Wole Soyinka |
A visão de Senghor se baseava em uma unidade racial – de fundo biológico ou espiritual – inerente aos africanos e seus descendentes espalhados pelo mundo; uma visão que, sob o nome de Negritude, veio a angariar tanto aderentes quanto dissidentes e que, devido exatamente à fixidez racial em que se baseava, hoje figura apenas como um momento histórico da formação intelectual africana moderna.
Por: Adriano Moraes Migliavacca |Estado da Arte
No artigo “A negritude e o universal africano”, ao esboçar em traços gerais a oposição do escritor nigeriano Wole Soyinka às teorias da Negritude de Léopold Sédar Senghor, comentei brevemente que o próprio Soyinka desenvolvera, em resposta, uma proposta para uma identidade africana unificada, algo que fosse além da já sabida multiplicidade de povos e culturas. É provável que isso tenha feito surgir na mente de mais de um leitor uma interrogação sobre que proposta seria essa. Lembramos que a visão de Senghor se baseava em uma unidade racial – de fundo biológico ou espiritual – inerente aos africanos e seus descendentes espalhados pelo mundo; uma visão que, sob o nome de Negritude, veio a angariar tanto aderentes quanto dissidentes e que, devido exatamente à fixidez racial em que se baseava, hoje figura apenas como um momento histórico da formação intelectual africana moderna.
É importante lembrar que uma proposta como a de Senghor surge em um continente que, sendo formado por culturas diversas muitas vezes sem relações umas com as outras, precisa unificar-se diante do mundo que se globaliza e, acima de tudo, afirmar uma identidade como resposta ao colonialismo que lá ainda imperava e os estereótipos negativos atribuídos aos povos que ali viviam. Outras propostas, como a unidade histórica baseada em uma herança comum no antigo Egito, avançada pelo historiador, também senegalês, Cheikh Anta Diop, surgiram. Já em uma África descolonizada, o dramaturgo, poeta e ensaísta Wole Soyinka desenvolveu ao longo de sua carreira sua própria ideia de um mundo africano, algo que não se baseasse nem no determinismo racial de Senghor, nem em um hipotético passado comum, mas que possibilitasse um futuro unificado.
Wole Soyinka
Nigeriano da cidade de Abeokuta, Wole Soyinka pertence ao grupo étnico iorubá, um dos mais numerosos da Nigéria e cuja cultura veio a adquirir uma proeminência notável ao redor do mundo. Muitos dos descendentes de africanos no Novo Mundo, particularmente no Brasil, são de origem iorubá, e as religiões de matriz africana que se praticam modernamente nas Américas devem à religião iorubá seus principais elementos e divindades. Soyinka estava a par dessa mundialização da religião de seu povo. Estudante de grego na Universidade de Ibadan, na Nigéria e, depois, de história da tragédia no mundo ocidental, na Universidade de Leeds, não teve dificuldades em divisar entre os orixás iorubanos e as divindades gregas semelhanças profundas. Foi também com o intento de buscar um caráter trágico próprio à cultura iorubá que Soyinka pesquisou as tradições teatrais de seu povo, algumas em regiões bastante recônditas, e, com esse material, formou a ideia de “teatro ritual” – arte híbrida onde liturgia e dramaturgia não se separam e onde o mito é constantemente reproduzido. É nesse teatro que o poeta nigeriano encontra as principais características da visão de mundo iorubá – a mesma que sugere como unificadora para uma mentalidade africana.
A predominância da religião iorubá no Novo Mundo, mesmo em face da presença de outros povos africanos que para cá foram trazidos, é uma questão que se coloca a inúmeros estudiosos da área, que propõem hipóteses explicativas de fundo histórico. No entanto, para além dos fatos históricos, deve-se levar em conta que uma origem comum para toda a humanidade é algo intrínseco à própria mitologia iorubá, permitindo a ela um alargamento de seus horizontes. Soyinka sem dúvida conta com essa característica ao propor as divindades de seu povo como paradigmas pan-africanos, como símbolos que possam representar a África diante do mundo. Afinal, como disse certa vez o crítico inglês Robert Fraser, para Soyinka, ser iorubá significa afirmar uma solidariedade para com toda a humanidade. Tal cosmopolitismo Soyinka vê também como endógeno à própria cultura de seu povo, já que, o autor nigeriano nos informa, a religião iorubá na sua Nigéria natal é bem-sucedida em acomodar elementos estrangeiros e modernos sem grandes conflitos.
