio Supremo Tribunal da Justiça – a menos que (um tal plenário) resolvesse pontapear a Constituição da República da Guiné-Bissau. Certo? Parece que sim. (Não se trata de a Comissão Permanente ter ou não ter competência para isso. O certo – se bem entendi -, é que nenhum órgão tem uma tal competência). Em face disso, todas as outras questões, ainda que legítimas – prováveis questões legítimas que estão ainda em aberto -, não deixam de ser laterais, secundárias, subordinadas diante do paradigma constitucional agora reafirmado. É assim que eu vejo as coisas. Aliás, é caso para perguntar: que seria de uma ordem politica em que o parlamento funcionasse com base não tanto na (nossa) Constituição do Estado de Direito Democrático mas sob o comando de directivas partidárias? Tal deriva – se vingasse – teria representado um regressar, à força, ao velho artigo 4° que consagrava o “PAIGC como força política dirigente da sociedade e do Estado” – um preceito constitucionalizado no passado e que, a meu ver, fez todo o sentido historicamente (isto é, valeu ontem), mas que actualmente (isto é, nos dias de hoje), mesmo na sua forma disfarçada, é completamente inaceitável. É que a nossa Constituição já não é uma constituição partidocrática. De tal maneira que entre uma determinação interna (estatutária) sobre militantes (de um partido) e uma determinação externa (constitucional) sobre Deputados (da Assembleia Nacional Popular) existe mais do que uma mera linha ou mera relação de continuidade. Expulsar do PAIGC é uma coisa; expulsar do parlamento é outra coisa muito diferente.
 
Ergue-se agora com elegância e com gravidade um importante desafio ético e que é intelectualmente estimulante: de saber se é justo que o PAIGC dê menos garantias de liberdade aos seus militantes do que as garantias de liberdade que a Constituição dá aos deputados? Este desafio ético pode ser reformulado da seguinte maneira: o PAIGC como partido da libertação (nacional, colectiva) deve ou não deve assumir-se como partido da liberdade (individual, de cada militante)? Eis a questão: vamos ter de lutar pela liberdade (dos militantes do PAIGC) empunhando a bandeira da Declaração Universal dos Direitos do Homem tal como lutamos ontem pela libertação nacional empunhando a bandeira da Carta das Nações Unidas? A questão está de pé.
 
Quer dizer que a Comissão Permanente (CP) da Assembleia Nacional Popular (ANP) deu um “tiro no próprio pé”?
 
Sem dúvida, na medida em que, pela deliberação que tomou, acabou por atingir a dignidade da ANP e dos deputados, precisamente coisas que a CP deveria ter sabido defender com muita firmeza, e não soube. A Nona Legislatura ficou manchada por causa disso. Enfim, são coisas para esquecer, mas, primeiro, temos de aprender com os erros, temos de saber tirar as lições dos erros que cometemos, sob pena de os voltar a cometer. Por isso mesmo, quero chamar a atenção apenas para o lado político da atitude errada da Comissão Permanente, de 25 de Janeiro, escusando-me de comentar a avaliação judicial que já foi feita pelo acórdão, nomeadamente, no argumentário (jurídico) a propósito das inconstitucionalidades material e formal (orgânica) em que caiu aquele organismo parlamentar (a CP). A parte politica que aqui trago é esta: a Comissão Permanente é um organismo inter- partidário uma vez que o parlamento também o é. É assim: porque, havendo duas “grandes” bancadas parlamentares (de dois grandes partidos parlamentares, o PAIGC e o PRS), a Comissão Permanente tem necessariamente uma composição política não monopartidária.
 
E ainda que, para funcionar, bastasse a esse órgão da ANP (a CP) apenas reunir um determinado quórum (isto é, um número mínimo/suficiente de seus membros), ainda assim, o bom senso politico – sem precisar de muita ciência politica – exigia mais do que uma definição aritmética de quórum. Era preciso juntar à definição formal de quórum (que se faz pela contagem das cabeças presentes) uma, por assim dizer, outra definição de quórum, que é informal – a sua definição política. “Sim, aritmeticamente, temos quórum, mas atenção: porque estão a faltar aqui todos os representantes do segundo maior partido, então, vamos adiar, é preferível não forçar as coisas”. Era assim que se deveria proceder: não apenas aritmeticamente, mas ponderando também as circunstâncias políticas. Isso faz parte daquelas coisas que se aprendem na escola política da juventude, que, infelizmente, hoje já não temos. E parece que, em adulto, é tarde de mais para tomar o “chá” de crescimento político.
 
