No dia em que a Guiné-Bissau celebra 45 anos da independência, vamos até ao Parque Natural dos Tarrafes de Cacheu, local de potencialidades económicas e turísticas. O outro lado de um dos países mais instáveis de África.
A pesca é um dos recursos mais importantes para a economia da Guiné-Bissau, que proclamou unilateralmente a sua independência de Portugal em setembro de 1973. Só a pesca do camarão chega a atingir 80% das licenças atribuídas, nomeadamente aos países da União Europeia (UE). E o Parque Natural dos Tarrafes no Rio Cacheu é o grande responsável por esta fatura, afirma o investigador Miguel de Barros, diretor-executivo da organização não-governamental guineense Tiniguena (que em bijagó significa "esta terra é nossa"), uma das mais ativas na defesa e proteção do ambiente na Guiné-Bissau:
"O camarão consegue ter em Cacheu um espaço vital para a reprodução, por um lado, devido às condições climatéricas favoráveis e, por outro, pela importância do mangal. As três variedades do mangal que existem estão aqui concentradas, o que faz com que haja disponibilidade de alimento e um espaço de vida que permite ao camarão não só ter a capacidade de reprodução, mas também do crescimento e algum repouso", explica Miguel de Barros, a bordo de uma pequena embarcação que serve para os turistas visitarem o local.
Situado a noroeste da Guiné-Bissau, a região de Cacheu representa aproximadamente 15% do território nacional. O rio Cacheu é o centro de referência, sendo uma das principais zonas de pesca do país e que liga as cidades de Cacheu, São Domingos e Farim. O Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu, com a maior concentração contínua do mangal (tarrafes) ao nível da África Ocidental, comporta variedades de ave-fauna migratória, em particular dos flamingos que concentram no espaço, fomentando a dinâmica do equilíbrio ecológico.
Uma das medidas mais importantes tidas em conta na criação do Parque é a questão do repouso biológico no rio, em que toda a atividade de pesca é baseada numa determinada zona para que os recursos tenham um momento de acalmia para a reprodução, conta Miguel de Barros. Essa diminuição de pressão devido a essas regras faz com que a disponibilidade dos recursos pesqueiros seja o elemento mais interessante fora do período de defeso, quando a pesca é interdita. A fiscalização participativa com a comunidade local na gestão dos recursos e na sua própria vigilância é outra medida tomada pelo Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas (lBAP).
"Um elemento importante é a própria população que habita essa zona. Uma população autóctone, nomeadamente os manjacos, que têm uma tradição de pesca ecologicamente aceite e que faz com que a presença de alguns recursos marinhos seja dentro dos rituais que permitem uma real harmonia entre as pessoas e esses recursos", explica o investigador.
Paisagem rara para descobrir
A partir da cidade histórica de Cacheu, antigo porto de escravos negros, um dos berços da língua crioula, palco da instalação da primeira administração colonial no território por volta de 1878 e também da edificação da primeira igreja católica da antiga Guiné Portuguesa (onde ainda se faz peregrinação) e de instalação de uma administração colonial, estendendo-se até ao setor de São Domingos, nas imediações da linha de fronteira com o Senegal, flutuando pelos braços de mar, nas margens do rio Cacheu descobre-se uma rara paisagem.
A zona é ocupada por 28.000 habitantes, agrupados em 44 aldeias. Diferentes grupos étnicos, nomeadamente os manjacos, mancanhas, papéis, banhus e felupes habitam a região.
Salta à vista de qualquer visitante a forma como os habitantes fazem a pesca artesanal na zona potencialmente rica. Sentados numa pequena embarcação feita de tronco de árvores, com os dois pés afundados dentro do rio e remo nas mãos, de forma muito tranquila e peculiar vão pescando variedade que o mar lhes oferece para alimentar os mercados informais locais e ao mesmo tempo garantir o sustento da família.
Vida nos mangais
Ibu Sanhá, um velho conhecido pescador da zona, fez do interior dos mangais a sua segunda casa. É ali que passa a maior parte do tempo. Longe da terra, embrenhado nas raízes da vegetação circundante e nas profundezas do rio, cozinha e come no local completamente no meio do nada. Ibu, de aproximadamente 70 anos, nunca aprendeu outro trabalho a não ser fazer-se ao mar.
"Faço isso desde pequeno no Senegal. Estou habituado, portanto não tenho medo de ficar isolado neste meu acampamento para cozinhar, comer e preparar o trabalho. Os meus filhos e famílias vivem disto. Se o Estado pudesse ajudar com redes de pesca, canoas, enfim, equipamentos de salva-vidas, seria melhor para nós, mas não podemos ficar à espera do que provavelmente não vai acontecer", afirma em crioulo, com sotaque de uma das línguas maternas da Guiné-Bissau.
Muito mais jovem do que Ibú, Roberto Sambú tem dois filhos e acabava de apanhar um peixe barbo de 10 quilos. Senta-se na canoa encostado às raízes dos mangais, também com os pés mergulahdos na água, à espera que algo se mexa no anzol no fundo do rio.
"Hoje apanhei peixe de primeira que custa, por quilo, dois mil francos CFA e outras variedades com preços mais baixos. Está a ser um bom dia", relata o jovem. dois mil francos cfasNão tenho meios para comprar uma canoa de pesca maior. Vou aguentado com esta. É aqui que ganho a vida. Concluí o liceu há muito, mas não tenho meios para ir tirar o curso superior, então decidi pescar para ver se consigo ter dinheiro para entrar na faculdade e formar-me".