A visão de mundo iorubá, segundo nos é apresentada por Soyinka, inclui no presente tanto passado quanto futuro em um ciclo que engloba tanto os vivos quanto os ancestrais e ainda aqueles que virão a nascer. Nessa circularidade, o ser humano tem papel ativo, pois são seus atos que garantem sua continuidade. A pluralidade de divindades e manifestações da religião iorubá faz com que Soyinka a proponha como modelo de tolerância e respeito às diversas culturas, especialmente em situações de conflito entre diferentes mentalidades; há nessa pluralidade uma lição para o combate à violência que acompanha guerras religiosas e muito do terrorismo que delas resulta. Foi por isso que, em 1991, em uma aula inaugural na Universidade de Ibadan, Soyinka encorajou uma plateia majoritariamente cristã a estudar a religiosidade do continente africano. No entanto, é preciso dizer, Soyinka não necessariamente recomenda a prática da religião iorubá, mas sim uma versão secularizada em que as divindades iorubás se tornam símbolos e paradigmas para um entendimento mais amplo e plural da espiritualidade humana, algo que o crítico nigeriano Biodun Jeyifo chamou de “agnosticismo poetizado”, cujo modelo Soyinka não hesita em revelar: o místico e poeta persa do século XII Omar Khayyam, autor cuja leitura o poeta nigeriano recomenda, “em doses altas”.
Essa proposta não é convincente para todos. O filósofo ganês Kwame Anthony Appiah, admirador da obra de Soyinka, acredita que a quantidade de culturas diversas na África francamente impossibilita que se postule a existência de qualquer mundo africano unificado. Os deuses iorubás, nos diz Appiah, são, para grande parte das culturas africanas, tão estrangeiros quanto os indianos ou gregos e, exatamente por isso, não seria possível tomar alguma das culturas africanas como paradigma comum. No entanto, como já foi dito, o mundo africano de Soyinka, se não pode contar com um passado em comum para todos os povos e culturas do continente, aponta, na verdade, para o futuro e, para além dos próprios africanos e seus descendentes no Novo Mundo, busca compreender a humanidade inteira.
Adriano Moraes Migliavacca é tradutor e doutorando em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Por: Adriano Moraes Migliavacca |Estado da Arte
No artigo “A negritude e o universal africano”, ao esboçar em traços gerais a oposição do escritor nigeriano Wole Soyinka às teorias da Negritude de Léopold Sédar Senghor, comentei brevemente que o próprio Soyinka desenvolvera, em resposta, uma proposta para uma identidade africana unificada, algo que fosse além da já sabida multiplicidade de povos e culturas. É provável que isso tenha feito surgir na mente de mais de um leitor uma interrogação sobre que proposta seria essa. Lembramos que a visão de Senghor se baseava em uma unidade racial – de fundo biológico ou espiritual – inerente aos africanos e seus descendentes espalhados pelo mundo; uma visão que, sob o nome de Negritude, veio a angariar tanto aderentes quanto dissidentes e que, devido exatamente à fixidez racial em que se baseava, hoje figura apenas como um momento histórico da formação intelectual africana moderna.
É importante lembrar que uma proposta como a de Senghor surge em um continente que, sendo formado por culturas diversas muitas vezes sem relações umas com as outras, precisa unificar-se diante do mundo que se globaliza e, acima de tudo, afirmar uma identidade como resposta ao colonialismo que lá ainda imperava e os estereótipos negativos atribuídos aos povos que ali viviam. Outras propostas, como a unidade histórica baseada em uma herança comum no antigo Egito, avançada pelo historiador, também senegalês, Cheikh Anta Diop, surgiram. Já em uma África descolonizada, o dramaturgo, poeta e ensaísta Wole Soyinka desenvolveu ao longo de sua carreira sua própria ideia de um mundo africano, algo que não se baseasse nem no determinismo racial de Senghor, nem em um hipotético passado comum, mas que possibilitasse um futuro unificado.
