quinta-feira, 16 de agosto de 2018

ENTREVISTA AO SOCIÓLOGO E INVESTIGADOR MIGUEL DE BARROS

Criou o artigo "RAP KRIOL(U): O pan-africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo Verde" com o sociólogo Redy Wilson Lima. O que o levou a fazer esta investigação? Para si, que importância tem este retorno à invocação de um homem de acção, da revolução? Tendo escrito este texto e tendo investigado sobre o papel de Amílcar Cabral no rap, de que modo sente que o mesmo é motivador, e o que tem levado o rap a despertar consciências e a fazer agir?

R: A nossa preocupação não foi estudar o papel de Cabral. O nosso enfoque foi sobre a condição dos jovens nos/dos dois países que partilharam um processo histórico e revolucionário comum e nessa perspectiva ver como as ideologias estão a ser recriadas num contexto social diferente e adverso. Nesta base, procuramos sobretudo tentar apreender como os jovens fora do espaço de protagonismo político-partidário, nas periferias e nas diásporas guineenses e cabo-verdianas que não tiveram nenhum contacto com formação ideológica durante o seu processo educativo, resgatam e reconstituem um novo espaço de afirmação cultural e identitária africanista e que lhes empoderam enquanto produtores da sua própria consciência social, cívica e política. É isso que encontramos através de intervenção desses MCs na música RAP.

Essa intervenção constitui, por um lado, um manifesto cultural e político mobilizador baseada na contestação da governação incapaz de superar o subdesenvolvimento devido à corrupção e ao autoritarismo que os relega para “transições incertas”, por outro, o RAP é a base da unidade da sua acção construtiva para conquistar o espaço público. Figuras como Cabral, Nkrumah, entre outros... são ícones com quais dialogam para não só captarem atenção, mas também para tonar o debate mais endógeno a partir de uma agenda local africana, isso é transversal tanto nos jovens que encontramos em na Guiné-Bissau e em Cabo-Verde como nos contextos das suas diásporas.

Tem um artigo sobre “Participação Política Juvenil em Contextos de “Suspensão” Democrática: a música rap na Guiné-Bissau”. O que aprendeu e como é que o papel do rapper e o seu estudo podem ser essenciais para que possamos agir?

R: o estudo foi feito no quadro de um projeto de investigação “Missões Exploratórias sobre Juventudes no contexto transnacional dos países da CPLP: processos de identificação, expressões culturais e mediações” no qual estavam presentes investigadores de Brasil, Portugal, Cabo-Verde e Guiné-Bissau, cujo objectivo era explorarem os dilemas das juventudes contemporâneas, as múltiplas formas de expressividades e agências juvenis, bem como as representações sociais elaboradas sobre as juventudes e por elas, envolvendo ainda as relações sociais e de poder, numa perspectiva que cruza experiências locais, nacionais, transnacionais.

Na altura, a Guiné-Bissau estava viver um regime de golpe de estado altamente impopular e que cujo regime utilizava todos os meios para fazer silenciar as vozes críticas. As estruturas públicas e formais estavam bloqueadas dentro das suas burocracias e discursos de pouca consistência e até de alguma conivência sem capacidade de se impor perante os militares. Foram os rappers em articulação com as rádios, em particular os produtores de programas culturais que conseguiram fazer emergir com maior impacto a onda contestatária e que permitiu denunciar os golpistas e desconstruir a sua narrativa de medo e de imposição de uma vontade não democrática sem base legal e de legitimidade.

A coragem dos rappers em abordar de forma crítica a ausência de reformas públicas e a possibilidade do país não só se estabilizar mas conseguir, igualmente, enveredar-se pela via do desenvolvimento, responsabilizando os políticos e militares, ganhou eco junto da população como se fosse uma espécie de auto-representação de um recalcamento que se liberta. Ou seja, o momento acabou por servir como uma importante base de afirmação de uma sociedade civil alternativa que protagonizou acções de mobilização num formato novo e impactante em termos de despertar consciências que conseguiu ampliar a potência cívica da população guineense.

Publicou os livros “A Participação das Mulheres na Política e na Tomada de Decisão na Guiné-Bissau: da consciência, perceção à prática política” (2013) e “Manual de Capacitação das Mulheres em Matéria de Participação Política com base no Género” (2012), ambos em co-autoria com a escritora Odete Costa Semedo. O que vos motivou a escrever estes livros, e de que forma foi e é determinante para vocês darem este impulso, e publicarem este manual de conhecimento e de incentivo? Do desenvolvimento deste livro até à sua apresentação e divulgação, o que aprenderam e como contribuíram para a mudança da consciência das mulheres? Como pode este livro ser essencial para a consciência da falta de direitos, da violência e da falta de igualdade para com as mulheres?

R: Ao contrário dos outros estudos, este foi uma solicitação da representação das Nações Unidas na Guiné-Bissau que pretendia compreender as causas da desigualdade de género, que segundo os dados da ONU Mulheres, colocava o país na 148ª posição num ranking de 155 países em 2010 (apenas 13% de representação no parlamento) e ao mesmo tempo trabalhar na definição de uma estratégia de reforço de capacidades das organizações de mulheres com vista aumentar a sua capacidade de influência e deste modo aumentar o seu protagonismo e representação nas esferas de decisão.

