domingo, 2 de julho de 2017

ISLÃO E CLERICALISMO NO MÉDIO-ORIENTE ALARGADO


Um homem político pode ser ateu, agnóstico ou crente. Mas, o facto de pretender servir a Deus não faz do seu partido político uma Igreja.

Rede Voltaire, Thierry Meyssan*
 
No Ocidente é de bom tom dissertar sobre «a compatibilidade do Islão com a Democracia» ou sobre «o Islão e o Laicismo». Estas problemáticas deixam supor que, por natureza, o Islão seria clerical. Que não constituiria portanto uma religião, mas, sim uma corrente política. Assim, os muçulmanos mais «radicais» seriam terroristas e inversamente. 

Ora, desde há um mês o Médio-Oriente Alargado, de população maioritariamente muçulmana, está em vias de se dividir entre fieis desta religião e partidários de uma política que os manipula.


Alguns dos nossos leitores compreenderam mal uma crónica precedente sobre a evolução do mundo muçulmano. Vou, pois, aclarar questões relativas ao Islão antes de descrever o mais precisamente possível a sua situação actual.
 
Em primeiro lugar, se têm uma ideia feita quanto ao Islão, é porque vocês não conhecem mais do que uma única das suas versões, já que de Marrocos até ao Xinjiang esta religião assume as formas mais variadas. Quer seja no plano litúrgico ou jurídico, não há qualquer semelhança entre o Islão de Sarjah (um dos Emirados A. Unidos- ndT) e o de Java.
 
Esta religião pode ser abordada a partir de uma leitura literal do Alcorão, ou a partir da sua leitura contextualizada, ou, ainda, a partir de uma crítica da autenticidade do texto corânico actual.
Durante os primeiros quatro séculos do Islão, todos os muçulmanos concordavam com a necessidade de interpretar o Alcorão, o que se traduziu na elaboração de quatro sistemas jurídicos distintos (hanafita, malequita, shafiita e hanbalita), segundo as culturas locais. Mas no fim do século X, constatando a expansão desta religião e temendo que ela acabasse por se dividir, o califa sunita interditou que se levasse a interpretação mais longe. Apenas os xiitas a continuaram. Desde então, o Islão adapta-se como pode às exigências do seu tempo.
Contrariamente às aparências, se nos recusarmos a interpretar o texto, não o conseguimos compreender tal e qual ele foi redigido, mas unicamente através da sua própria cultura. Sabendo que Maomé viveu na Arábia, os Sauditas tomam como certo que compreendem de forma espontânea o sentido do Alcorão como se a sua sociedade e a sua língua não tivessem evoluído desde há 1.400 anos. Para eles, tal como no século XVIII para Mohammed ben Abdel Wahhab, Maomé reforçou os valores do tribalismo nómada. São estes os «wahhabitas». Por exemplo, o Alcorão condena os ídolos, por isso os wahhabitas destroem as estátuas de deuses antigos, o que Maomé jamais fez, mas que corresponde à sua cultura beduína. No século VIII, os cristãos bizantinos tiveram que enfrentar igualmente os «iconoclastas» sauditas que destruíam, em nome de Cristo, as decorações das Igrejas. _ O tribalismo nómada não tem sequer a própria noção de História. Os wahhabitas destruíram a casa do Profeta, em Meca, porque ela se havia tornado num local de peregrinação, portanto, segundo eles, de idolatria. Mas eles não pararam por aí. Nestes últimos anos destruíram toda a antiga e magnífica cidade de Meca porque culturalmente não atribuem qualquer significado a essas relíquias.
 