Mas diz-se que o problema é outro, e que o último acórdão ainda não é suficiente para fechar a questão? Quer comentar?
 
Eu não posso responder directamente à questão alegadamente de “insuficiência” substantiva do último acórdão, até porque não sou competente para falar em nome do Supremo Tribunal da Justiça. Da minha parte, estou convencido que, com o referido acórdão (o n° 03/2016), saímos finalmente do “túnel judicial” como, aliás, sempre pedi: que se saísse do túnel judicial – que se se libertasse do “efeito redutor de túnel” – para regressar à política, para voltar ao diálogo político dentro e fora do PAIGC. Para causas políticas da presente crise, defendi sempre soluções também politicas. Devo, no entanto, salientar que, por este último acórdão, o Supremo Tribunal da Justiça deu um contributo imenso à dignificação da condição de Deputado – de todos os eleitos do povo, não apenas os Deputados do PAIGC – no contexto de um Estado Constitucional de Direito Democrático na medida em que protegeu firmemente o primeiro de todos os valores políticos da república – o valor da liberdade.
 
Para mim, esse acórdão do Supremo Tribunal da Justiça está completo, não carece de mais nada, não precisa de mais aditamentos. De maneira que, tentar arrastar mais ainda um processo judicial esgotado, parece-me ser algo exagerado e contraproducente, talvez mesmo politicamente perigoso. O Estado, do meu ponto de vista, precisa de se “renormalizar” no funcionamento das suas instituições, sem mais demoras, refutando, ao mesmo tempo, a tese das chamadas “eleições gerais”. Mas nada impede que se façam hermenêuticas partidárias de textos judiciais e hermenêuticas judiciais de estatutos partidários – como exercícios livres, como suposições livres, não vinculativas. Enfim, esta batalha judicial – entre a liberdade do Deputado e a partidocracia – deveria, a meu ver, considerar-se encerrada nos precisos termos que foram fixados pelo acórdão n° 03/2016.
 
Não vê o risco de absolutizar o princípio da liberdade do Deputado, que pode pôr em perigo a ordem interna partidária, a disciplina das instituições?
 
Tem razão, esse risco existe, mas nem teórica nem praticamente decorre da posição que tenho defendido. É, por assim dizer, um risco inerente à própria liberdade, ao exercício da liberdade. E estarei também na linha da frente sempre que a liberdade for exercida no mau sentido, isto é, irresponsavelmente. Mas no caso em apreço, o problema não é propriamente disciplinar; trata-se de um sério problema político, de construção ou preservação da unidade do partido, que não se resolve fazendo expulsões. Se fosse apenas um problema disciplinar, a escolha teria sido óbvia. Quando tivermos (qualquer um de nós) de optar – utilizando aqui o esquema de Michael Novak – entre “a tradição da licenciosidade (liberdade para se fazer o que se quer) ou a tradição da Liberdade ordenada (liberdade para se fazer o que se deve); entre a liberdade fora da lei ou a Liberdade dentro da lei; entre a liberdade de “deixar andar” ou a liberdade de autocontrolo”, neste modelo, não seria difícil escolher.
 
Lembro-me agora de uma conferência que dei aos jovens no palácio do Governo, no dia 11 de Abril de 2015, tendo como moderador o Dr. Vítor Mandinga. Distribui, naquela altura, a todos os participantes uma brochura contendo, além de alguns pequenos artigos da minha autoria, o excerto de um texto de Michael Novack sobre a dialéctica da liberdade que citei no parágrafo anterior. Seria bom que os partidos – que deveriam ser verdadeiras escolas de militância política e de cidadania activa e responsável – trabalhassem muito mais nesse sentido.
 
Voltando ao meu ponto. Defendo a liberdade, mas não defendo a irresponsabilidade. E sobretudo acho que devemos combater o medo – o medo contra o qual Amílcar Cabral tanto lutou, em vão. Porque no dia em que o Deputado começar a “ter medo” de se exprimir livre e responsavelmente, então, nesse mesmo dia a democracia começa a morrer. Liberdade responsável, sim; medo, não. Não alinho, por conseguinte, na ideia partidocrática de que o titular do mandato não é o Deputado mas, sim, o partido; um partido-titular de todos os mandatos que – por esse modelo -, daria e retiraria mandatos a deputados que, por medo de serem arbitrariamente expulsos, deixariam de poder exprimir-se livremente. Assim, não dá.
 
