Se trata da formação de um sistema ditatorial com rosto civil que tem claros antecedentes internacionais e é guiado pelo aparato de inteligência dos EUA
Já se destacou até o cansaço que, pela primeira vez em um século, no dia 10 de dezembro de 2015, a direita chegou ao governo sem ocultar seu rosto, sem fraude, sem golpe militar, através de eleições supostamente limpas, se trata de um grande novidade.
Mas é necessário esclarecer três coisas:
Em primeiro lugar, é evidente que não se tratou de “eleições limpas”, mas sim de um processo assimétrico, completamente distorcido por uma manipulação midiática sem precedentes na Argentina, ativada há vários anos e que finalmente derivou num operativo sofisticado e avassalador. Consumada a operação eleitoral, a presidenta que saía foi destituída poucas horas antes de entregar a faixa presidencial através de um golpe de Estado “judiciário”, demonstração de força do poder real que estabelecia, desse modo, um precedente importante, na verdade o primeiro passo do novo regime.
Isto nos leva a um segundo esclarecimento: o kirchnerismo não produziu transformações estruturais decisivas do sistema, introduziu reformas que incluíram vastos setores das classes baixas, saciou demandas populares insatisfeitas (como o julgamento de protagonistas da última ditadura militar), implantou uma política internacional que distanciou o país do submetimento integral aos Estados Unidos e outras medidas que se impuseram às estruturas e grupos de poder pré existentes. Mas não gerou uma avalanche plebeia capaz de neutralizar as bases sociais da direita, não quebrou os pilares do sistema (seus aparatos judiciais, midiáticos, financeiros, transnacionais, etc) não desarticulou a ofensiva reacionária. A alternativa transformadora radicalizada estava completamente fora do script progressista, a astúcia, o jogo hábil e seus bons resultados em curto e médio prazo maravilharam o kirchnerismo, o levou por um caminho sinuoso, acumulando contradições marchando rumo a uma derrota final. O governo que terminou nunca propôs uma transgressão dos limites do sistema, um salto por cima da institucionalidade elitista-mafiosa, das panelinhas judiciais influenciadas pelo partido midiático, pelos personagens destacados de uma lúmpen burguesia que aproveitou o restabelecimento da governabilidade pós 2001-2002 para curar suas feridas, recuperar forças e renovar seu apetite.
Como era previsível, as classes médias, grandes beneficiárias da prosperidade econômica dos anos do auge progressista, não tiveram uma reação de gratidão para com o kirchnerismo, e sim o contrário. Incentivadas pelo poder midiático, ela retomou os velhos preconceitos reacionários, sua ascensão social reproduziu formas culturais latentes provenientes do velho gorilismo, do desprezo à “negrada”, sintonizada com a onda regional e ocidental de aproximação dessas classes médias ao neofascismo. Não se tratou, portanto, de uma simples manipulação midiática, manejada por um aparato comunicacional bem organizado, mas sim do aproveitamento das irracionalidades ancoradas no mais profundo da alma do país burguês.
A terceira observação é que o fenômeno não é tão novo. É verdade que o processo de manipulação eleitoral se insere no declínio do progressismo latino-americano, o que foi realizado de forma impecável por especialistas de primeiro nível, certamente monitorados pelo aparato de inteligência dos Estados Unidos, não deveríamos esquecer que antes da chegada do peronismo, em 1945, a sociedade argentina foi moldada durante cerca de um século de república oligárquica (que não foi abolida durante o período dos governos radicais, entre 1916 e 1930), deixando rastros culturais e institucionais bem profundos, atravessando as sucessivas transformações das elites dominantes, como uma espécie de referência mítica de uma época onde supostamente os de cima mandavam através de estruturas autoritárias estáveis.