Se nos referirmos à sua leitura literal, seremos «fundamentalistas». Em geral, pensa-se numa vida tal como a dos companheiros do profeta. Neste caso é-se, então, um «salafista», já que nos tentamos aproximar dos piedosos ancestrais (os «salafs»). Este movimento, nascido no século XIX, no Egipto, constituiu-se em resposta ao wahabismo e era extremamente liberal. Ora, no entretanto tornou-se muito repressivo. 
                                                                       
Por exemplo, a maioria dos salafistas actuais proíbe o consumo de álcool, mas alguns xeques afirmam o contrário, que é lícito beber com moderação. Todos acham a sua justificação no Alcorão, o qual comporta três passagens aparentemente contraditórias sobre este assunto. _ Todas as religiões são confrontadas com esta impossibilidade de reproduzir um passado que ninguém pode reconstituir. Por exemplo, no século XX, o movimento carismático entre os cristãos levou a entendimentos opostos sobre a sexualidade segundo eram baseados directamente nos Evangelhos ou na moral das Epístolas de Paulo.
 
Desde há alguns anos, sob a influência do trabalho realizado por exegetas europeus a propósito da redacção de textos bíblicos, alguns autores questionam a autenticidade do texto corânico. _ Em primeiro lugar, de maneira a afirmar a sua autoridade, o califa de Damasco fez coligir textos atribuídos a Maomé a partir dos quais ele constituiu o Alcorão, depois mandou queimar todas as outras antologias. Além disso, a palavra «Maomé» não designa uma pessoa específica, é um título dado aos sábios. É, pois, possível que o Alcorão reproduza as palavras de vários Profetas o que parece ser corroborado pela presença de estilos literários diferentes no texto canónico. 
                                         
Os arqueólogos descobriram textos corânicos anteriores à versão canónica. Existem diferenças, por vezes significativas, entre estes textos escritos com alfabetos distintos. Além disso, quanto ao Alcorão canónico, propriamente dito, foi escrito com um alfabeto simplificado que só foi completado mais tarde, no século VIII. Esta transcrição é em si mesma uma interpretação e é possível que ela tenha sido por vezes mal feita. _ Claramente, algumas suratas (capítulos -ndT) do Alcorão retomam textos mais antigos utilizados pelos cristãos da região. Elas não foram compostas em árabe, mas em aramaico e certas palavras originais foram conservadas no texto definitivo. A sua leitura contemporânea é objecto de inúmeras incompreensões. Assim —não mexe sequer com os kamikaze do Daesh (E.I.) que esperam a sua recompensa no paraíso— a palavra «houri» significa «uvas brancas», e não «virgens de olhos grandes» (ndT= os suicidas do Daesh explodem-se crendo que no paraíso terão 72 virgens de prémio).
 
Resumindo, as coisas são bastante simples: o Islão é a religião do Alcorão. No entanto a tradição confere uma importância quase igual à lenda dourada do Profeta, as Hadiths. Trata-se de obras escritas muitas vezes centenas de anos mais tarde por pessoas que não podiam ter sido testemunhas dos factos que relatam. Estes factos são muito mais numerosos daquilo que seria possível ter ocorrido em toda uma única vida. Ilustram opiniões muito diversas e opostas. Algumas são de um nível intelectual impressionante e podem servir para justificar seja o que for. O crédito indevidamente atribuído a estes escritos fantasiosos deformou profundamente a transmissão da mensagem corânica.
 
Na prática, todas estas discussões mascaram uma outra, essencial: muito embora a religião seja o que tenta conectar o homem com Deus, acaba necessariamente por ser o lugar de todos as golpadas. Porque, como se pode pretender conhecer a Deus se ele é de uma natureza radicalmente diferente e superior à nossa? E, supondo que Ele se tenha expresso através dos profetas, como se pode pretender compreender o que Ele nos teria dito? Notai que, nesta perspectiva, a questão da existência de Deus —quer dizer de uma consciência superior à nossa— não faz mais nenhum sentido. É, por exemplo, o que defendiam entre os cristãos São Gregório de Nazianze ou São Francisco de Assis.
 
