Martinho Júnior, Luanda IN PG
A criação do AFRICOM por parte da hegemonia unipolar, via administração republicana de George W. Bush e Pentágono, permitiu aos Estados Unidos estudar “em laboratório” a polarização físico-geográfica-ambiental e também humana em África, ou seja possibilitou avaliar onde se poderia “investir” pontualmente na desestabilização, a fim de expandir o caos e o “arco da crise”, pelo que a Líbia reunia todos os condimentos favoráveis a um plano dessa natureza e com essa orientação:
Quando o ocidente caiu em peso sobre o diluído ambiente étnico-tribal e sócio-político sob influência ou mando de Kadafi, removeu a barreira que permitiu desde logo a oportunidade para a radicalização islâmica com o recurso à expansão do “jihadismo”, em estreita consonância aliás com os desenvolvimentos sócio-políticos na Tunísia, no Egipto e a leste do canal de Suez, o que fez aumentar de forma sincronizada e exponencial os processos migratórios e a mancha de expansão do radicalismo terrorista, devido aos impactos que se reflectiram e sucederam no Sahara, no Sahel e no Ogaden, até à confluência de fronteiras como as de Nigéria-Camarões-Chade, ou seja, na zona de contacto directo da pressão “jihadista” sobre as regiões cristãs a oeste, ou sobre as fronteiras Somália-Etiópia-Kénia a leste, pelas mesmas razões.
Por outro lado, o capital líbio depositado em bancos ocidentais, “com o fim do ditador” passou para as mão das conveniências, num roubo sem escala precedente, ao que tudo indica a favor do Goldmn Sachs, com a vantagem de ninguém mais o poder reivindicar!
Segundo Manlio Dinucci, na radiografia que fez:
“Depois de ser secretário geral da Otan de 2009 a 2014 (sob comando estadunidense), Anders Fogh Rasmussen assumiu o posto de consultor internacional da Goldman Sachs, o mais poderoso banco dos Estados Unidos.
O currículo de Rasmussen é prestigioso. Como primeiro-ministro dinamarquês (2001-2009), empenhou-se pela “ampliação da União Europeia e da Otan contribuindo para a paz e a prosperidade na Europa”. Como secretário geral, representou a Otan no seu “pico operativo com seis operações em três continentes”, entre as quais a guerra no Afeganistão e na Líbia, e, “em resposta à agressão russa à Ucrânia, reforçou a defesa coletiva a um nível sem precedentes desde o fim da guerra fria”. Além disso, Rasmussen apoiou a “parceria transatlântica sobre comércio e investimentos (Ttip)” entre os Estados Unidos e a União Europeia, base econômica de “uma comunidade transatlântica integrada”.
Competências preciosas para a Goldman Sachs, cuja estratégia é ao mesmo tempo financeira, política e militar. Seus dirigentes e consultores, depois de anos de trabalho no grande banco, foram levados a postos chave nos governos dos Estados Unidos e outros países: entre estes Mário Draghi (governador do Banco da Itália, depois presidente do Banco Central Europeu) e Mário Monti, (nomeado chefe de governo pelo presidente Napolitano em 2011).”
A norte e perante o agravamento artificial e manipulador desses fenómenos, a Líbia tornou-se fulcral para a organização e financiamento de redes de migração em direcção à Europa via Mediterrâneo, mantendo-se em estado caótico (o que beneficia a organização e crescimento dessas redes) e ao mesmo tempo todo o Sahel foi sendo espevitado para que as migrações corressem também em direcção ao sul, com ou sem o mesmo tipo de financiamentos e redes, em direcção às regiões com maior concentração de água, de biodiversidade, da riqueza ambiental, geológica e mineral, no sentido da pressão, por via da expansão islâmica para sul.
Quem controla as redes clandestinas de migração, pode ser agora em parte e ao mesmo tempo, organizador e financiador das redes clandestinas de terroristas, como das redes de pirataria marítima na Somália, como no Golfo da Guiné.
A implantação da USAID, uma componente do AFRICOM estabelecida em força no Sahel, é um dos resultados dessa apurada leitura gerada “em laboratório”, pois com os desenvolvimentos assim conseguidos, tornou-se oportuna a sua implantação a partir dos impactos das “primaveras árabes”(Tunísia, Líbia e Egipto), que tiveram na Líbia a “pedra de toque”, em “reforço” do seu papel no leste africano e também na África Austral, Angola incluída.
A implantação da USAID no Sahel corresponde a um investimento de pesquisa de inteligência“humint”, capaz de acompanhar em tempo real os desenvolvimentos do “AQMI” e do “Boko Haram” (na sua raiz e área principal de mobilização e expansão) e assim contribuir para os diagnósticos e as medidas de resposta integrando os vulnerabilizados estados da região, atraídos desse modo à influência directa de potências como os Estados Unidos e a França (ciosa ainda do“seu pré carré”, ainda que em declive em direcção à falência), capazes de melhor garantir e sistematizar as irremediáveis respostas militares, de “baixa”, ou “média” intensidade (“soft war”).
A leste passa-se a mesma coisa em relação ao “al Shabab” da Somália, que justifica a estreita aliança dos Estados Unidos (AFRICOM) com o Djibouti, a Etiópia, o Kénia e o Uganda.
