terça-feira, 22 de dezembro de 2015

DO COMUNICADO DE GENEBRA À RESOLUÇÃO 2254

Os termos da Resolução 2254, confirmam no essencial os do Comunicado de Genebra adoptado três anos atrás. As duas maiores potências militares do mundo acordaram entre si manter a República Árabe da Síria, enquanto os imperialistas —na vanguarda dos quais a França— prosseguem no seu sonho de mudar o regime pela força. Mas o mundo mudou ao longo destes anos e parece difícil fazer tropeçar este novo acordo, tal como foi feito em 2012.
 
Por: Thierry Meyssan,
 
As relações Washington-Moscovo
 
Os Estados Unidos e a Rússia acabam, pela segunda vez, de chegar a um acordo entre si e de concluir um plano de paz para a Síria.

- A primeira vez, foi aquando da Conferência de Genebra de Junho de 2012 [1]. Tratava-se de trazer a paz ao mesmo tempo à Síria e ao conjunto do Próximo-Oriente, dividindo entre si a região em zonas de influência [2]. No entanto, este acordo foi imediatamente sabotado pela secretária de Estado Hillary Clinton e pelo seu grupo de «falcões liberais» e «neo-conservadores». De tal modo que a França organizou menos de duas semanas depois o relançamento da guerra, aquando da conferência de Paris dos «Amigos da Síria» [3], depois com a operação «Vulcão de Damasco e tremor de terra na Síria» [4]. A este contencioso juntou-se, em fim de 2013, o golpe de Estado na Ucrânia. Os dois acontecimentos marcaram a suspensão quase completa de relações diplomáticas entre Washington e Moscovo (Moscou-br).
 
- A segunda, aquando da visita de John Kerry a Vladimir Putin, no Kremlin, a 15 de Dezembro de 2015 [5]. O encontro foi imediatamente seguido da reunião da Alta comissão da Oposição síria, e da adopção das Resoluções 2253 [6] —interditando o financiamento da al-Qaida e do Daesh— e a 2254 [7], institucionalizando os esforços desenvolvidos em Genebra e em Viena para a Síria. Para surpresa geral, a Alta comissão da Oposição elege o antigo Primeiro-ministro baathista Riad Hijab —originário de uma tribo presente na Arábia— para conduzir a sua delegação. Para evitar os erros de interpretação, o secretário de Estado Kerry declarou no Kremlin que a opinião dos Estados Unidos sobre o presidente Assad não seria obstáculo à escolha dos Sírios, pois ele afirmara ao Conselho de Segurança que o «processo político não coloca uma escolha entre Assad e o Daech, mas sim entre a guerra e a paz».
 
A retirada dos conselheiros militares iranianos tinha começado pouco antes da cimeira do Kremlin.
 
A Rússia agiu em conformidade com o Comunicado de Genebra. Este prevê com efeito integrar elementos da oposição numa espécie de governo de União nacional da República Árabe Síria. Afim de mostrar que ela luta contra os terroristas, e não contra os opositores políticos, mesmo que armados, a Rússia concluiu um acordo com o Exército Sírio Livre e o seu patrocinador, a França. Quando, este exército nunca teve a importância no terreno que os média (mídia-br) atlantistas lhe têm dado, e que não existe mais desde o final de 2013, 5.000 combatentes, saídos não se sabe de onde, colaboram agora tanto com o exército russo como com o da Síria contra a al-Qaida e o Daesh; uma encenação, muito surpreendente, quando se sabe que era suposto o ESL estar implantado no Sul, mas que agora “combate” no Norte do país.
 
Depois do fiasco da Conferência de Genebra de Junho de 2012, muita água correu debaixo das pontes. Certos protagonistas foram eliminados e as relações de força inverteram-se.
 
- O presidente Obama parece ter retomado uma parte do seu poder e encerrado o projecto da «Primavera árabe». Assim, ele conseguiu desembaraçar-se, sucessivamente, do general David Petraeus (que ele ordenou deter, grilhetas nos punhos, em Novembro de 2012), de Hillary Clinton (em Janeiro de 2013) e do general John Allen (forçado à demissão há precisamente dois meses, em Outubro de 2015). Ao mesmo tempo que limpou a sua administração —e incluído o Conselho Nacional de Segurança— de Irmãos Muçulmanos. No entanto Jeffrey Feltman permanece o numero 2 nas Nações Unidas. O qual redigiu um plano de capitulação total e incondicional da Síria, e fez patinar as negociações de paz esperando com isto a derrota do Exército Árabe Sírio [8].
 
- A Casa Branca forçou, em Junho de 2013, o emir Hamad al-Thani do Catar a abdicar e o seu Primeiro-ministro Hamad bin Jassem a retirar-se da vida política [9]. No entanto, este último tornou-se o co-presidente do Brookings Intitution Doha , enquanto o novo Emir, Tamim, tem mantido o financiamento da Irmandade Muçulmana, e das suas organizações terroristas, até chegar à crise diplomática com o seu vizinho Saudita, em Março de 2014 [10].
 
- Apesar dos avisos da Defense Intelligence Agency-(DIA) («Agência de Inteligência Nacional-ndT), o grupo de David Petraeus chegou, a meio de Maio de 2014, a liderar o desenvolvimento de uma organização, que tinha criado em 2004, com o Coronel James Steele, o Coronel James Coffman e Embaixador John Negroponte, sob o nome de «Emirado Islâmico no Iraque». Eles usaram-na para limpar etnicamente uma parte deste país tendo em vista a sua partição. Esta operação foi apoiada por certos Estados (a Arábia Saudita, Chipre, os Emirados Árabes Unidos, a França, a Itália, Israel, o Catar, a Turquia e a Ucrânia) e empresas multinacionais (Exxon-Mobil, KKR, Academi).
 