Wole Soyinka
Nigeriano da cidade de Abeokuta, Wole Soyinka pertence ao grupo étnico iorubá, um dos mais numerosos da Nigéria e cuja cultura veio a adquirir uma proeminência notável ao redor do mundo. Muitos dos descendentes de africanos no Novo Mundo, particularmente no Brasil, são de origem iorubá, e as religiões de matriz africana que se praticam modernamente nas Américas devem à religião iorubá seus principais elementos e divindades. Soyinka estava a par dessa mundialização da religião de seu povo. Estudante de grego na Universidade de Ibadan, na Nigéria e, depois, de história da tragédia no mundo ocidental, na Universidade de Leeds, não teve dificuldades em divisar entre os orixás iorubanos e as divindades gregas semelhanças profundas. Foi também com o intento de buscar um caráter trágico próprio à cultura iorubá que Soyinka pesquisou as tradições teatrais de seu povo, algumas em regiões bastante recônditas, e, com esse material, formou a ideia de “teatro ritual” – arte híbrida onde liturgia e dramaturgia não se separam e onde o mito é constantemente reproduzido. É nesse teatro que o poeta nigeriano encontra as principais características da visão de mundo iorubá – a mesma que sugere como unificadora para uma mentalidade africana.
A predominância da religião iorubá no Novo Mundo, mesmo em face da presença de outros povos africanos que para cá foram trazidos, é uma questão que se coloca a inúmeros estudiosos da área, que propõem hipóteses explicativas de fundo histórico. No entanto, para além dos fatos históricos, deve-se levar em conta que uma origem comum para toda a humanidade é algo intrínseco à própria mitologia iorubá, permitindo a ela um alargamento de seus horizontes. Soyinka sem dúvida conta com essa característica ao propor as divindades de seu povo como paradigmas pan-africanos, como símbolos que possam representar a África diante do mundo. Afinal, como disse certa vez o crítico inglês Robert Fraser, para Soyinka, ser iorubá significa afirmar uma solidariedade para com toda a humanidade. Tal cosmopolitismo Soyinka vê também como endógeno à própria cultura de seu povo, já que, o autor nigeriano nos informa, a religião iorubá na sua Nigéria natal é bem-sucedida em acomodar elementos estrangeiros e modernos sem grandes conflitos.
A visão de mundo iorubá, segundo nos é apresentada por Soyinka, inclui no presente tanto passado quanto futuro em um ciclo que engloba tanto os vivos quanto os ancestrais e ainda aqueles que virão a nascer. Nessa circularidade, o ser humano tem papel ativo, pois são seus atos que garantem sua continuidade. A pluralidade de divindades e manifestações da religião iorubá faz com que Soyinka a proponha como modelo de tolerância e respeito às diversas culturas, especialmente em situações de conflito entre diferentes mentalidades; há nessa pluralidade uma lição para o combate à violência que acompanha guerras religiosas e muito do terrorismo que delas resulta. Foi por isso que, em 1991, em uma aula inaugural na Universidade de Ibadan, Soyinka encorajou uma plateia majoritariamente cristã a estudar a religiosidade do continente africano. No entanto, é preciso dizer, Soyinka não necessariamente recomenda a prática da religião iorubá, mas sim uma versão secularizada em que as divindades iorubás se tornam símbolos e paradigmas para um entendimento mais amplo e plural da espiritualidade humana, algo que o crítico nigeriano Biodun Jeyifo chamou de “agnosticismo poetizado”, cujo modelo Soyinka não hesita em revelar: o místico e poeta persa do século XII Omar Khayyam, autor cuja leitura o poeta nigeriano recomenda, “em doses altas”.
Essa proposta não é convincente para todos. O filósofo ganês Kwame Anthony Appiah, admirador da obra de Soyinka, acredita que a quantidade de culturas diversas na África francamente impossibilita que se postule a existência de qualquer mundo africano unificado. Os deuses iorubás, nos diz Appiah, são, para grande parte das culturas africanas, tão estrangeiros quanto os indianos ou gregos e, exatamente por isso, não seria possível tomar alguma das culturas africanas como paradigma comum. No entanto, como já foi dito, o mundo africano de Soyinka, se não pode contar com um passado em comum para todos os povos e culturas do continente, aponta, na verdade, para o futuro e, para além dos próprios africanos e seus descendentes no Novo Mundo, busca compreender a humanidade inteira.
Adriano Moraes Migliavacca é tradutor e doutorando em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.