Produção agrícola sazonal
No interior do Parque Natural, algumas zonas estão destinadas à produção agrícola, de forma sazonal. Para o investigador Miguel de Barros, o grande desafio de permitir o acesso à modernização do sistema produtivo e à própria fiscalização dos espaços de recursos naturais. Entende que o Governo deve promover uma governança participativa enquanto mecanismo de implicação de todos os atores na gestão do processo de sustentabilidade, tentando conciliar as atividades económicas e de conservação num contexto de pobreza e fragilidade do Estado.
É uma zona que, tradicionalmente, as comunidades locais utilizam para a agricultura e ao mesmo tempo garantir a segurança alimentar, mas que ultimamente enfrenta uma vaga de emigração ilegal da sub-região, especialmente de pescadores sazonais, oriundos, na sua maioria, do Senegal. A fiscalização consegue atenuar um pouco esta prática, mas acaba por deixar os seus efeitos sobre o espaço, o que é muito preocupante, segundo o investigador. Dá como exemplos o uso do mangal para a produção de lenha ou para a fumagem de peixe.
Sociólogo Miguel de Barros fez uma visita guiada à DW África pelo Parque dos Tarrafes
"O mais preocupante é que o corte de mangal nessas zonas têm contribuído para o aumento da erosão costeira, tirando todas as possibilidades de defesa natural que os mangais acabam por constituir e ficam sem a capacidade de proteção do continente", explica Migel de Barros. Outro elemento importante, refere, é a exploração de conchas durante o período de reprodução, altura em que os pescadores gambianos vêm à zona buscar ostras de boa qualidade.
"Esses desequilíbrios acontecem devido à incapacidade do Estado em proteger a zona, mas também a porosidade das fronteiras que faz com que as comunidades locais fiquem indefesas para a capacidade de vigilância e proteção do Parque. Felizmente Cacheu tem desempenhado um papel importante com a existência do Parque, no qual o Instituto da Biodiversidade das Áreas Protegidas tem criado condições de georeferenciamento, fiscalização e animação comunitária sobre o desenvolvimento participativo e ecológico durável, permitindo que a comunidade esteja no centro da gestão do espaço", revela o sociólogo.
Educação ambiental
Na vila de São Domingos, na linha de fronteira norte da Guiné-Bissau com o Senegal, foram realizadas recentemente sessões de formação sobre educação ambiental para professores do ensino público, organizadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). O desenvolvimento do ecoturismo associado ao património cultural e histórico de Cacheu enquanto oportunidade de luta contra a pobreza e promoção da região e valorização do parque é outro desafio para as comunidades.
Para a professora Nina João Gomes Vaz, a capacitação técnica dos professores tem uma grande importância. "Ajuda-nos a saber como proteger o nosso meio ambiente. Estamos a aprender lidar com o lixo, proteger as áreas reservadas para não desaparecerem as espécies de animais e plantas. A formação ajuda-nos a ter conhecimento para transmitir aos mais novos, que são a geração que deverá preservar o meio ambiente", destaca.
A agricultura itinerante e a colonização de solos pela monocultura do cajú tem provocado o empobrecimento dos terrenos agrícolas e ameaçam a segurança produtiva e alimentar. Por outro lado, o regime de exploração florestal, queimadas e cortes de madeira estão a diminuir a capacidade de controle da força do vento que atinge a zona continental do parque.
Também o corte de mangal por parte dos pescadores estrangeiros para a fumagem do pescado tem contribuído para o enfraquecimento das defesas naturais das zonas costeiras e provocado a erosão, explica Miguel de Barros, que também é o presidente do Comité Nacional da UICN.
Potencialidade ecológica
O sociólogo reconhece que o país tem potencialidade ecológica e afirma que uma boa parte da população reconhece também o valor desse potencial natural, mas não tem consciência de como agir em salvaguarda do mesmo património. É aqui que entra a educação ambiental, uma ferramenta robusta não só para educar as pessoas a saberem lidar com espaços e recursos, mas também para promover políticas públicas mais adequadas que permitam ensinar as crianças, mães e pais sobre a gestão dos espaços rural e urbano.
Segundo dados do IBAP, fora dos recursos em peixes e crustáceos que encontram condições ideais para a reprodução, os mangais do Parque Natural do Rio Cacheu oferecem uma vasta gama de produtos: madeira, cortiça, frutos, mel, sal, assim como diversos ingredientes da farmacopeia tradicional que participam largamente na economia local. O ambiente também é notável pela sua biodiversidade: cerca de 275 espécies de aves foram recenseadas no parque, entre as quais numerosas espécies migratórias vindas da Europa, mas também crocodilos, macacos, lontras, manatins e hipopótamos que encontram no mangal um abrigo ou um local de alimentação dependendo das horas das marés.
Ao fim da tarde, voltamos ao porto da cidade de Cacheu onde encontramos crianças e jovens em ensaios de mergulho e uma pacata cidade carregada de história, protegida por um forte desguarnecido e que os historiadores apelidam de "sepultura" de estátuas coloniais e o maior museu do país que procura manter viva a memória da escravatura. Enquanto o potencial da região espera realizar-se com o almejado desenvolvimento socioeconómico, os desafios da atualidade fazem com que Cacheu seja um elemento incontornável no futuro da Guiné-Bissau, dando mais certeza aos jovens do interior do rio que com os pés na água procuram pescar sonhos e a sua felicidade na sua terra natal.