sábado, 10 de junho de 2017

PASSAGEIROS PUXAM JANGADA A MÃO PARA TRAVESSAR O RIO QUE SEPARA GUINÉ-BISSAU E A GUINÉ-CONACRI

A história da jangada do ‘Porto Quatchi’ pode parecer uma lenda, mas é a pura verdade que retrata o nível de negligência e do desprezo pela vida humana da parte dos Estados da Guiné-Bissau e da Guiné-Conacri, pondo em risco a vida dos seus cidadãos que diariamente são obrigados a atravessar aquele rio de água doce que separa os dois territórios.
 
Da parte guineense, o local é conhecido como ‘Porto Quatchi’, porque está na aldeia de ‘Quatchi’ que se encontra a 11 (onze) quilómetros da cidade de Pitche (sector), região de Gabú, leste da Guiné-Bissau. Enquanto que da parte Conacri-guineense é conhecido com o nome de ‘Porto Fulamory’, uma aldeia que faz parte de secção de Cumbidia, sector de Koundara, região de Boké, norte da república vizinha da Guiné-Conacri.
 
O repórter do semanário ‘O Democrata’ constatou, na sua viagem àquela zona, que a situação da jangada puxada à mão não é desejável. O repórter participou do serviço de puxar o cabo de aço da barcaça para atravessar o rio.
 
JANGADA DO ‘PORTO QUATCHI’ – UM PERIGO IGNORADO PELAS AUTORIDADES
 
A jangada apresenta sinais de ‘ferro velho’ e foi colocada no rio há muitos anos, para facilitar a travessia da população. Mas depara-se há 20 anos com problemas técnicos que o impede de navegar sozinha, razão pela qual os passageiros, em particular os homens, são obrigados a puxar o cabo. Para além de passageiros, transporta igualmente viaturas, motorizadas, bicicletas e outras cargas. O rio é atravessado também por pequenas pirogas a remo que na maioria das vezes são guiadas por crianças.
 
A jangada pertence à república vizinha da Guiné-Conacri que igualmente colocou a tripulação que apenas fala o dialético local fula e um pouco do francês e do crioulo. O capitão, um homem de aparentemente 50 anos e que reside na aldeia de Fulamory.
 
A receita da jangada é partilhada da seguinte forma: Quando a jangada carrega a partir do território da Guiné-Bissau, a receita resultante da cobrança das viaturas, estimada no valor de mil francos cfa cada, fica apenas para as autoridades guineenses. Se a jangada estiver do lado da Guiné-Conacri, as receitas obtidas revertem-se a favor dos agentes do país vizinho. As pessoas são isentas de pagar, portanto a cobrança limita-se apenas às viaturas e motorizadas.
 
O capitão encarrega-se de controlar a máquina e orientar os passageiros para puxarem o ‘ferro velho’. Para fazer navegar a jangada, foram colocados dois cabos de aço que travessam o rio, um por cima e outro por baixo da água. Depois lançou-se uma corrente de aço da jangada para o cabo, através de uma roldada que facilita a movimentação do cabo.
O velho capitão chega de manhã e abre as quatro tampas localizadas em diferentes zonas para ver o nível da água que a inundou durante a noite e, se não houver muita água, dá orientações para se iniciar o transporte.
 
Mas se houver grande quantidade da água no interior, orienta um dos seus assistentes (ajudantes) para ligar um pequeno gerador (motobomba) para retirar água do interior. Um processo que leva, às vezes, até meia hora (30 minutos) ou mais.
 
Após o embarque das viaturas e passageiros, o capitão convida os homens, com exceção de idosos, a ficarem do lado em que se encontra o cabo de aço. Os passageiros e os marinheiros assistentes fazem o serviço de puxar a mão o cabo, ao sinal do marinheiro responsável. O slogan é o seguinte: S’il vous plait on va: un, deux, trois – hó, hó. Mas naquele dia, apesar de todo o esforço mobilizado pela equipa, a jangada não se deslocou, devido ao excesso de peso. Transportava três viaturas, algumas motorizadas, bicicletas e mais de 40 pessoas.
 
A situação originou protestos de alguns passageiros, que insistentemente apelavam ao capitão que ordenasse que uma viatura fosse desembarcada, para evitar o pior (tragédia) que poderia acontecer. Era a primeira saída do dia e a barcaça estava do lado do território concacri-guineense e deparava-se com dificuldades.
 
O capitão parecia julgar que as pessoas simplesmente não queriam puxar a barcaça e decidiram passar todos a falar. Tomou uma atitude de não descer nenhuma viatura. Prosseguiu mais, em francês e numa voz agressiva: Vocês devem puxar e evitar falar, porque a tragédia é destino de DEUS! Adiantando ainda desta forma: On va! Le bon dieu va nos protéger – Vamos a isso! O bom Deus vai proteger-nos!
 