Nesse sentido, é uma curiosa casualidade, carregada de simbolismo, o fato de que foi o presidente “cautelar instantâneo”, Federico Pinedo imposto pela máfia judicial, o encarregado de entregar o bastão presidencial a Macri. Federico Pinedo: neto de Federico Pinedo, uma das figuras mais representativas da restauração oligárquica dos Anos 1930, bisneto de Federico Pinedo Rubio, intendente de Buenos Aires no final do Século XIX e depois deputado nacional durante um prolongado período, representante do velho partido conservador. Seguir a trajetória dessa família permite observar a ascensão e a consolidação do país aristocrático colonial, construído desde mediados do Século XIX. O longínquo descendente daquela oligarquia foi o encarregado de entregar os atributos do mando presidencial a Mauricio Macri, que por sua parte é herdeiro de um clã familiar mafioso de raiz ítalo-fascista, instaurado por um “governo de gerentes”. Os avatares de um golpe de Estado instantâneo, estabelecendo um vínculo histórico entre a lúmpen burguesia atual e a velha casta oligárquica.
A crise
O contexto econômico internacional consiste numa crise deflacionária motorizada pelo desinflar das grandes potências econômicas. Os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão navegando entre o crescimento anêmico, o estancamento e a recessão, a China desacelerando seu crescimento e o Brasil em recessão determinam uma conjuntura marcada pelo esfriamento da demanda global, o que deprime os preços das matérias-primas e estanca ou diminui os mercados de produtos industriais. Em suma, um panorama mundial negativo para um país como a Argentina, que vive da exportação de matérias-primas e, em menor escala, de produtos industriais de médio e baixo nível tecnológico. Antes, para não cair na recessão por esses ciclos internacionais adversos – desde o ponto de vista teórico –, a economia Argentina precisava se apoiar cada vez mais na expansão e na proteção do seu mercado interno, seu tecido industrial, sua autonomia financeira. Porém, o governo de Macri inicia seu mandato fazendo exatamente o contrário: diminuindo o mercado interno através de uma redução drástica, em termos reais, de salários e aposentadorias, aumentando o endividamento externo, desprotegendo o grosso da estrutura industrial. É nessa direção que apontam suas primeiras decisões econômicas iniciais como a mega desvalorização do peso, a eliminação ou diminuição dos impostos às exportações, o aumento da taxa de juros, a liberalização das importações, e logo a eliminação de subsídios aos serviços públicos, com o conseguinte aumento de suas tarifas. Se trata de uma gigantesca transferência de renda em favor dos grupos econômicos mais concentrados (grandes exportadores agrários, empresas e especuladores financeiros possuidores de fundos em dólares, etc.), de um saque descomunal, que se prolongará no tempo ao ritmo dos aumentos dos preços, as depressões salariais, as desvalorizações e aumentos de tarifas. O desemprego cresce, assim como a pobreza e a indigência, a concentração de rendas avançará (já está avançando) rapidamente e o crescimento econômico nulo ou negativo será inevitável.
Segundo alguns especialistas, estaríamos embarcando num vórtice completamente irracional, marcado pelo declínio do grosso da indústria e da desintegração da sociedade, resultado da aplicação ortodoxa de receitas neoliberais “equivocadas”. Entretanto, o governo não se equivoca, atua segundo a dinâmica de uma lúmpen burguesia portadora de uma racionalidade instrumental, cujo fim não é outro senão o da acumulação rápida de riquezas, o saqueamento de tudo o que se cruzar pelo caminho. A racionalidade que brota da cabeça de certos economistas é a dos bandidos, dos donos do poder econômico, não é a do desenvolvimento econômico harmonioso e com resultados que beneficiem toda a sociedade.
Assim é como passamos de uma versão suave da política econômica anticíclica (desde o ponto de vista da tendência da economia global) a uma nova política pró-cíclica, que vem se incorporando com notável ferocidade à degeneração geral (financeira, institucional, ideológica, etc) do mundo capitalista.