A USAID integrada no AFRICOM dimensiona ainda aproveitamentos de situações críticas para África, como a malária, doenças como o HIV, ou a ébola, a fome, a miséria extrema, ou os resultados humanos das catástrofes naturais, situações críticas essas que se agravam com a desestabilização provocada pelas acções dos jihadistas espalhados depois do ataque do AFRICOM-NATO à Líbia e da eclosão das “primaveras árabes”, fenómenos que se juntaram ao jihadismo na Somália.
O pacote do AFRICOM fermenta e influencia-se numa manipulação “endógena” com o papel da USAID, ali onde não existe presença militar norte-americana, abrangendo desse modo todo o continente, pois cobre a periferia das regiões impactadas pelo jihadismo, ou regiões onde existem ou existiram conflitos de outra natureza (em Angola a sequela do colonialismo e do “apartheid”, cujo fim militar ocorreu em 2002).
A USAID integrado no AFRICOM assume assim simultaneamente, muitos papéis, para além do que caracteriza os esforços de inteligência “humint”, entre eles:
- É um factor instrumental que integra as políticas decorrentes do que Naomi Klein tem classificado como “doutrina do choque”, em especial quando se inicia a “terapia post traumática”que obedece aos padrões da hegemonia unipolar;
- É um factor instrumental que indispensável na contradição estado-terrorismo, pois é com ele, ou a partir dele, que se vão digerir os emparceiramentos regionais e locais (caso vantajosos do Uganda, do Djibouti, ou do Quénia e ali, onde houverem interesses franceses, casos do Mali, do Níger, do Gabão, do Senegal…);
- É um factor instrumental incontornável de acção psicológica em África, em especial nas regiões mais conturbadas do globo, ali onde estão os países que compõem a cauda dos Índices de Desenvolvimento Humano, de forma a atrair “persuasivamente” para a órbitra dos Estados Unidos e seus aliados-vassalos, os estados africanos, estimulando com eles “parcerias” com seus estados fragilizados, que sistematizem dependência e neo colonialismo;
- É um factor instrumental “de vanguarda” que abre directamente espaços em função dos interesses e conveniências do capitalismo neo liberal em África, como por exemplo nos agro-negócios;
- É um factor instrumental optimizado, ali onde as malhas sócio-políticas-administrativas dos estados africanos são mais rarefeitas, como por exemplo na confluência de fronteiras, onde os principais agrupamentos jihadistas, sunitas ou cristãos, se fazem ou se fizeram sentir (tal como antes em relação aos santuários da UNITA em Angola, ou do SPLA no Sudão);
- É um factor instrumental que pode acompanhar “deep inside” as migrações humanas que se movem provocadas tanto por causas naturais, como por causa do terrorismo jihadista em expansão no post-Líbia de Kadafi, incluindo recrutamentos de fanáticos que aproveitam essas torrentes para se deslocarem para novas paragens, tanto na direcção do norte (atravessando o Mediterrâneo para alcançar a Europa), como do sul (penetrando por exemplo no vale do Cuango, em Angola).
No que toca ainda a Angola, por exemplo, o USAID possui um “apetite” geral nos assentamentos humanos que fazem ocupação de espaços aproveitando o sistema físico-hidrográfico do país e muito especial no Cuando Cubango, onde Savimbi e o Batalhão Búfalo possuíam o seu santuário agenciado às SADF, tendo em conta neste caso a confluência de fronteiras, a muito baixa densidade demográfica, os interesses do cartel do diamantes, os programas dos Parques Naturais Transfronteiriços da Paz, a “parceria persuasiva” com o governo angolano e a perspectiva de agronegócios em imensos espaços virgens…
Com a USAID o AFRICOM-NATO não só contribui para aplicar o choque, como sobretudo inicia e leva por diante a “terapia ao choque” estritamente de acordo com os cânones estabelecidos pelo capitalismo neo liberal, algo impossível de realizar apenas com o braço militar.
Essa “formatação persuasiva” é a substância da ingerência, da manipulação e da instalação de interesses e conveniências indexados à aristocracia financeira mundial.
O Laboratório AFRICOM foi produzido assim com ingredientes previamente escolhidos, que são instrumentos de ingerência capazes de automaticamente estabelecer ciclos de desestabilização e reconstrução, com todo o tipo de psicologias aplicadas que isso implica, moldadas às conveniências dum novo processo neo colonial, que pode passar também pelo redesenhar de mapas no continente (casos da Somália, do Sudão, do Mali…).
Em Angola, para além do caso crónico do contencioso de Cabinda, a partir do vale do Cuango surgiu um novo contencioso na perspectiva do “Protectorado da Lunda-Tchokwe”, que se tenta expandir tirando proveito dos inter relacionamentos dos factores físico-geográfico-ambientais (com os rios num plano privilegiado uma vez que eles constituem “bacias diamantíferas”) com os factores humanos, que incluem as migrações que provêem do Sahara e do Sahel, em relação às quais se podem vir a realizar um leque enorme de projecções que socorrem a intenção duma continuada ingerência e manipulação, que pode levar à tentativa de redesenhar os mapas de Angola e do Congo…
Mapas:
1 – Presença militar dos Estados Unidos em África;
2 – Projectos do USAID em África (só em Angola são 106);
3 – Militares dos EUA em África.