Sempre nesta perspectiva, os homens que buscam aproximar-se de Deus —isto é, não a aplicar a Sua Lei, mas a fazer evoluir a natureza humana para a tornar mais consciente— têm tendência a partilhar a sua experiência e, portanto, a formar Igrejas. Para funcionar estas tendem a formar profissionais, sacerdotes ou imãs. No cristianismo esta função só apareceu a partir do IIIº século, ou seja várias gerações após a morte de Jesus. Em todas as religiões, estes clérigos acabam por desfrutar de um estatuto intermediário entre os laicos e Deus. No entanto, nenhum dos fundadores das grandes religiões criou, por si próprio, nenhuma Igreja, ou clero.
 
Assim como a Europa experimentou um tremendo retrocesso com as grandes invasões que destruíram o Império Romano (os Hunos e os Godos), do mesmo modo o mundo muçulmano experimentou também um retrocesso com as invasões mongóis (Gengis Khan e Tamerlão). Se este trauma só durou três séculos na Europa, ele foi artificialmente prolongado no mundo árabe pelas colonizações otomana e europeia. Embora isso nada tenha a ver com a história do cristianismo, nem com a do islão, surgem clérigos que pretendem que esses retrocessos são a consequência do pecado, que se teria generalizado. Para regressar à idade de ouro, bastaria pois seguir os seus ensinamentos, e não tratar de reconstruir.
 
Inexoravelmente, clérigos metem-se na política e pretendem impor a sua visão das coisas em nome de Deus. Segue-se uma disputa rival entre eles e os laicos. Assim, em França, logo que o trauma das grandes invasões foi ultrapassado, a realeza laica, muito embora sendo considerada de «direito divino», entrou em conflito com o papado clerical. No mundo árabe, o qual não passa de uma minoria no seio do mundo muçulmano, este conflito surgiu com a descolonização e os movimentos de independência. Os líderes nacionalistas (Nasser, Ben Barka) chocaram-se com os Irmãos Muçulmanos. Durante a Guerra Fria, os primeiros foram apoiados pelos Soviéticos e os segundos pela OTAN. A dissolução da URSS enfraqueceu o campo nacionalista e traduziu-se numa vaga islamista. Além disso, a «Primavera Árabe» foi uma operação da OTAN para eliminar definitivamente os nacionalistas em favor dos Irmãos Muçulmanos. As multidões que apoiaram estes movimentos não procuravam, de forma nenhuma, a instauração de democracias. Pelo contrário, estavam convencidas que colocando os Irmãos Muçulmanos no Poder, elas criariam uma sociedade ideal e uma nova Idade de Ouro islâmica. Depois, acabaram no maior desencanto.
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O partido político dos Irmãos Muçulmanos foi reconstituído, em 1951, pelos serviços secretos britânicos sobre as ruínas da organização homónima de Hassan el-Banna. Ele é a matriz do terrorismo no mundo muçulmano, tendo formado a totalidade dos chefes das organizações terroristas, de Osama Ben Laden a Abou Bakr al-Baghdadi. Este partido político e as suas organizações armadas trabalham em colaboração com as potências imperialistas. Nada há de religioso neles.
Importa compreender que os Irmãos Muçulmanos e as suas organizações jiadistas, Alcaida e Daesh (E.I.), não são muçulmanos radicalizados tal como gostam de fingir no Ocidente. Trata-se de movimentos políticos, não de religiosos. O facto de que eles citam constantemente passagens do Alcorão não os torna, a propósito, religiosos. São apenas clericais.
 
A reviravolta contra a «Primavera Árabe» começou, em Junho de 2013, no Egipto, onde 33 milhões de cidadãos marcharam durante cinco dias contra a ditadura do Irmão Mohamed Morsi e em favor da restabelecimento da ordem constitucional pelo exército. A totalidade —sem excepção— dos partidos políticos e organizações religiosas uniu-se em torno do exército contra os Irmãos Muçulmanos, quer dizer em favor da laicidade e contra o clericalismo. Nos meses que se seguiram, o chefe do exército, o General Abdel Fattah al-Sissi, que ambicionava ser eleito presidente, transmitiu à Arábia Saudita documentos apreendidos na sede dos Irmãos. Eles atestaram que membros da Confraria preparavam a partir do Catar o derrube dos Saud. A resposta de Riade não se fez esperar : prisão de alguns membros da Irmandade na Arábia, atentados no Catar e apoio incondicional à eleição do General al-Sissi.
 
