segunda-feira, 11 de setembro de 2017

"DEPOIS DE FORMADAS AS COMPANHIAS É QUE VIMOS A TRAGÉDIA"

Quarenta e cinco camaradas de duas companhias afogados no rio Corubal, na região de Madina do Boé.

Foi em Bafatá que enviei um aerograma para a minha mãe
Tirei o curso de Oficial Miliciano e fui dar instrução ao Batalhão de Caçadores 8, em Elvas. Antes de seguir para Abrantes, para formar a Companhia de Caçadores 2405, que integrou o Batalhão de Caçadores 2852 na Guiné, tirei o Curso de Minas e Armadilhas, em Tancos. Embarcámos em julho de 1968. Passados cincos meses em Mansoa, deslocámo-nos para Bambadinca. E, no início de fevereiro, fomos mobilizados para a operação de evacuação da guarnição de Madina do Boé, junto à fronteira com a Guiné-Conacri.

A companhia que lá estava (CCAÇ 1790) era flagelada quase todos os dias. A operação foi comandada pelo então tenente-coronel Hélio Felgas (comandante do Agrupamento 2947, de Bafatá). Como a operação tinha 10 dias de duração, quando passámos por Bafatá, meti no correio um aerograma para os meus pais, para que não ficassem preocupados com a ausência de notícias. O aerograma era muito singelo e a minha mãe desconfiou de algo.

No dia seguinte, formou-se uma grande coluna e avançámos para Madina do Boé. Quando chegámos a Cheche, junto ao rio Corubal, encontrámo-nos com um destacamento a nível de grupo de combate, comandado pelo alferes Dinis. Para a travessia do rio havia uma jangada, que levava um carro pesado de cada vez. Nós fomos os primeiros a passar para montar a segurança na outra margem.

O DIA MAIS TRAUMATIZANTE

Fizemos a pé o percurso de 40 km até Madina do Boé. A estrada parecia um cemitério de Unimog e de GMC. Quando a noite começou a cair, entrámos no quartel em pequenos grupos. Se o inimigo andasse por perto, tinha-nos apanhado à mão. Ainda rebentados da véspera, mandaram-nos ainda mais para sul, para junto da fronteira, para fazer a proteção avançada. Ali passámos 24 horas, o tempo necessário para as viaturas chegarem e serem carregadas. O inimigo andava por perto. Bem os ouvíamos no nosso rádio.

De madrugada deram-nos ordem para fechar a coluna que já estava a serpentear a estrada. Foi assim que a posição de Madina do Boé foi abandonada. A nossa progressão até ao rio Corubal foi penosa. Estacionámos na margem sul com a companhia de Madina (Caçadores 1790), durante toda a noite, para proteção. De madrugada, a jangada foi transportando para a outra margem todas as viaturas. O dia seguinte (6 de fevereiro de 1969) foi o mais traumatizante. Passados todos os carros, foi a nossa vez de atravessar o rio. A nossa companhia passou para a frente da de Madina e o meu grupo de combate para a cabeça. A companhia dirigiu-se para a jangada, mas só coube o meu grupo. A jangada regressou para ir buscar o resto do pessoal. Todos os que estavam na outra margem subiram para a jangada que, a poucos metros, adornou para um dos lados. Por falta de peso, a embarcação cedeu para o outro lado, atirando outros tantos ao rio. Depois, ficou meio submersa. Uma vez formadas as companhias é que demos conta da tragédia: 45 camaradas afogados, de ambas as companhias.

Com as botas, o peso da cartucheira, das granadas e a responsabilidade de não perderem as armas, os soldados, à medida que caíam na água, iam logo para o fundo, agarrando-se uns aos outros. Vi-os morrer à minha frente, no rio Corubal, na região de Madina do Boé, seis meses depois de ter chegado. A minha mãe, assim que soube da notícia, associou-a ao meu aerograma e ficou aflita. Telefonei-lhe de Nova Lamego.

Tive ainda outras missões: trazia sempre comigo duas granadas, uma para o inimigo e outra para mim, no caso de ser capturado. Regressámos em maio de 1970, no Carvalho Araújo, mas faltaram 20 camaradas ao embarque.  

Nome Paulo Enes Lages Raposo  

Comissão Guiné (1968-1970)

Força Companhia de Caçadores 2405

+Info Depoimento originalmente publicado a 23 de novembro de 2008

Fonte: cm