sábado, 16 de agosto de 2014

“O OUTRO DESEMBARQUE”…

Dizia alguém que “o conhecimento das plantas começa pela noção que se tem sobre a sementes que se lançam à terra”. E quando a planta brota do solo fértil e não é cuidada, ela estiola e morre. Esta imagem pode ser transportada para os momentos da guerra e do pós-guerra, em qualquer sociedade humana.

Provence, no sudoeste da França, foi o local de desembarque dos combatentes indígenas das colónias francesas de África  no dia 15 de Agosto de 1944, para lutar contra a ocupação nazista.   Na sexta-feira passada, dia 15 de Agosto de 2014, O Presidente francês, François Hollande, expressou sentimento de gratidão do Estado francês aos “combatentes africanos, franceses e indígenas” que participara há 70 anos na operação militar da Segunda Grande Guerra.  Disse Hollande: “É ao sul que a Europa deve a sua saudação e isso não devemos jamais esquecer. Agora é a nossa vez, da França e da Europa, de dar ao sul o que ele foi capaz de nos dar no verão de 1944. Devemos levar apoio, segurança, solidariedade e desenvolvimento”. Evidentemente que os guerreiros que sacrificaram heroicamente em batalhas de libertação do jugo nazista merecem ser lembrados, homenageados, inclusivamente, idolatrados e revisitados. O que, na verdade, desonra a memória dos combatentes é a Europa pretender justificar, hoje, o seu regresso traiçoeiro  a África a partir das sepulturas do soldados africanos que tombaram na Segunda Grande Guerra.

O DESPERTAR DO NACIONALISMO AFRICANO
É preciso recordar que os fatores que tiveram impacto decisivo no despertar da consciência nacionalista dos povos africanos foram as duas Grandes Guerras. Os historiadores consideram que a primeira guerra mundial encerrou um primeiro conjunto de acontecimentos que estremeceu a estrutura do colonialismo mundial. O artigo 119 do Tratado de Versalhes de Junho de 1919, terá sido o instrumento legal que reconhecia o desmoronamento dos impérios alemão e otomano, cujas possessões passaram a ser divididas entre britânicos e franceses.
A Conferência de Paz de Versalhes terá também servido como a celebração de ideais de nacionalismos, autogoverno e de democracia representativa, de indivíduos iguais, independentes e capazes de se fazer representar. Paradoxalmente, nos territórios ultramarinos o exercício administrativo-jurídico, articulado a uma teia de crenças e valores, reforçava a existência de indivíduos e nações dependentes e incapazes de formular e conduzir projectos político-sociais próprios do mundo moderno.

Esta contradição terá servido de argumento da Sociedade das Nações quando redesenhou o mapa da África instituindo um regime de mandato (o qual cedeu lugar ao regime de protectorado só depois da Segunda Guerra Mundial), substituindo a Alemanha pela França e a Inglaterra, no Togo, nos Camarões e no Tanganika; pela África do Sul no Sudoeste Africano [Namíbia], onde a campanha teve longa duração, cujo fecho decisivo foi desempenhado por tropas africanas. Esse processo de substituição ocorreu também no Rwanda-Urundi em que a Bélgica substituiu a Alemanha.

A história documenta que, no final da I Guerra Mundial, os combatentes africanos regressaram aos seus países de origem, mas passado algum tempo não viram, da parte da administração colonial, um reconhecimento da sua participação nesse conflito.

Os investigadores consideram que foi assim que começam a surgir as manifestações contestatárias com greves, reivindicações de ordem económica e social que abrangiam desde as privações e exclusões próprias das práticas quotidianas até a não aplicação do decreto de autodeterminação dos povos como foi apresentada nos 14 pontos do presidente americano, Woodrow Wilson, reiterando a ideia básica aprovada já no Congresso da II Internacional Socialista realizado em Londres em 1896.

Outra contradição tinha a ver com o fato de, sob a força das circunstâncias, a Inglaterra e a França assinaram, em Novembro de 1918, uma declaração conjunta por meio da qual reconheciam a importância da emancipação dos "povos oprimidos pelos turcos". Destruiu-se o Império Otomano com o reconhecimento da independência a um grupo de países árabes da África setentrional (Egipto, Líbia, Tunísia), enquanto nos demais territórios governados pelas mesmas potências europeias a independência era recusada.

Por outro lado, os historiadores defendem que o fato da guerra ter colocado os povos africanos em contacto com o carácter instrumental da técnica, sobretudo militar que atuou violentamente sobre os povos europeus, o mais importante legado dessa experiência militar, serviu para pôr a nu o carácter desumano dos chamados “civilizados”. Ora, com tanta desumanidade, não havia razão para acreditar que o sistema colonial fosse necessário ou mesmo inevitável para que os “indígenas” evoluíssem segundo padrões ocidentais. Gradualmente, os africanos foram tomando consciência da necessidade de tomarem conta dos seus próprios destinos e traçar um rumo melhor das suas sociedades segundo os seus padrões culturais.

As ações levadas a cabo pelos africanos nesse período excluíam a conquista da independência. Reivindicavam um tratamento melhor dentro do sistema colonial. O nacionalismo nas colónias britânicas de África ao Sul do sahara, se despertara com a releitura da Bíblia, com a criação de igrejas sincréticas e o pan-africanismo. Enquanto que nas colónias francesas a Carta dos Direitos do Homem e a Negritude influenciavam profundamente os nacionalistas.

