sábado, 3 de setembro de 2016

Crônica: HISTÓRIA DA CIDADE DE BISSAU

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Há muito que não fazíamos amor desta maneira. Hoje tu foste muito especial, mas dinâmico, mais apaixonado. Fiquei toda esculhambada – disse Mary ao Carlos, depois de uma longa noite eivada a prazer carnal e espiritual.

– Sei lá porquê, porém parecias que era a primeira vez que te via, a primeira noite em que toava teu corpo. Teu olhar quando te convidei, e resistias, deixou-me assim tão com água na boca, e o coração a saltitar no meu corpo que cheguei a pensar que fosse ter um troço qualquer, um infarto – que Deus me livre desta desgraça -, respondeu-lhe o Carlos.
Finda esta sessão plenária de cama, os dois saíram à varanda de casa para tomar o ar fresco. E Carlos pôs-se a contar a Mary as história da cidade de Bissau que ouvira em tempos da boca dos seus avós.
Do narrador aos seus ouvintes:
Os do mar. E portanto os da água que dá substância à vida. Foi assim que NDjirap Ko, na sua expedição, chega a Bissau, desbravando as matas para poder povoar-se com seus sobrinhos maternos – os quais nominalmente deixaremos registado neste texto.
Diz a lenda que tendo chegado a Bissau, uma vez conquistado o dono do chão, o iran grande de Bissau, pôs no trono seu sobrinho, Djoku e NToman, ambos djagras, para que ficassem e povoassem nesta terra que viria a ser a capital da Província, e posteriormente, a do país.
Contudo, nesta narrativa, ainda consta o nome de Munkaw, não apenas como um dos fundadores de NTin, mas também sua Baloba é que governa desde Bissau até Biombo.
Segue em direcção à Safim, onde deixa NKanso, e atravessando João Landim, ocupa temporariamente Bula, mas o iran indica-lhe o caminho, através do fogo, que ardia em Binjimita, e segue ele com a sua caravana até lá onde deixam Kolu, o fundador de Bijimita.
Continuando a expedição, fundam Thor, de Knampla Ka, e em seguida atravessam o rio, lá em ondame de Thor, para Kissett e Praws, onde fica o fundador Sigá, e finalmente, conquistam Biombo, onde o chefe dos expedidores, exploradores, e fundadores, NDjirap Ko, descansa, juntamente com mais seis sobrinhos maternos seus.
Anos mais tarde, segue em busca de pescado, caça e lazer, fundando assim, Plyll, ou seja Pecixe, que, em pepel, significa, lugar de repouso, de descanso e lazer.
Foi em Pecixe que ele viria a falecer, ou melhor, ele viria a dormir um sono profundo, pois ele ascendeu-se aos Céus, porém deixou sua marca, através de uma estátua que até hoje se vê na travessia do mar de Biombo para Plyll.
Bissau, o reino NTin, significa, o chão que é meu, onde exerço meu direito exclusivo de paternidade. E, quiçá, de maternidade, e fraternidade, por que não?
Kumeré teria sido fundado por NDjipunapa (Sanhá) Ka. Os pepeis de Kumeré teriam perdido a força quando vieram lutar em Bissau contra a tropa colonial portuguesa na guerra de Pacificação. Na volta, como havia quase todo o contingente de homens e mulheres, atravessando pelo Reino de NTula, chegam e encontram suas casas e seus pertences, uns queimados, outros vandalizados. Ou seja, teriam tido todo o património destruído pelos povos do Norte que tinham apoiado a tropa portuguesa para destruir os infiéis e temíveis pepeis.
Assim, acabaram por imiscuir-se em Bissau, misturando-se aos ntinianos, e outros foram, de modo especial, os donos do poder, os djagras, para Bôr. Ainda hoje há os remanescentes deste reinado em Bôr.
  1. A lenda
Diria que a Cidade de Bissau foi, e sempre será, a capital da Guiné-Bissau não apenas por sua origem mítica, mas por sua própria especificidade histórica, geográfica, e com um capital humano acostumado à luta – como dinâmica transformacional de qualquer que seja a sociedade.