O progressismo governou a Argentina entre 2003 e 2015 restabelecendo a governabilidade do sistema, tudo andou bem enquanto a besta lambia suas feridas, num contexto de relativa prosperidade, se recompondo do terremoto dos anos 2001-2002, mas desde 2008 as coisas foram mudando: o achatamento do crescimento econômico exacerbou sua vontade de abocanhar uma porção maior da torta, e nesse sentido, o dia 10 de dezembro de 2015 pode ser visto como o ponto de inflexão, como um salto qualitativo do poder draculesco das elites dominantes, inaugurando uma etapa de decadência da sociedade argentina. As forças entrópicas, devastadoras, conseguiram finalmente impor sua dinâmica.
Dois cenários
Nos encontramos diante dos primeiros passos de uma aventura autoritária de trajetória incerta. Não é fruto do acaso, e sim resultado de um prolongado processo de amadurecimento (degeneração) das elites dominantes da Argentina, transformadas em matilhas de predadores, em sintonia com o fenômeno global da financeirização e da decadência. Basta ver o próprio governo e seus apoiadores, um grupo no qual se sobressaem personagens acusados de crimes especulativos, como Alfonso Prat Gay, Carlos Melconian e Juan José Aranguren, ou “poderosos chefões” como Cristiano Rattazzi, Paolo Roca, Franco Macri (pai do presidente), ou de outros suspeitos de serem agentes da CIA, como a nova chanceler Susana Malcorra e Patricia Bullrich, para perceber que a tragédia local não é mais que um apêndice periférico de um capitalismo global embarcado numa louca corrida liderada por lobos de Wall Streeet, militares delirantes e políticos corruptos destruindo países inteiros, triturando instituições, saqueando recursos naturais e impondo um processo de destruição em escala planetária.
A lúmpen burguesia argentina, com sua articulação mafiosa na cúpula do poder (empresarial, judicial, midiático) e suas prolongações institucionais e abertamente ilegais, deixou de ser a força dominante nas sombras, que conspirava, condicionava, bloqueava e impunha, passando a assumir abertamente o governo. Isso pode ser atribuído a vários fatores, como a inexistência de um elenco de “políticos” com capacidade de decisão para implementar o mega-saque planejado, o que leva os próprios gerentes a tomar essa responsabilidade de forma direta – quer dizer, os “técnicos”, completamente alheios à conjuntura eleitoral.
O novo esquema é bastante eficaz na hora de adotar medidas contundentes contra a maioria da população, mas parece ser pouco útil na hora de amortecer o inevitável descontentamento popular (incluindo o de uma porção significativa de ingênuos eleitores de Macri). As panelinhas sindicais poderão gerar inação durante certo tempo, alguns políticos provinciais empurrarão para esse mesmo sentido, e também os meios massivos de comunicação buscarão distrair, confundir, justificar (já o estão fazendo), intensificando a campanha de idiotização, mas tudo isso é insuficiente para conter a magnitude do desastre em curso.
Por outra parte, o carácter lúmpen e instável do regime macrista, afetado por previsíveis disputas internas, golpes financeiros, turbulências exógenas de todos os tipos e próprias de um sistema global à deriva, e pressionado por uma base social cuja insatisfação crescerá até formar uma avalanche gigantesca, revelando a única alternativa possível de governabilidade mafiosa.
Se trata da formação de um sistema ditatorial com rosto civil e de configuração variável, que tem claros antecedentes internacionais recentes, é guiado pelo aparato de inteligência dos Estados Unidos e se apoia na chamada doutrina da guerra de quarta geração, cujo objetivo central é a transformação da sociedade, objeto do ataque, numa massa amorfa, degradada, acossada por erupções prolixas de violência caótica, impotente diante do roubo que está sofrendo. Iraque, Líbia e Síria aparecem como experiências extremas e longínquas, ao contrário de México e Guatemala, paradigmas latino-americanos que devem ser lembrados, embora a especificidade argentina incluirá certamente suas características originais ao novo caso. Temos que pensar numa combinação pragmática de distintas doses de repressão direta “clássica”, judicialização de opositores sindicais e políticos, bombardeio midiático (diversionista e/ou demonizador), repressão clandestina, incentivos às rivalidades sociais (quanto mais sanguinárias melhor), irrupção de grupos que aterrorizam a população (como os “maras” na América Central ou os batalhões de narcos no México), fraudes eleitorais, etc. Desse modo, a Argentina entraria com tudo num Século XXI marcado pela escalada do capitalismo taná tico.
