segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

UM PASSO MAIS PARA O CAOS

O ano de 2016 representou, em todo o Médio Oriente, mais um passo em direcção ao caos que os estrategos de Washington e do poder absoluto dos Estados Unidos sobre a globalização – independentemente do ocupante da Casa Branca – dizem ser construtivo.

José GoulãoAbrilAbril, opinião, em PG

Nos anos 90 do século passado, sobre os escombros da União Soviética e quando a unipolaridade sob tutela norte-americana reinava, com poder absoluto, em quase todo o mundo, o Dr. Paul Wolwovitz cavalgou as nuvens do tempo e sentenciou: «O nosso principal objectivo é evitar o ressurgimento de qualquer rival que signifique uma ameaça semelhante à da anterior União Soviética, tanto na ex-URSS como em qualquer outro lugar. Esta é a base da nossa nova estratégia de defesa regional, e exige o nosso esforço para evitar que uma potência hostil domine uma região cujos recursos, sob um poder consolidado, sejam suficientes para gerar a energia global».

O Dr. Wolfowitz não foi apenas o secretário adjunto da Defesa de Bush filho na preparação da tragédia do Iraque, na verdade a mãe de todas as situações dramáticas que, país após país, território sobre território, enformam o Médio Oriente de hoje, sem dúvida a tal região «cujos recursos, sob um poder consolidado, sejam suficientes para gerar a energia global».

O Dr. Wolfowitz, um discípulo da autêntica seita do filósofo neoconservador Leo Strauss, que trabalhou sobre a «teoria do caos construtivo», é um ideólogo que está por trás de todas as últimas administrações norte-americanas, Bill Clinton e Obama incluídas, seja em pessoa, seja através das correias de transmissão da CIA. O Dr. Wolfowitz é, desde os anos 60, um incansável teorizador em torno da ideia de que não existe verdadeira política que não esteja geminada com os cérebros da inteligência, isto é, sem ser guiada pelos serviços de informações e espionagem.

Pois o ano de 2016 representou, em todo o Médio Oriente, mais um passo em direcção ao caos que os estrategos de Washington e do poder absoluto dos Estados Unidos sobre a globalização – independentemente do ocupante da Casa Branca – dizem ser construtivo. Com isso querem dizer: «esqueçam tudo o que existia antes e que tenha sido traçado pelos acordos Sykes-Picot: os Estados Unidos e Israel ditarão sobre a nova ordem regional que estão a delinear».

Isto é, para todos os efeitos, a França, o Reino Unido, a Alemanha, a União Europeia e todos aqueles que se julgam importantes mais não são do que piões de uma estratégia da qual receberão muito mais facturas e sofrimento do que migalhas: «o nosso principal objectivo é evitar o ressurgimento de qualquer rival (incluindo, claro, a União Europeia), sentenciou o Dr. Wolfovitz; a Arábia Saudita, as petroditaduras do Golfo e a Turquia funcionam como financiadores e instrumentos operativos da estratégia, executada através do cada vez mais multifacetado aparelho imperial da NATO; e o terrorismo islâmico é uma arma útil e disponível consoante as circunstâncias, com a vantagem acrescida de manter a Europa amarrada ao medo, à crise migratória, à crise financeira, de identidade e respectivas sequelas, reduzida a um parceiro dócil e dependente.

Restam a Rússia e os seus laços internacionais, sobretudo com a China, como eventual «rival a ressurgir». Daí o golpe na Ucrânia, o cerco do território russo por uma NATO tão «defensiva» que se transformou no mais poderoso sistema agressivo de sempre; por isso a operação de guerra, terrorismo e mentira montada na Síria; aí onde, pela primeira vez, a estratégia de «caos construtivo» esbarrou num obstáculo sério.

O que aconteceu então no Médio Oriente, em 2016, no caminho para o caos?

Na Palestina, ainda e sempre o problema central de direito internacional e direitos humanos da região, o mundo e as suas instituições, com realce para a ONU, continuam a dar cobertura à gradual ocupação de todo o território por Israel, através do processo ilegal de colonização. Constrói-se assim o Estado-âncora do novo mapa em elaboração, à medida que o regime sionista se enraíza na sua versão autoritária, racista e fundamentalista religiosa; enquanto a Autoridade Palestiniana se afunda através da marginalidade institucional – e por vezes colaboracionista – do poder de Mahmmud Abbas; e Gaza definha por causa do cerco israelo-egípcio e nas mãos do sistema autoritário e retrógrado do Hamas, uma sequela da Irmandade Muçulmana. Ao mesmo tempo, a ONU atinge o seu nível historicamente mais degradante ao colaborar, na prática por omissão, no processo ilegal de colonização e ao emprestar a sua tutela à grande mistificação internacional que é o «quarteto para a paz», encabeçado por essa figura repugnante chamada Tony Blair.