Mas para além de analisar o papel das mulheres na política-partidária, Governo e Assembleia Nacional Popular, este estudo olha para o papel das mulheres na estrutura do poder tradicional, nos tribunais, no sector privado, nas organizações da sociedade civil, quer sejam vocacionados para a defesa dos direitos das mulheres ou não, e nas diversas redes femininas. Olhamos ainda para algumas “agências” das mulheres como as Mandjuandades, bideiras e grupos de “abota” que têm permitido a afirmação não só de sociabilidades como a construção de alternativas de emprego, geração de rendimentos e até influências na governação comunitária.

O estudo foi desenvolvido numa base metodológica de investigação-acção, com a formação em simultâneo e implicou a realização de dinâmicas de desconstrução da representação social das mulheres e o estímulo ao despertar de consciências de situações do quotidiano proporcionadas pelas mulheres que concorriam para o seu desempodramento desde o espaço doméstico até ao espaço público. Daí que o Manual foi construído com base na experiência formativa e de educação não formal fruto do trabalho com as mulheres.

A partir dessa experiência, pude trabalhar no apoio à Plataforma Política das Mulheres e à a Rede das Mulheres para a Paz e Segurança na elaboração do seu plano estratégico, e também, na assistência para a elaboração e implementação acompanhada da Estratégia de Lobbying e Advocacia com vista à difusão, conhecimento e apropriação do Anteprojecto de Lei de Quotas, que foi usada para a sensibilização de diferentes instituições públicas e privadas, partidos políticos, líderes comunitários e outros, que e culminou com uma adopção histórica pelo parlamento em Agosto deste ano, afixando em 36% (dos 40% reclamados pelas mulheres) a representação das mulheres na esfera de decisão.

Desenvolveu os trabalhos “Economia Informal e Estratégias Juvenis em Contexto de Contingência”, “Associativismo juvenil enquanto estratégia de integração social: o caso da Guiné-Bissau”, e o seu último livro (2015) versa sobre as relações entre a “A Sociedade Civil e o Estado na Guiné-Bissau: dinâmicas, desafios e perspetivas“, para além de outros estudos sobre política e processos de construção democrática e mobilização social. O que o levou a estudar a política social, as estratégias e integrações do associativismo juvenil, e de que maneira têm sido fundamentais para a sua aprendizagem e decisivas para um país melhor?

R: Desde os meus 14 anos de idade estive envolvido com o movimento associativo. Faço parte da geração que protagonizou a emergência do associativismo juvenil, mas sobretudo na sua fase de afirmação enquanto principal espaço de integração social dos jovens nas cidades guineenses, superando as relações de convivialidade criadas nas escolas ou de grupos de futebol, na sua maioria masculinizados ou ainda de espaços de prática religiosa no qual há um controle forte das manifestações e de produção de sentidos emancipatórios.

O estudo sobre associativismo juvenil constituiu a minha primeira iniciativa de pesquisa independente, através do no qual procurei explicar o que foi o processo de associativismo juvenil na primeira década de experiência da vigência da democracia num país cuja maioria da população era analfabeta e numa altura em que não existia nenhuma universidade, mas mesmo assim os níveis de criminalidade e violência urbana eram os mais baixos de toda a África Ocidental. Era importante demonstrar do ponto de vista científico o que foi um modelo virtuoso, deixar memória escrita produzida e reconhecida sobre esse processo, mas também sinalizar os efeitos perniciosos do contexto de fragilidade que levou à falência do modelo. Neste particular, o estudo demonstrou que a ausência de espaços de formação ideologia ideológica ao nível dos partidos com vista à integração dos jovens associada à institucionalização precoce do movimento reivindicativo juvenil por parte de agências internacionais de financiamento tiveram um carácter reflexivo inibidor, na medida em que contribuíram para obstaculizar a formação de verdadeiros movimentos sociais, assistindo-se a uma degradação do ímpeto inicial, transformando-os num espaço de disputas, monotonias, alienação político-partidária através de recrutamentos para funções oportunistas.

É deste modo que me interessei em aprofundar, estudando sempre de forma independente, dois elementos essenciais: - como é que os jovens estavam a produzir iniciativas que aportam formas de inventividade e criatividade nas estratégias autónomas de sobrevivência (estudo sobre a “Economia Informal e Estratégias Juvenis em Contexto de Contingência”) e como o Estado estava a percepcionar e adequar as demandas sociais (estudo sobre “A Reconstrução do Estado no Contexto dos Estados Frágeis-o caso da Guiné-Bissau”).

Foi o acumular de toda essa experiência que me levou a iniciar a construção de equipas de pesquisa aplicada e fundamental especializadas e que me tem permitido compreender melhor a estruturação social e institucional da Guiné-Bissau, em particular sectores mais vastos e complexos ao nível nacional, como é o caso da relação entre as Organizações da Sociedade Civil e do Estado, bem como a nível africano e da América do Sul sobre processos de emancipação social e desenvolvimento sustentável e endógeno.

Quais são os seus sonhos para a Guiné-Bissau?

R: Acredito muito no meu país e na capacidade dos guineenses. Por isso, sonho e luto com e por uma sociedade justa, capaz, autónoma, próspera e solidária na forma como se constrói e se reinventa, baseada na equidade entre povos, géneros, espaços e gerações. Para concretizarmos esse sonho em projecto de sociedade, o nosso investimento público e colectivo na educação, cultura, produtividade e criação de tecnologias sociais de convivência deverá ser os mais qualificados, de modo que possamos enfrentar os desafios do presente e do futuro, reconhecendo-nos como um povo coeso e mobilizado para a transformação estrutural que todos almejamos.

Obrigado pelo seu tempo, votos de bom trabalho.

Vidas e Obras

Entrevista: Pedro Marques
Correcção: António Chagas Dias



Fonte: Jornalista,
Braima Darame, via facebook