Logo após a II Guerra Mundial as potências europeias debilidades pelos efeitos desse conflito tentaram corrigir os erros do anterior conflito no que diz respeito às possessões coloniais. A França e a Grã-Bretanha adotaram algumas medidas legislativas nomeadamente a abolição do Estatuto dos Indígenas, concede direitos sindicais aos africanos e autorizam a criação de partidos políticos. A participação de africanos na guerra de 1939-1945,  permitiu-lhes compreender melhor ainda a natureza do colonialismo e das sociedades europeias. Ki-Zerbo, em História da África Negra estima que em 1940 só nos territórios sob dominação francesa foram recrutados 127.320 soldados da África Ocidental Francesa (AOF), 15.500 na África Equatorial Francesa (AEF) e 34.000 em Madagáscar. Desse contingente 24.271 africanos da África Ocidental e Equatorial perderam a vida e 4.350 malgaxes perderam a vida nos combates da Normandia, do Médio Oriente, em África, Itália, Indochina, Birmânia e Alemanha.

O esforço africano na guerra foi enorme. Pelas estatísticas avançadas vê-se, claramente, que não houve da parte das administrações coloniais o cuidado de reconhecer o esforço físico, financeiro e psicológico desse africanos. Pelo contrário, alguns episódios mostram que esses africanos foram espezinhados ao não receberem as suas compensações financeiras. Alguns soldados africanos que tentaram reivindicar foram barbaramente assassinados. O caso mais falado é o massacre de Thiaroye (Dakar) em que 1.290 soldados africanos que acabavam de regressar da França encontraram a morte ao reivindicarem as suas indemnizações. Leopold Sédar Senghor, na qualidade de deputado do parlamento francês pediu ao antigo presidente francês Vincent Auriol a libertação dos atiradores senegaleses que escaparam do campo de Thiaroye. Mas não fez mais do que isso. Só o Mali de Alpha Omar Konaré edificou um monumento em homenagem aos mártires de Thiaroye inaugurado em Dezembro de 2001. Os fatos que remeteu os antigos combatentes à mendicidade e à humilhação ainda fazem correr muita tinta nos tribunais nos países africanos outrora sob a dominação francesa de onde os soldados eram originários.

 Outro fator decisivo que terá  impulsionado às lutas pela independência, para além repetição da participação de 190 mil homens africanos na frente de batalha na Segunda Guerra, a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, cujo Estado se tornou modelo para os países africanos inscreveu a libertação dos povos colonizados como o pilar da sua política externa. Defenderá essa política junto da recém criada Sociedade das Nações, antecessora da Organização das Nações Unidas.

É preciso recordar que, na realidade, logo após a II Guerra Mundial, a França de Charle de Gualle decidiu a participação dos africanos na vida política, mesmo que essa participação fosse  feita nos partidos políticos da metrópole. É assim que em Novembro de 1945, Leopold Sédar Senghor e Lamine Guèye (Senegal), Félix Houphouet-Boigny (Costa do Marfim), Apithy Sourou Migan (Daomé), Fily Dabo Cissoko (Sudão Francês),  Yacine Diallo (Guiné-Conakry) e Alexandre Douala-Manga Bell e L.P. Anjoulet  (Camarões),  foram eleitos a Assembleia constituinte para ai representar a África Ocidental Francesa. O único país que ficou de fora foi a colónia da Argélia, porque os nacionalistas gostariam de ver aprovado um projecto de federação entre a França e uma futura República argelina, o que não foi aceite.

Os deputados africanos e a Constituição da IV República introduziram mudanças na legislação sobre as colónias. A legislação de maior impacto nas colónias foi o decreto de 20 de Fevereiro que suprime o Indigenato; a lei de 11 de Abril sobre a abolição do trabalho forçado; o decreto de 30 de Abril que aplica à África o Código Penal da metrópole e a lei de 30 de Abril sobre a criação do Fundo de Investimentos e de Desenvolvimento Económico e Social (FIDES).

Com a criação da ONU em 1945, consagrou-se o direito dos povos à autodeterminação e à independência. O mesmo princípio manifestado na Carta das Nações Unidas  foi reforçado em 1955, na conferência de Bandung, onde 29 países do Terceiro Mundo condenaram o colonialismo e manifestaram o apoio aos movimentos de libertação. É importante sublinhar que os nacionalistas africanos encontraram na Organização das Nações Unidas (ONU) um importante aliado e um bom campo de batalha para reivindicar a independência.

Enquanto as restantes potências coloniais em África, em função dessa nova realidade preparavam a transferência do poder político para os africanos, Portugal decide prosseguir a sua política de colonização. O Governo de Salazar e de Caetano entendeu por bem informar a ONU, na época, de que não possuía sob sua administração quaisquer territórios (...) conforme descritos no artigo 73º da Carta das Nações Unidas. Com esta posição, obstinadamente, repetida pelo regime salazariasta, estavam criadas as condições para o isolamento político de Portugal e, inevitavelmente, para a eclosão de conflitos armados contra a soberania portuguesa. Como seria de esperar, os movimentos nacionalistas das colónias portuguesas iriam ter o mais amplo apoio dos seus parceiros africanos, da URSS e de não poucos países ocidentais, com os EUA à cabeça.

Inspirado em textos do Prof.  Júlio Mendes Lopes