Insisto: hoje, no PAIGC, o problema é mais de unidade do que de estabilidade; é um problema de diálogo construtivo e não de imposição de castigos. Como, noutra ocasião já disse: invocando a “estabilidade” para justificar o injustificável, cometeram-se as maiores barbaridades, crimes, patifarias, enfim, um sem número de violações muito graves dos Direitos Humanos na Guiné-Bissau tanto no passado mais remoto como no passado mais recente. E isso não deve continuar.
 
Para quem – como eu – não é jurista nem pretende sê-lo, e que nem sequer defendeu uma solução judicial para a crise político-partidária que a expulsão de 15 deputados veio agravar – o paradigma que o Supremo Tribunal da Justiça acaba de fixar, pelo seu acórdão n° 03/2016, salvo melhor opinião, é este: não se pode decretar perda de mandato de qualquer deputado por causa do voto ou da opinião que (o deputado) tiver expressado; nenhum plenário o pode fazer – nem o da ANP, nem o plenário de qualquer outro órgão, incluído o plenário do próprio Supremo Tribunal da Justiça – a menos que (um tal plenário) resolvesse pontapear a Constituição da República da Guiné-Bissau.
 
E agora?
 
Agora é tempo da política, encerrado que está, a meu ver, o tempo judicial. É tempo de derrubar muros, de lançar pontes, depois de termos passado tempo demasiado caminhando dentro do “túnel judicial”. É tempo político, em especial, é tempo do Presidente da República na sua qualidade de Chefe de Estado que, sendo presidente de todos os guineenses, pode falar com todos. É a última instância com que podemos contar no reatamento de uma lógica de diálogo abrangente com vista a construir compromissos políticos equilibrados e duráveis entre atores políticos relevantes.
 
É tempo maduro para a ANP, através do seu plenário, procurar refazer-se do golpe que lhe foi desferido por uma CP (agora judicialmente desautorizado), que se tinha reunido em forma “mini” (isto é, na ausência dos representantes do outro grande partido parlamentar) para tomar uma decisão unilateral, ilegítima e errada.
 
Mas também é tempo político de outros atores interagirem, entre eles, na busca conjunta, comunicativa, de boas soluções politicas. Para o PAIGC, em particular, é tempo de tentar voltar ao seu primeiro princípio, que não deve continuar a ser adiado nem, menos ainda, esquecido. É tempo de levantar as expulsões também no PAIGC, tentar “reunir” o PAIGC, reformatar o governo e concluir a bom porto a nona legislatura de inclusão.
 
O que entende por regressar ao “primeiro princípio”?
 
O primeiro princípio do PAIGC é, operativamente, “unidade e luta”. Unir para lutar, lutar para unir. Quem desistiu de “lutar para unir”, por assim dizer, não é propriamente o melhor exemplo de militante do PAIGC. Relativamente a isso, pode formular-se a seguinte máxima partidária: quanto maior é a responsabilidade que se tem na hierarquia do PAIGC maior deve ser o empenhamento discursivo e prático na “unidade e luta”.
 
Tudo isso parece muito teórico. Como passar destas ideias para a prática?
 
Através, por exemplo, de um congresso. Acho que está na hora de se pensar na realização de um congresso, antecedido de um grande debate interno. Justificação: um partido que – tendo saído do seu VIII congresso há uns escassos dois anos (Fevereiro de 2014 a esta data) já “perdeu” um secretario-nacional que é um deputado; já “perdeu” dois vice-presidentes que são deputados; e já “perdeu” mais outros treze deputados – todos expulsos -, é um partido que precisa de abrir um debate interno, que a meu ver deveria culminar em congresso para (o PAIGC) tentar recompor-se, reconciliar-se, restaurar a sua unidade interna. Isto constitui um desafio enorme e complexo, mas que me parece ser um desafio pertinente, inadiável.
 
Acalenta alguma esperança num PAIGC “recomposto” pelo seu próximo congresso, do tipo de “Congresso de Cassacá”?
 