Em Bissau lutar é preciso. E necessário.
A este povo, originários dos ntinianos, os proprietários deste chão malgós, nada que se lhes diga os libertará, e ao mesmo tempo, nada que se lhes imaginas os alcançará. Foi assim desde os primórdios, e será assim até os confins dos confins de nossas vidas terrenas. E celestiais.
Todavia, a lenda da riqueza dos solos tropicais que circundam sua bacia, através das águas ora limpas ora turvas do rio grande do canal de Geba, sua ilha, e os ilhéus do Rei e de Bandim, dão-nos o contorno da importância económica singular desta magnífica cidade-Estado. Pois aqui é o fim do princípio. E nada mais a declarar.
A ocupação integral do continente e do arquipélago, tanto de sua parte continental, do chão de terra firme, quanto de suas ilhas e ilhéus, por parte do colonizador, segundo diz ele, nunca em hipótese nenhuma conseguiu amedrontar a população de Bissau na sua terrível e temível respostas com que prontamente dava à violência da máquina colonial. Na mesma altura e na mesma – e talvez mesmo na superior – proporção.
Nela, colhe-se a impressão da apetitosa miragem à margem de seu litoral, e da sua paisagem esculturalmente bela. Tão bela que, segundo reza a lenda, tendo aportado os portugueses no Cais de Pindjiguiti, teriam avistado uma menina e perguntaram-na pelo seu nome. Não compreendendo a língua do peixe, disse-lhos:
– NDjoko ninsaw…
E eles, prontamente:
– Ah isto se chama Bissau.
Questões de língua a embaralhar os portugueses. Pois no lugar de dizer que “sou de Bissau”, isto é, “sou desta terra, deste chão”, isto é, pepel – é assim que são chamado os pepeis de Bissau, “bossau”.
  1. Bissau, o ponto do iceberg
Rias e rios sem risos galopantes. Cursos d’águas na zona litoral assim como na zona interior. Eis as características sui generis de nossa cidade.
Bissau é o nó de todo o sistema de comunicações marítimas e fluviais deste solo mátrio que nos pôs no mundo.
Na construção da Fortaleza de São José d’Amura, muitas vidas foram ceifadas. Senão vejamos: durante a construção daquilo que é hoje o Quartel-General das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), anos a fio, o Quartel do Exército, foram mortas mais de 38.000 resistentes. Uma construção que durou mais de dez anos para ser concluído, isto sem contar com os anos de interrupções e destruições sempre que os portugueses levantavam o muro, e os pepeis os destruíam. Punham-no ao chão.
Os habitantes de NTin que resistiram tenazmente para que o colonizador português não ocupasse seu Chão, a terra dos seus ancestrais, a terra que os viu nascer, não podia, em hipótese nenhuma, ser governada por peixes. Era assim que eles tratavam os portugas de então.
Bissau é a charneira que separa, mas paradoxal e simultaneamente, dá subsistência ao Senegal.
  1. A ilha de Bissau
A ilha de Bissau  não é ainda muito bem conhecida por não ter sido suficientemente explorada. Não obstante o percurso de suas entranhas que pode ser feito com suas casas cobertas de palhotas e barros, cibis. Paredes erguidas sem nenhum sinal de cimentos, ou doutras estruturas de concreto.
A massa – não a do povo – não amassou as esperanças no devir do nosso povo, nem a obstinada crença na fé de que este chão nos pertence a nós, guineenses, e nunca aos portugueses (e suas comparsarias).
Sinto-me portanto, apesar da nobreza da minha idade, absolutamente sem condições (aliás, nenhumas) para falar que, efetivamente, o colonizador teve grande penetração na famigerada Província da Guiné. E, mesmo assim, que tivesse havido registo, em formato de Crónica histórica ou de cartografia – mapa – que refutassem tal hipótese, provando o contrário.
  1. A sempiterna capital
A cidade de Bissau, a sempiterna capital do nosso país. Foi-lha pela quarta vez, quando fora proclamado o Estado guineense nas Colinas de Boé. E, na verdade, a primeira desvirginada como a capital-mãe do país que se erguia das matas do nosso solo sagrado, a Guiné-Bissau.