Entretanto, essa estratégia não pode se instalar plenamente de um dia para outro, requer tempo e uma certa passividade inicial das bases populares, e encontraria sérias dificuldades numa sociedade complexa como a argentina, com um amplo leque de classes baixas e médias portadoras de culturas, capacidade de organização, de histórias que a visão superficial dos gerentes financeiros e dos especialistas em controle social não conseguem ver como ameaças visíveis (ou parecem ser resistências ou nostalgias impotentes), mas que constituem latências, bombas de tempo de enorme poder, que podem explodir em qualquer momento. Este desafio de lidar com os de baixo pode convergir com o antigo temor que os de cima têm das hordas incontroláveis de pobres, conformando grandes interrogantes gelatinosos que generalizam as incertezas das elites, deteriorando sua psicologia.
A não viabilidade desse cenário sinistro, o possível rechaço a ele, deixaria espaço aberto para o desenvolvimento de um segundo cenário: o de uma crise de governabilidade muito mais devastadora que a de 2001. Nesse caso, a fantasia elitista da recomposição ditatorial mafiosa do poder político não havia sido outra coisa senão uma ilusão burguesa acompanhada do fim da governabilidade, do começo de um período de alta turbulência, de desintegração social de duração imprevisível. O progressismo tão desprezado pelas elites havia sido um paraíso capitalista destruído por seus principais beneficiários.
Como vemos, o inferno mafioso não é inevitável, embora não devamos subestimar a capacidade operativa dos seus executores locais e seu mega padrinho imperial, pois os Estados Unidos estão decididos a reconquistar o seu quintal latino-americano.
Para que lado penderá esta história? A resistência popular terá a resposta.
Tradução: Victor Farinelli
Mas é necessário esclarecer três coisas:
Em primeiro lugar, é evidente que não se tratou de “eleições limpas”, mas sim de um processo assimétrico, completamente distorcido por uma manipulação midiática sem precedentes na Argentina, ativada há vários anos e que finalmente derivou num operativo sofisticado e avassalador. Consumada a operação eleitoral, a presidenta que saía foi destituída poucas horas antes de entregar a faixa presidencial através de um golpe de Estado “judiciário”, demonstração de força do poder real que estabelecia, desse modo, um precedente importante, na verdade o primeiro passo do novo regime.
Isto nos leva a um segundo esclarecimento: o kirchnerismo não produziu transformações estruturais decisivas do sistema, introduziu reformas que incluíram vastos setores das classes baixas, saciou demandas populares insatisfeitas (como o julgamento de protagonistas da última ditadura militar), implantou uma política internacional que distanciou o país do submetimento integral aos Estados Unidos e outras medidas que se impuseram às estruturas e grupos de poder pré existentes. Mas não gerou uma avalanche plebeia capaz de neutralizar as bases sociais da direita, não quebrou os pilares do sistema (seus aparatos judiciais, midiáticos, financeiros, transnacionais, etc) não desarticulou a ofensiva reacionária. A alternativa transformadora radicalizada estava completamente fora do script progressista, a astúcia, o jogo hábil e seus bons resultados em curto e médio prazo maravilharam o kirchnerismo, o levou por um caminho sinuoso, acumulando contradições marchando rumo a uma derrota final. O governo que terminou nunca propôs uma transgressão dos limites do sistema, um salto por cima da institucionalidade elitista-mafiosa, das panelinhas judiciais influenciadas pelo partido midiático, pelos personagens destacados de uma lúmpen burguesia que aproveitou o restabelecimento da governabilidade pós 2001-2002 para curar suas feridas, recuperar forças e renovar seu apetite.