Eu tenho esperança no PAIGC, também no PRS e na classe política em geral. Porque nenhum partido, tomado individualmente, pode retirar o país do fundo em que se encontra encravado. Nenhum partido isoladamente pode recuperar o Estado guineense do naufrágio que sofreu. Mas não sou um doido para ser optimista. Os passivos são muito maiores do que os activos, o que quer dizer que há um défice enorme, muito profundo no seio do conjunto da classe politica: défice de pensamento político, défice de pensamento económico, enfim, um grande défice de ideias geradoras de um pensamento realmente estratégico para a nossa terra. E é preciso muita vontade política para conseguirmos superar tantos défices ideológicos e políticos estruturais. E não tenho a certeza de que tal vontade politica já existe.
 
Mas temos de reconhecer que, dentre todos os partidos políticos guineenses, o PAIGC é, tanto para o bem como para o mal – ontem, hoje e no futuro próximo – aquele partido que tem muito maiores responsabilidades. Quanto a isso, creio eu que ninguém tem dúvidas. Mas, atenção: um congresso do PAIGC pode não ser uma panaceia (pode não ser uma solução para os nossos males), como, aliás, já aconteceu com vários outros congressos que, de facto, pioraram muito a situação ideológica e política interna do PAIGC. Quer dizer que fazer congressos não basta para resolver os problemas, se bem que sem congresso também não é possível reabilitar ideológica, política e organicamente o PAIGC.
 
É por isso que, tem todo o sentido, a meu ver, fazer-se o congresso ainda este ano – em 2016 ou logo no primeiro trimestre de 2017, para não ter de o fazer nas vésperas das próximas eleições legislativas, em 2018, quando todos já andam a sonhar com as cadeiras do poder. Mas não está garantido que “tipo” de PAIGC sairá do próximo congresso em termos ideológicos, políticos e orgânicos. Não sendo otimista, e sem querer ser um pessimista, diria o seguinte: infelizmente é muito mais fácil o PAIGC “continuar na mesma”, por força da inércia, numa situação em que, o que anda mal, vai ficando cada vez pior (é mais fácil isso continuar a acontecer), do que, ao contrário: conseguir reformar o partido no bom sentido. E sem uma boa reforma do PAIGC – considerando o peso que tem o PAIGC no aparelho do Estado guineense -, torna-se altamente improvável levar a cabo qualquer boa reforma do Estado.
 
“Ergue-se agora com elegância e com gravidade um importante desafio ético, e que é intelectualmente estimulante: de saber se é justo que o PAIGC dê menos garantias de liberdade aos seus militantes do que as garantias de liberdade que a Constituição dá aos deputados? Este desafio ético pode ser reformulado da seguinte maneira: o PAIGC como partido da libertação (nacional, coletiva) deve ou não deve assumir-se como partido da liberdade (individual, de cada militante)? Eis a questão: vamos ter de lutar pela liberdade (dos militantes do PAIGC) empunhando a bandeira da Declaração Universal dos Direitos do Homem tal como lutamos ontem pela libertação nacional empunhando a bandeira da Carta das Nações Unidas? A questão está de pé.”
 
Quer dizer que o futuro da Guiné-Bissau depende muito do PAIGC?
 
Exactamente. É preciso recordar que o PAIGC tem conseguido combinar coisas que pareciam inconciliáveis – a capacidade de ganhar eleições. Note-se que em cinco eleições legislativas multipartidárias, o PAIGC ganhou quatro vezes; e dessas quatro vitórias eleitorais, o PAIGC conquistou três maiorias absolutas – e (combinado com isso, o PAIGC tem revelado) uma grande incapacidade de cumprir suas promessas, de catalisar o desenvolvimento económico ou, ao menos, de reduzir a pobreza que grassa no país. E, apesar disso, vai ganhando as eleições. Os militantes do PAIGC deveriam perguntar: por quê essa persistente frustração, esse fracasso continuado? Por quê esse ciclo vicioso sem fim, de confiança do povo no PAIGC e persistente fracasso do PAIGC? Começar um ciclo virtuoso, para quando? Esta é a pergunta que merece ser posta, a pergunta realmente estratégica neste momento, muito mais importante do que andar a pedir eleições gerais e correr para o poder. A resposta inicial a esta pergunta-chave, que ainda não é propriamente uma resposta operativa, deveria talvez ser esta: o povo guineense que repetidamente renova sua confiança no PAIGC precisa de um PAIGC de sucesso, não apenas de um PAIGC de poder, não apenas de um PAIGC ganhador de eleições mas um PAIGC de desenvolvimento económico e justiça social. Como fazer isso – eis a questão.
 