- A Casa Branca conseguiu eliminar tanto o clã do antigo rei Abdalla como o do príncipe Bandar bin Sultan da direcção saudita e de confiá-la apenas aos príncipes Mohamad Mohamed bin Nayef e Mohamed bin Salman, sob a autoridade do novo rei Salman. Esta nova distribuição enfraquece o poder, mas torna uma mudança de política possível .
 
- O Acordo 5+1 com o Irão marcou a renúncia de Teerão à sua ambição revolucionária [11], de tal modo que um modus vivendi com os Sauditas se torna possível [12], mesmo se o episódio iemenita veio complicar a tarefa.
 
- Tanto Washington como Moscovo tomaram o Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, de ponta [13]. No entanto, a pertença da Turquia à Otan força a Casa Branca a agir com prudência, tanto mais que Ancara se aliou a Kiev [14], outro teatro de guerra importante para a estratégia global dos Estados Unidos [15].
 
- A relação de forças entre Washington e Moscovo inverteu-se progressivamente, em Junho de 2012 e em Setembro de 2015. A Otan a perdeu a sua superioridade, ao mesmo tempo, em matéria de mísseis intercontinentais [16] e em matéria de guerra convencional [17] de tal modo que a Rússia é agora a primeira potência militar do mundo.
 
Por consequência, os papéis inverteram-se. Em 2012, o Kremlin entendeu içar-se a um nível de igualdade com a Casa Branca. Hoje em dia, esta última tem necessidade de negociar a falha do seu domínio militar no plano político .
 
Sinal dos tempos, a Rand Corporation, um “think tank” emblemático do complexo militar-industrial, acaba de publicar o seu Plano de paz para a Síria. Este poderoso grupo de reflexão já havia chocado o establishment norte-americano, em Outubro de 2014, afirmando na altura que a vitória do presidente Assad era a melhor saída para Washington [18]. Propõe agora um cessar-fogo que permita justificar a presença de representantes da Oposição e dos Curdos no futuro governo de União nacional [19].

A oposição aos novos dados mundiais

Ora a oposição à política de Barack Obama não desapareceu. Assim, o Washington Post acusa-o de ter capitulado na questão da mudança de regime na Síria face à Rússia [20].
 
Em 2012, podia-se interpretar a oposição do clã Petraeus-Clinton à paz como uma vontade de aproveitar ao máximo a superioridade militar dos EUA. No entanto, com o desenvolvimento de novas armas russas isto já não faz sentido. Desde logo, a única interpretação possível é a aposta em provocar, sem tardar, um confronto global, sabendo que os Ocidentais poderiam ainda, eventualmente, ganhá-lo; coisa que eles não poderiam de forma alguma esperar assim que a China fosse capaz de juntar também o seu exército.
 
Tal como aquando da Conferência de Genebra, a França interveio assim que a Resolução 2254 foi adoptada. O seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Laurent Fabius, declarou de novo que, se todos os grupos de oposição deviam poder participar no processo de transição na Síria, apenas o presidente Assad devia ser excluído; uma ideia contrária aos princípios enunciados no Comunicado de Genebra e na Resolução 2254.
 
Se se podia interpretar a posição francesa em 2012 como uma vontade de mudar o regime, –-substituindo-o por um governo dos Irmãos Muçulmanos em lugar do do Baas, na continuidade do derrube dos regimes laicos árabes («Primavera árabe»); ou como uma tentativa de «fazer sangrar o exército sírio» para facilitar o domínio regional por Israel ; ou muito simplesmente como uma ambição de recolonização--- tal não é mais possível hoje em dia, porque cada um destes três objectivos passa por uma guerra contra a Rússia.
 
A França instrumentaliza a questão síria por conta dos falcões liberais e dos neo-conservadores dos EU. Ela é apoiada nisto pelos sionistas messiânicos, os quais, como Benjamin Netanyahu, consideram como um dever religioso acelerar a vinda do Messias provocando para tal um enfrentamento escatológico.

A paz na Síria ou a Guerra nuclear ?

Seria um espanto tremendo que os falcões liberais, os neo-conservadores, e os sionistas messiânicos conseguissem impôr a sua política aos dois Grandes. No entanto, será difícil chegar a um resultado definitivo antes de janeiro de 2017 e da chegada de um novo presidente à Casa Branca. Assim, compreende-se melhor o apoio declarado de Vladimir Putin por Donald Trump, que parece o melhor colocado para fazer barragem à amiga deles, Hillary Clinton [21].
 
Na realidade, tudo está pronto para concluir um acordo de paz que permita aos vencidos salvar a face.
A reter :
- A Resolução 2253 interdita aos patrocinadores do Daesh e da al-Qaida prosseguir a sua acção. A Resolução 2254 confirma o Comunicado de Genebra de Junho de 2012. Os dois Grandes acordaram em manter a República Árabe Síria e apoiar um governo de união nacional. 
 
- A oposição armada apoiada pela Arábia Saudita escolheu o antigo Primeiro- ministro bathista Riad Hijab, em função da altura do Comunicado de Genebra, para liderar a sua delegação. Enquanto a Rússia concluiu um acordo com o Exército Sírio Livre e o seu patrocinador, a França.
- Tudo está pronto para concluir um acordo de paz, que permite aos vencidos salvar a face. Mas, tal como em 2012, a França relançou as suas exigências assim que a Resolução 2254 foi aprovada.
Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).
 
Tradução Alva