Como era previsível, as classes médias, grandes beneficiárias da prosperidade econômica dos anos do auge progressista, não tiveram uma reação de gratidão para com o kirchnerismo, e sim o contrário. Incentivadas pelo poder midiático, ela retomou os velhos preconceitos reacionários, sua ascensão social reproduziu formas culturais latentes provenientes do velho gorilismo, do desprezo à “negrada”, sintonizada com a onda regional e ocidental de aproximação dessas classes médias ao neofascismo. Não se tratou, portanto, de uma simples manipulação midiática, manejada por um aparato comunicacional bem organizado, mas sim do aproveitamento das irracionalidades ancoradas no mais profundo da alma do país burguês.
A terceira observação é que o fenômeno não é tão novo. É verdade que o processo de manipulação eleitoral se insere no declínio do progressismo latino-americano, o que foi realizado de forma impecável por especialistas de primeiro nível, certamente monitorados pelo aparato de inteligência dos Estados Unidos, não deveríamos esquecer que antes da chegada do peronismo, em 1945, a sociedade argentina foi moldada durante cerca de um século de república oligárquica (que não foi abolida durante o período dos governos radicais, entre 1916 e 1930), deixando rastros culturais e institucionais bem profundos, atravessando as sucessivas transformações das elites dominantes, como uma espécie de referência mítica de uma época onde supostamente os de cima mandavam através de estruturas autoritárias estáveis.
Nesse sentido, é uma curiosa casualidade, carregada de simbolismo, o fato de que foi o presidente “cautelar instantâneo”, Federico Pinedo imposto pela máfia judicial, o encarregado de entregar o bastão presidencial a Macri. Federico Pinedo: neto de Federico Pinedo, uma das figuras mais representativas da restauração oligárquica dos Anos 1930, bisneto de Federico Pinedo Rubio, intendente de Buenos Aires no final do Século XIX e depois deputado nacional durante um prolongado período, representante do velho partido conservador. Seguir a trajetória dessa família permite observar a ascensão e a consolidação do país aristocrático colonial, construído desde mediados do Século XIX. O longínquo descendente daquela oligarquia foi o encarregado de entregar os atributos do mando presidencial a Mauricio Macri, que por sua parte é herdeiro de um clã familiar mafioso de raiz ítalo-fascista, instaurado por um “governo de gerentes”. Os avatares de um golpe de Estado instantâneo, estabelecendo um vínculo histórico entre a lúmpen burguesia atual e a velha casta oligárquica.
A crise
O contexto econômico internacional consiste numa crise deflacionária motorizada pelo desinflar das grandes potências econômicas. Os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão navegando entre o crescimento anêmico, o estancamento e a recessão, a China desacelerando seu crescimento e o Brasil em recessão determinam uma conjuntura marcada pelo esfriamento da demanda global, o que deprime os preços das matérias-primas e estanca ou diminui os mercados de produtos industriais. Em suma, um panorama mundial negativo para um país como a Argentina, que vive da exportação de matérias-primas e, em menor escala, de produtos industriais de médio e baixo nível tecnológico. Antes, para não cair na recessão por esses ciclos internacionais adversos – desde o ponto de vista teórico –, a economia Argentina precisava se apoiar cada vez mais na expansão e na proteção do seu mercado interno, seu tecido industrial, sua autonomia financeira. Porém, o governo de Macri inicia seu mandato fazendo exatamente o contrário: diminuindo o mercado interno através de uma redução drástica, em termos reais, de salários e aposentadorias, aumentando o endividamento externo, desprotegendo o grosso da estrutura industrial. É nessa direção que apontam suas primeiras decisões econômicas iniciais como a mega desvalorização do peso, a eliminação ou diminuição dos impostos às exportações, o aumento da taxa de juros, a liberalização das importações, e logo a eliminação de subsídios aos serviços públicos, com o conseguinte aumento de suas tarifas. Se trata de uma gigantesca transferência de renda em favor dos grupos econômicos mais concentrados (grandes exportadores agrários, empresas e especuladores financeiros possuidores de fundos em dólares, etc.), de um saque descomunal, que se prolongará no tempo ao ritmo dos aumentos dos preços, as depressões salariais, as desvalorizações e aumentos de tarifas. O desemprego cresce, assim como a pobreza e a indigência, a concentração de rendas avançará (já está avançando) rapidamente e o crescimento econômico nulo ou negativo será inevitável.
