Abordar a questão sobre a arbitrariedade dos preços de produtos da primeira necessidade no mercado guineense, é-nos imperativo fazer uma efémera viagem no tempo, para trazer elementos que permitam enriquecer a reflexão deste tema tão atual.
Conforme descrevem os anais da nossa história, nos meados da década oitenta, a Guiné-Bissau aderiu às Instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e FMI). Processo cujos primeiros contatos se fizeram ocorrer em 1983, visando o estabelecimento de um programa de estabilização económica e financeira e tendo como desfecho a adoção do modelo de desenvolvimento económico baseado na Economia de Mercado.
Deveras, em nada releva a rápida e gratificante viagem no tempo, se não tivermos ilustrado que o modelo em causa se traduz fundamentalmente na livre iniciativa dos sujeitos económicos, ademais de, em regra, implicar a não ingerência do Estado no funcionamento do mercado, tendo como fulcro a teoria de “Mão Invisível” aduzida ao debate doutrinário por Adam Smith – vertida essencialmente na suficiência da própria dinâmica mercatória, através de critérios de procura e oferta, em garantir o seu regular funcionamento.
O que equivale dizer que cada agente económico (quer produtor, quer distribuidor, assim como consumidor) se reserva no direito de determinar sobre o que vai produzir, distribuir ou consumir, e de que modo – tudo em função das suas preferências subjectivas.
Não é menos correto afirmar que foi em consequência disso que a “proliferação” do sector privado se eclodiu da penumbra da economia guineense, tendo assumido um papel preponderante, justamente porque a propriedade dos meios de produção deixou de pertencer exclusivamente ao Estado, mas também aos privados que, atualmente, detêm a maior fatia de atividade económica no país.
Entretanto, tem-se registado, nos últimos tempos sem qualquer razão justificativa, uma onda de especulação dos preços de produtos da primeira necessidade, facto que se consubstancia na falha de mercado – fenómeno cujo efeito se traduz no principal handicap ao alcance do bem-estar social num mercado imune da interferência da ação governativa.
Face à esta situação, importa referir, tendo em conta as considerações supra, que o Estado também se reserva no direito de intervir no mercado, a título subsidiário – ou seja, desde que os mecanismos de mercado, não regulados por ele e deixados livremente ao seu próprio funcionamento, venham provocar resultados económicos indesejáveis do ponto de vista social, à semelhança do que estamos a testemunhar no nosso mercado.
A admissibilidade do eventual intervencionismo governamental na atividade económica privada não deve causar estranheza alguma, por uma razão muito simples: é o homem que faz o mercado, disso todos sabemos. Mas se o próprio homem não é perfeito, como é que se pode esperar a existência de um mercado perfeito e que, desde logo, não careça de mecanismos de poder político tendentes ao seu regular funcionamento? Obviamente que não; daí que se vê toda a necessidade de existir uma ação interventiva do poder político, enquanto único e justo detentor de ius imperii, por forma a adotar medidas corretivas tendentes a estancar esta onda da especulação dos preços de produtos em análise.
E mais, nada obste a que se socorra do método de Ordenação Económica apontada pelo Prof. António Luciano Pacheco de Sousa Franco (in Finanças Públicas e Direito Financeiro, Vol. I), como uma das relações que se estabelecem entre o Poder Político e a Economia, asseverando que, citamos: “por mais liberal que seja a sua filosofia económica e social (referindo-se à economia de mercado), cabe aos poderes públicos estabelecer os quadros gerais em que toda a atividade economia há de se desenvolver”.
Isto porque da liberdade que se fala em sede da Economia de Mercado não se reveste de carácter absoluto, ou seja, trata-se duma liberdade meramente relativa, tendo-se, como é óbvio, deparado com algumas limitações decorrentes da fixação de certas disposições legais de carácter injuntiva. Tanto assim que nenhum operador económico pode reclamar a comercialização de um órgão do corpo humano, invocando o direito da livre iniciativa do desenvolvimento da atividade económica, nem podendo dispor de coisas que a lei faz situar à margem de comércio, conforme se vislumbra nos termos do art. 202.º/2 do CC.
Sendo assim, atendendo a urgência que a questão requer, e, por se tratar de um direito tutelado pela ordem jurídica e que implica diretamente com os direitos fundamentais de cidadãos – configurados no capítulo de Direitos Económicos, Sociais e Culturais – ditos da segunda geração, consagrados no Título II da Constituição da República da Guiné-Bissau; considerando ainda que governar implica ser sensível aos problemas com que a sociedade se depara, e que a resolução de tais problemas se deve agilizar por forma a diminuir a amargura do povo;
Defendemos a modesta opinião da intervenção do Governo no mercado – que se traduz fundamentalmente em proceder ao estabelecimento da tabela de fixação dos preços máximos de produtos como arroz, óleo, farinha, carne, peixe… – observados como base da nossa dieta alimentar e, ato contínuo, obrigar os operadores económicos a conformarem os preços em função da nova tabela, permitindo, deste modo, o resguardo da tutela de confiança que os cidadãos devem depositar nas instituições da República.
Sem querer dramatizar, lamentável é a pouca proatividade, senão indiferença e notória incapacidade do atual Executivo em fazer face a esta trágica arbitrariedade dos preços de produtos em apreço, justamente porque a conivente inércia do atual poder político face ao problema em análise não se compadece, minimamente, com a defesa dos superiores interesses do martirizado povo que o instituiu.
Ora, o grande paradoxe é o seguinte: como é que se acha razoável, num país com taxa de desemprego igual à dimensão de “Buda do Templo da Primavera”; com salário mínimo nacional aos 25.000 francos CFA, custando o arroz [50kg] a 21.000 francos CFA? Se o Estado, na qualidade de maior empregador na Guiné-Bissau, não estiver em condições financeiras em adequar salário mínimo dos servidores públicos aos custos de produtos básicos da primeira necessidade, no mínimo deve acionar mecanismos fiscais que contribuam no bem-estar social.
Aliás, o Estado deve fomentar e incentivar a iniciativa privada, como vetor imprescindível e privilegiado para criação da riqueza e consequente desenvolvimento económico, sem perder de vista a regulação na atuação destes operadores económicos. Ou seja, o poder político deve fiscalizar o mercado, aplicar medidas corretivas, através de suas estruturas competentes, quando haja deslize “exagerado” na obtenção de lucros que sufocam o cidadão da república indefeso. Caso contrário, cria-se uma sociedade de bajuladores, de corruptos, de delinquentes, de anarquistas, de Gatunos, em nome da luta pela sobrevivência.
As autoridades da Guiné-Bissau devem assumir as suas devidas responsabilidades, porque quando não há [intervenção] Estado, cada cidadão por si, desordem por todos.
Por: Infali Conté
Licenciado em Direito
Universidade Jean Piaget da Guiné-Bissau.
Advogado Estagiário
Bissau, junho de 2017