Havia muita dificuldade em deslocar a jangada e as pessoas começaram a ficar impacientes, porque tinham medo que algo de estranho lhes acontecesse. Por isso, algumas pessoas inclusive as mulheres, crianças e alguns homens que iam vender os seus produtos no território nacional (Pitche), resolveram descer e atravessar o rio em pirogas a remo.
 
O capitão percebeu que a situação era séria. Mandou os seus assistentes descer a água para colocar uma barra sob a jangada. Enquanto os passageiros puxavam o cabo, eles tentavam empurrar com a barra até que se conseguiu deslocá-la. Então foi possível puxar a jangada pelo cabo para travessar o rio.
 
Essa rota é pouco usada devido à ineficácia da jangada, mas também o estado da estrada que está degradada não favorece as viaturas. Depois da travessia para o território conacri-guineense, a viatura percorre 95 quilómetros para apanhar a estrada principal que liga o sector de Koundara à cidade de Boké, que também é em terra batida.
 
A maioria dos transportadores que faz a ligação para aquele país vizinho prefere a rota de Buruntuma (Guiné-Bissau) e Koundara (Guiné-Conacri). Alguns viajam até Cuntabani (sector, de Quebo), depois alugam motorizadas para seguir viagem até à cidade de Boké.
 
CONDUTORES CONFIRMAM QUE HÁ MAIS DE 20 ANOS QUE A JANGADA É PUXADA A MÃO
 
Numa conversa mantida com alguns dos condutores que frequentam aquela via, confirmaram ao repórter que há mais de 20 anos que aquela jangada é puxada a mão pelos próprios passageiros.
 
Lamentaram, no entanto, a situação que, segundo eles, representa um perigo para a vida dos passageiros daquela rota, pelo que apelam às autoridades dos dois países no sentido de pensarem numa alternativa, a fim de evitar uma eventual tragédia que poderá ceifar vidas de dezenas de pessoas.
 
“Diz-se que o porto não é profundo, mas a verdade é que na época das chuvas o nível da água sobe, tornando a travessia difícil de navegar. É preciso que seja colocada aqui uma jangada a motor e que tenha a capacidade para transportar viaturas sem grandes dificuldades, já que não têm condição de fazer uma ponte para ligar os dois países e consequentemente facilitar a travessia das populações”, assegurou um condutor da Guiné-Bissau que viaja com frequência para a região de Boké.
 
Explicou ainda que, desde as primeiras eleições gerais da Guiné-Bissau em 1994, quando transportou as urnas para algumas aldeias de Boé, na sua primeira viagem por aquela rota, viu a jangada a ser puxada a mão.
 
Assegurou ao repórter que na altura ficou surpreendido com a situação, mas pensou que o navio padecia de um pequeno problema técnico que poderia ser resolvido em pouco tempo.
“Até agora é a mesma situação. Os passageiros são obrigados a puxar o cabo para travessar o rio. Isso é grave. Pior é quando a jangada leva três viaturas e mais algumas motorizadas”, notou.
 
MARINHEIROS AFIRMAM QUE EMBAIXADORES E GOVERNANTES PUXARAM CABO PARA ATRAVESSAR RIO
 
A situação da barcaça do “Porto Quatchi” gerou discussões entre os passageiros e os marinheiros. No centro da polémica está um mal entendido, porque alguns passageiros entendiam que as autoridades deveriam colocar uma jangada nova naquele rio, o que facilitaria a travessia das pessoas. Perante o clima da discussão de um lado e, por outro, o esforço dos passageiros que puxavam o cabo, o repórter tentou captar uma imagem dos mesmos com uma câmara fotográfica. Alguns passageiros curiosos tentavam também com os seus telemóveis, mas isso não foi permitido por parte de um dos marinheiros que reagiu violentamente proferindo insultos em francês e em fula contra o repórter e os curiosos.

 O jovem recusou que o ambiente fosse fotografado, nem pelo repórter e muito menos pelos passageiros, alegando que não era admissível fazer fotografias.

 Acrescenta ainda que aquela situação não era de hoje, dado que muitas pessoas passaram por ali, inclusive o Embaixador da Guiné-Conacri em Bissau. Governantes dos dois países e inclusive alguns até ajudaram a puxar o cabo para travessar o rio.

“Muitas pessoas do governo e homens ligados diretamente ao Presidente Alpha Condé passaram por aqui e muitas promessas foram feitas sobre essa jangada, mas que resultaram em nada. Não adianta em nada fotografar as pessoas que puxam a jangada, dado que não vai mudar nada!”, lamentou o jovem marinheiro, revoltado com a situação.
 
Por: Assana Sambú
Foto: AS