Segundo alguns especialistas, estaríamos embarcando num vórtice completamente irracional, marcado pelo declínio do grosso da indústria e da desintegração da sociedade, resultado da aplicação ortodoxa de receitas neoliberais “equivocadas”. Entretanto, o governo não se equivoca, atua segundo a dinâmica de uma lúmpen burguesia portadora de uma racionalidade instrumental, cujo fim não é outro senão o da acumulação rápida de riquezas, o saqueamento de tudo o que se cruzar pelo caminho. A racionalidade que brota da cabeça de certos economistas é a dos bandidos, dos donos do poder econômico, não é a do desenvolvimento econômico harmonioso e com resultados que beneficiem toda a sociedade.
Assim é como passamos de uma versão suave da política econômica anticíclica (desde o ponto de vista da tendência da economia global) a uma nova política pró-cíclica, que vem se incorporando com notável ferocidade à degeneração geral (financeira, institucional, ideológica, etc) do mundo capitalista.
O progressismo governou a Argentina entre 2003 e 2015 restabelecendo a governabilidade do sistema, tudo andou bem enquanto a besta lambia suas feridas, num contexto de relativa prosperidade, se recompondo do terremoto dos anos 2001-2002, mas desde 2008 as coisas foram mudando: o achatamento do crescimento econômico exacerbou sua vontade de abocanhar uma porção maior da torta, e nesse sentido, o dia 10 de dezembro de 2015 pode ser visto como o ponto de inflexão, como um salto qualitativo do poder draculesco das elites dominantes, inaugurando uma etapa de decadência da sociedade argentina. As forças entrópicas, devastadoras, conseguiram finalmente impor sua dinâmica.
Dois cenários
Nos encontramos diante dos primeiros passos de uma aventura autoritária de trajetória incerta. Não é fruto do acaso, e sim resultado de um prolongado processo de amadurecimento (degeneração) das elites dominantes da Argentina, transformadas em matilhas de predadores, em sintonia com o fenômeno global da financeirização e da decadência. Basta ver o próprio governo e seus apoiadores, um grupo no qual se sobressaem personagens acusados de crimes especulativos, como Alfonso Prat Gay, Carlos Melconian e Juan José Aranguren, ou “poderosos chefões” como Cristiano Rattazzi, Paolo Roca, Franco Macri (pai do presidente), ou de outros suspeitos de serem agentes da CIA, como a nova chanceler Susana Malcorra e Patricia Bullrich, para perceber que a tragédia local não é mais que um apêndice periférico de um capitalismo global embarcado numa louca corrida liderada por lobos de Wall Streeet, militares delirantes e políticos corruptos destruindo países inteiros, triturando instituições, saqueando recursos naturais e impondo um processo de destruição em escala planetária.
A lúmpen burguesia argentina, com sua articulação mafiosa na cúpula do poder (empresarial, judicial, midiático) e suas prolongações institucionais e abertamente ilegais, deixou de ser a força dominante nas sombras, que conspirava, condicionava, bloqueava e impunha, passando a assumir abertamente o governo. Isso pode ser atribuído a vários fatores, como a inexistência de um elenco de “políticos” com capacidade de decisão para implementar o mega-saque planejado, o que leva os próprios gerentes a tomar essa responsabilidade de forma direta – quer dizer, os “técnicos”, completamente alheios à conjuntura eleitoral.