A situação dos Saud era tanto mais complicada quanto
- nem toda a Confraria estava implicada no complô;
- desde 1961, eles eram os patrocinadores da Confraria via Liga Islâmica Mundial;
- e que o seu regime estava encostado ao wahhabismo, portanto de natureza clerical como os Irmãos Muçulmanos.
 
Os Saud deram carta branca aos Nayef para reprimir os putschistas e restabelecer a ordem. Eles agiram como o tinham feito em 1990, aquando da revolta dos sourouristas. À época, um líder dos Irmãos Muçulmanos, Mohammed Sourour, conseguira convencer os wahabitas sauditas a tomar o Poder. Foram precisos cinco anos para derrotar a rebelião [1].
 
Foi este passado que ressurgiu quando, em Maio de 2017, o Presidente Donald Trump veio a Riade ordenar às potências muçulmanas para acabar com os Irmãos Muçulmanos. Os Saud decidiram desta vez reagir rompendo não só com a Irmandade, mas também abandonando o islão político. Que fique claro : o facto de tomar o partido do laicismo não muda em nada o de ser fundamentalista, salafista. A monarquia do rei Salman encontra-se na mesma posição que a monarquia francesa de Filipe, o Belo. Para acompanhar esta evolução decisiva, o conselho de família dos Saud aceitou, por 31 votos contra 4, preparar a abdicação do rei Salman, pôr fim à regra adélfica de sucessão ao trono, saltando duas gerações, e designar o Príncipe Mohammed ben Salman (filho do actual rei, Salman -ndT) como o seu próximo rei.
 
Por seu lado, o Catar e a Confraria aproximaram-se imediatamente da Turquia e do Paquistão. Acima de tudo, estabeleceram aliança com o Irão, do qual combatem ainda os Guardiões da Revolução nos campos de batalha da Síria e do Iémene, mas cujo governo, do Xeque Rohani, partilha a sua concepção clerical de Islão.
 
Esta reviravolta do Irão põe em evidência a oposição entre o seu poder político e o seu poder militar. Ela apoia-se no pacto feito entre Hassan al-Banna, o fundador da primeira Confraria dos Irmãos Muçulmanos, e o jovem Aiatola Khomeiny. Um pacto segundo o qual os Irmãos não lançariam guerra de religião entre sunitas e xiitas, compromisso que voou em estilhaços com o Daesh (E.I.). Sobretudo, apoia-se nas ambiguidades da Revolução de 1979, ao mesmo tempo movimento laico anti-imperialista e processo identitário clerical, e na evolução da função do Guia Ali Khamenei, tanto líder da Revolução mundial como político local encarregue dos equilíbrios entre facções.
 
Tendo em vista as treze exigências transmitidas pela Arábia Saudita e o Egipto ao Catar, é pouco provável que o conflito entre laicos e de clericais se resolva rapidamente. A questão que se põe é a de saber se os Ocidentais compreenderão o que se joga actualmente no «Médio-Oriente Alargado». Eles que apresentaram o Presidente Ahmadinejad como um clerical, eles que apresentaram o Irmão Morsi como não tendo falsificado a sua eleição, e como tendo sido derrubado por um golpe de Estado; os mesmos que pretendem que a Líbia e a Síria não foram atacadas a partir do exterior mas que foram palco de revoluções democráticas. É que à força de mentirmos a nos próprios perdemos o contacto com a realidade.
 
Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).
 
Tradução Alva