O Iraque já não existe. No território que definia o país acumulam-se poderes religiosos, tribais e de entidades terroristas, compondo um mosaico de protectorados sectários que evolui tendencialmente para a partilha prevista com a invasão norte-americana em 2003, então temporariamente abandonada e agora retomada em registo mais lento. Um poder xiita em Bagdad, uma entidade colaboracionista curda com sede em Arbil, e um Sunistão em construção através da operação da conquista de Mossul, com base em minorias turcomanas teleguiadas por uma Turquia islamo-fascista, são as três regiões planificadas para o território, embora o caos reinante esteja longe de garantir a ordenação desejada pelos «cartógrafos». Al-Qaida, Daesh e os seus múltiplos tentáculos, conduzidos por senhores da guerra obedecendo a influências várias, formam uma constelação que, a par dos serviços úteis que vai cumprindo, provoca incómodas entropias à sistematização pretendida em Washington e Telavive. Por exemplo, Estados Unidos e Israel pretendem uma transferência dos grupos terroristas mais poderosos, de modo a concentrarem a capacidade operacional na Síria, mas os últimos episódios militares, tanto em Alepo como em Palmyra, têm corrido muito mal à Al-Qaida e ao Daesh, apesar de este ter sido reforçado pelos efectivos recolocados a partir de Mossul.

No Afeganistão, tal como em 2001, a guerra e a ocupação da NATO continuam, agora à entrada de 2017. Neste território, onde os poderes fácticos garantem o mais proveitoso e global tráfico de ópio e heroína de que há memória, a NATO tem testado a integração de novos ramos operacionais, sejam eles exércitos privados com as chancelas de empresas de segurança transnacionais, ou grupos de mercenários criados para contornar os esforços militares governamentais e privatizar, a par da guerra, as baixas por ela provocadas.

Também na Líbia, onde o caos continua a reinar, sem afectar a indústria petrolífera e garantindo, por outro lado, o tráfico de seres humanos que procura alargar esse caos humanitário à Europa, se expõem os resultados da integração de novos tipos de ramos operacionais na NATO. Neste caso, trata-se de grupos terroristas salafitas, aparentados com o Daesh e a Al-Qaida, que disputam entre si a Tripolitânia e a Cirenaica, registando-se até o caso penoso de a ONU ter dado o seu apoio a facções que transitoriamente pretendem invocar legitimidade em Trípoli.

O Egipto, remilitarizado depois da «primavera» e da Irmandade Muçulmana, transformou-se num importante braço às ordens da Arábia Saudita e de Israel; parceiros estes que estabeleceram relações diplomáticas pudicamente clandestinas em 2016, e que colaboram intimamente na instauração do caos e do terror no Iémen, com o aval de Washington.

Os partidários e obreiros do caos no Médio Oriente juntaram-se em força contra a Síria, onde têm obtido êxitos – destruição e caos propriamente dito – mas depararam com uma barreira que não encontraram em mais nenhum lado na região: resistência aguerrida da legitimidade nacional e institucional.

A guerra dos Estados Unidos, Israel, União Europeia, Turquia e petroditaduras do Golfo contra a Síria tem sido acompanhada por uma tenebrosa campanha de mentiras e propaganda, que teve o seu auge em 2016 com as mistificações em torno da batalha de Alepo. A comunicação social mainstream finge chorar pelas vítimas da região leste de Alepo como nunca chorou pelos destroços humanos provocados em Damasco e arredores, em Raqqa, em Latáquia, em tantas comunidades junto à fronteira com a Turquia ou mesmo na pequena e mártir Maalula, a aldeia cristã onde se fala o aramaico do tempo de Jesus Cristo. O que a propaganda chora em Alepo, na verdade, é a derrota da Al-Qaida, apresentada como «oposição síria», responsável pela tragédia humanitária na segunda maior cidade do país, surdamente apoiada por todas as potências estrangeiras envolvidas na agressão. Alepo demonstrou que o objectivo principal da invasão estrangeira não é combater os grupos terroristas verdadeiramente operacionais – e que tutelam os ditos «moderados» –, mas sim mudar o regime em Damasco e dividir o território em entidades sectárias, a exemplo do Iraque. Liquidando-se assim o maior adversário militar de Israel.

Os acontecimentos na Síria trazem um esboço do pior pesadelo do Dr. Wolfowitz, o «ressurgimento de um rival», e logo a Rússia. Entrou um pauzinho na engrenagem do caos.

Apesar disso, grande parte do Médio Oriente herdado do acordo de Sykes-Picot passou à história; porém, a estratégia do «caos construtivo» esbarrou num braço-de-ferro que significa a ameaça de um conflito de grandes proporções. Esse braço-de-ferro e as tragédias multiplicadas pelas situações caóticas no Médio Oriente são as heranças deixadas por 2016, o ano em que a deriva do capitalismo globalizado abriu as portas da Casa Branca à incógnita Donald Trump.

Foto: Alepo antes da libertação (bairro de al-Shaar, Outubro de 2016)Créditos/ sputniknews