O novo esquema é bastante eficaz na hora de adotar medidas contundentes contra a maioria da população, mas parece ser pouco útil na hora de amortecer o inevitável descontentamento popular (incluindo o de uma porção significativa de ingênuos eleitores de Macri). As panelinhas sindicais poderão gerar inação durante certo tempo, alguns políticos provinciais empurrarão para esse mesmo sentido, e também os meios massivos de comunicação buscarão distrair, confundir, justificar (já o estão fazendo), intensificando a campanha de idiotização, mas tudo isso é insuficiente para conter a magnitude do desastre em curso.
Por outra parte, o carácter lúmpen e instável do regime macrista, afetado por previsíveis disputas internas, golpes financeiros, turbulências exógenas de todos os tipos e próprias de um sistema global à deriva, e pressionado por uma base social cuja insatisfação crescerá até formar uma avalanche gigantesca, revelando a única alternativa possível de governabilidade mafiosa.
Se trata da formação de um sistema ditatorial com rosto civil e de configuração variável, que tem claros antecedentes internacionais recentes, é guiado pelo aparato de inteligência dos Estados Unidos e se apoia na chamada doutrina da guerra de quarta geração, cujo objetivo central é a transformação da sociedade, objeto do ataque, numa massa amorfa, degradada, acossada por erupções prolixas de violência caótica, impotente diante do roubo que está sofrendo. Iraque, Líbia e Síria aparecem como experiências extremas e longínquas, ao contrário de México e Guatemala, paradigmas latino-americanos que devem ser lembrados, embora a especificidade argentina incluirá certamente suas características originais ao novo caso. Temos que pensar numa combinação pragmática de distintas doses de repressão direta “clássica”, judicialização de opositores sindicais e políticos, bombardeio midiático (diversionista e/ou demonizador), repressão clandestina, incentivos às rivalidades sociais (quanto mais sanguinárias melhor), irrupção de grupos que aterrorizam a população (como os “maras” na América Central ou os batalhões de narcos no México), fraudes eleitorais, etc. Desse modo, a Argentina entraria com tudo num Século XXI marcado pela escalada do capitalismo taná tico.
Entretanto, essa estratégia não pode se instalar plenamente de um dia para outro, requer tempo e uma certa passividade inicial das bases populares, e encontraria sérias dificuldades numa sociedade complexa como a argentina, com um amplo leque de classes baixas e médias portadoras de culturas, capacidade de organização, de histórias que a visão superficial dos gerentes financeiros e dos especialistas em controle social não conseguem ver como ameaças visíveis (ou parecem ser resistências ou nostalgias impotentes), mas que constituem latências, bombas de tempo de enorme poder, que podem explodir em qualquer momento. Este desafio de lidar com os de baixo pode convergir com o antigo temor que os de cima têm das hordas incontroláveis de pobres, conformando grandes interrogantes gelatinosos que generalizam as incertezas das elites, deteriorando sua psicologia.
A não viabilidade desse cenário sinistro, o possível rechaço a ele, deixaria espaço aberto para o desenvolvimento de um segundo cenário: o de uma crise de governabilidade muito mais devastadora que a de 2001. Nesse caso, a fantasia elitista da recomposição ditatorial mafiosa do poder político não havia sido outra coisa senão uma ilusão burguesa acompanhada do fim da governabilidade, do começo de um período de alta turbulência, de desintegração social de duração imprevisível. O progressismo tão desprezado pelas elites havia sido um paraíso capitalista destruído por seus principais beneficiários.
Como vemos, o inferno mafioso não é inevitável, embora não devamos subestimar a capacidade operativa dos seus executores locais e seu mega padrinho imperial, pois os Estados Unidos estão decididos a reconquistar o seu quintal latino-americano.
Para que lado penderá esta história? A resistência popular terá a resposta.
Tradução: Victor Farinelli
Créditos da foto: Casa Rosada