Caminhando pela orla do Cais de Pindjiguity, já tarde deste dia especial em que fizeram o mais belo amor carnal, e também ele espiritual, porque houve entrega total, passaram em revista o principal porto desta capital do setor autónomo de Bissau.
Mary e Carlos percorreram sua margem ao norte do estuário do rio Geba. Rio esse que refresca a memória histórica do país em agonia, em cujo começo data do século 16, quando sua povoação – com a presença do europeu começa a sentir-se em seu território – foi ganhando maior impulso no século 18 com a construção do Forte de São José de Bissau (Forte de Amura), o qual tinha sido iniciado desde os idos anos de 1766.
Continuou o narrador para o deleite dos seus ouvintes, vós, caros leitores, mas a ouvinte especial é a Mary que escuta em primeira mão a história da sua cidade natal:
Ano vai ano vem, ela foi elevada a categoria de vila, em 1859, e tornando-se cidade em 1914. Passou a ser capital do País, em 09 de Dezembro de 1941, depois de o ser, pela primeira vez, em 1836. Muito esforço foi transferi-la para Bolama, tiveram que dar uma marcha à ré para que ela continuasse a menina mais linda da África Ocidental.
Somente em 06 de Fevereiro de 1948 transforma-se na Câmara Municipal da Guiné Portuguesa.
– Bissau é uma cidade mulher – dizia minha avó, esboçou o último suspiro o Carlos.
A fortaleza tinha começado a ser construído em 1687, quando o rei local, imagino que seja, Bekampolo Ko, concordou, junto a Portugal, em construir ali uma fortificação, a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição que, anos mais tarde, se tornaria a Fortaleza de São José d’Amura, pois ali tinha-se baptizado com o nome da Praça de São José.
Assim, funda-se em 15 de Março de 1692 e, de fato, em 1696, foi iniciada a edificação da fortaleza pela Companhia de Cacheu e Cabo Verde, sob o comando do capitão-mor José Pinheiro da Câmara, conforme reza a História oficial.
Em 1703, no entanto, a companhia responsável pela construção não teve seu contrato de exploração de escravos renovado pela Coroa portuguesa. E a cidade se viu, mais uma vez abandonada, devido ao cúmulo de prejuízos que tráfico negreiro representava para a economia da metrópole. Porém, o abandono da Capitania-Mor de Bissau só viera a acontecer em Dezembro de 1707. Foi neste ano – já no governo do rei D. João V -, que o forte fora destruído pelos insurrectos pepeis de Ntin, Biombo, Safim, Kissett e Kumeré.
Entretanto ainda reza a presença dos guerreiros do norte, mas esquece-se que até 1905, os próprios ntinianos é que detinham o domínio dos regulados de quase toda a região de Cacheu, sentando em Bassarel onde ungiam os demais régulos locais.
– Que linda história, tão linda e maravilhosa como fora nossa noite de núpcias, disse a Mary. E arrematou:
Sua terra agrícola que seduzira os europeus
As ancas de suas mulheres nos olhos teus
Suas culturas redondas
Seus homens vibrando em ondas
Eletromagnéticas
É que deu a impressão de que traria a riqueza
Às suas populações indígenas
 Mas foram os alienígenas
Com suas fantasias de playboys
Que fustigaram suas crias
E ninguém mais cria
Nas suas rias
Trazidas pelas águas dos mares sempre navegados
Por entre rios e riachos
Com “conas” e caralhos
A penetrarem-se estupidamente
Ao mesmo tempo que são fixados pelo mangal
Porém enriquecidas pelos aluviões
E por descargas soturnas de aviões.
– Não sabia que era poeta?, inquiriu-lhe Carlos.
– Não sou poeta, sou rapper, curto tu o sabes o HIP HOP  – riu-se ela escancarandos todos os dentes e a mandíbula ficou à solta tal como a sua língua – como nunca tinha rido antes.
Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.
Por: Jorge de Nascimento Nonato Otinta, ensaíte, poeta e crítico literário guineense