Está a reconhecer muitas incertezas no horizonte – sem um congresso à vista do tipo de Congresso de Cassacá, e com uma democracia que anda coxa?
 
Sem dúvida. Para haver Cassacá falta-nos um Cabral e falta-nos gente de calibre dos extraordinários “rapazes da China”: Domingos Ramos, Francisco Mendes, Nino Vieira, Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira… Esses é que “fizeram” Cassacá – os três “mais velhos” (Amílcar Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral) apoiados por essa plêiade de jovens combatentes que tinham chegado da China (da Escola Político/militar de Nanquim) – os melhores quadros naquela altura. Foram eles – mais o Rui Djassi – que constituíram a primeira direcção do PAIGC que saiu do primeiro congresso (realizado no local de Cassacá, região de Tombali, sul da nossa terra). Foi uma direcção do PAIGC unida e estável durante dez anos de sucessos, de vitórias, apesar dos sofrimentos e muitos sacrifícios próprios de uma Luta armada. Extraordinário! Dois desses quadros morreram cedo – o Domingos Ramos e o Rui Djassi. Mas para esse núcleo duro, para essa equipa de ouro da “unidade e luta” do PAIGC – subiu o extraordinário Pedro Pires, fechando, assim, o conjunto dos membros do Conselho de Guerra. Veja-se – em contraponto disso – o que está a acontecer no PAIGC menos de dois anos depois do Congresso de Cacheu (o oitavo congresso)! Pode dizer-se que do congresso de Cacheu até hoje o PAIGC ainda não encontrou “um dia” de sossego.
 
Pode especificar melhor este ponto?
 
Vou tentar. O problema é que tornou-se muito difícil conseguir reunir “meia dúzia” de quadros estratégicos, disponíveis para pensar o seu próprio país (a Guiné-Bissau) sem fazerem cálculos de poder pessoal, sem fazerem cálculos à volta de cargos governamentais que, custe o que custar, querem ocupar. Numa palavra: vendo como estão as coisas, não será nada fácil reformar o PAIGC. Mas é preciso voltar a tentar, e essa tentativa passa por um debate interno que deve culminar em congresso. Cabral e os seus camaradas conseguiram reformar o PAIGC a partir de Cassacá; hoje não sei, mas é preciso tentar…
 
Agora vamos à questão da democracia guineense. Baseada numa suposição idealista ou optimista, a democracia chegou com uma pretensão legítima: de desenvolver economicamente o país, de criar uma sociedade mais justa, de construir uma ordem politica mais equilibrada e inclusiva. E é assim, porque não faria muito o sentido ter “democracia apenas para ter democracia”, isto é, implantar a democracia como quem adopta uma moda política, para apenas se entrar na moda política “moderna”.
 
A verdade é que a nossa democracia – que tem vinte anos de idade – falhou em toda a linha: não promoveu o desenvolvimento económico, não foi eficaz no combate à pobreza, criou muitas injustiças sociais e políticas, não geriu bem as tensões políticas de modo a evitar golpes militares, enfim, a democracia guineense resumiu-se, até hoje, a uma serie de carnavais eleitorais que a comunidade internacional vai pagando talvez para ficar de “boa consciência”. Pode dizer-se que, quase tudo o que no passado andou mal, ficou ainda pior com a chegada da democracia. É caso para dizer que esta democracia foi uma desilusão. E uma democracia que piora quase tudo, é uma democracia que perde legitimidade, o que não quer dizer que ditadura seja melhor, nada disso.
 
O problema é que devíamos tentar repensar o nosso modelo económico e o nosso Sistema político. E fazer isso – olhando para a nossa classe política em geral – é muito difícil.
 
Está a concluir esta entrevista num tom muito pessimista?
 
Pelo tom, sim. Como já disse, não sou um doido para ser otimista. Face à dimensão dos desafios técnicos, políticos e económicos da Guiné-Bissau, penso ser muito difícil alguém declararse um otimista. Mas eu não sou propiamente um pessimista. Se fosse um pessimista não estaria sempre a lutar, sempre dentro da “arena” politica nacional há mais de quarenta anos. Porque como dizia o “simples africano” (Amílcar Cabral); “o arroz coze-se dentro da panela” – a primeira máxima que resulta da ética cabralista.

Fonte: gbissau.com