José Goulão – Jornal de Angola, opinião
Ao poder económico e político mundial não lhe bastam a supremacia conquistada e sedimentada com base no autoritarismo militar e na manipulação propagandística.
O regime planetário que a si próprio se identifica como “a democracia” e age como polícia dessa democracia demonstra que não sobrevive e não se basta através das suas supostas razões.
O regime imperial precisa de inimigos e quando não os tem cria-os ou inventa-os. Isto é, tal espécie de democracia não é auto sustentável, melhor dizendo, não se trata de democracia.
O regime global que agora assenta, sem restrições, na arbitrariedade selvática dos mercados financeiros e antes disso foi o amparo da restauração agressiva e tão generalizada quanto possível do capitalismo monopolista, nunca se desenvolveu sem inimigos.
Primeiro, a União Soviética e os seus “satélites”, que mesmo quando não eram passavam a sê-lo, por obra da propaganda. Depois, emergiram variantes, quase sempre pouco convincentes, até que a deriva acabou no regresso à origens, à velha “ameaça russa”, agora literalmente e não, como noutros tempos, um chavão de propaganda contra o regime soviético.
Quando o muro de Berlim ruiu e as democracias mercantis tomaram de assalto os “satélites europeus” da antiga URSS, forçando a transição abrupta do mercado centralizado para a anarquia de mercado, não foi necessário muito tempo para se perceber que o Império ficou órfão de inimigo. Queria cavalgar a onda, tirar proveito rapidamente e em força da unipolaridade recém instaurada, mas faltavam-lhe pretextos, às vezes necessários porque os satélites imperiais nem sempre são tão homogéneos como deveriam ser e estão sujeitos a birras e caprichos. O velho aliado Saddam Hussein transformou-se, assim, no monstro que abriu a era das guerras expansionistas com rótulo visível ou disfarçado da OTAN, instrumento de guerra fria transformado em operador global da guerra quente.
A seguir, os grupos terroristas surgidos como criaturas da CIA & irmãos transitaram para o estatuto repartido de amigos nuns sítios e inimigos noutros; foram indispensáveis em guerras como as da Jugoslávia, do Afeganistão, da sequela do Iraque, da Líbia, da Síria e o mais que adiante se verá. O estatuto híbrido, porém, não assegura a estes bandos as credenciais convincentes de inimigos puros, duros e absolutos.
O golpe imperial na Ucrânia serviu, como é visível, para restaurar o velho inimigo, mesmo sendo a Rússia na sua versão putinista ou neo czarista. Ainda há a questão pendente do Irão, mas perderá sempre para a velha “ameaça russa”, além do mais com tentações para se juntar à incómoda China, à estratégica Índia, aos “rebeldes” que tiveram o atrevimento de sair do velho “quintal das traseiras” na América Latina.
Com Putin e Moscovo no papel de inimigos “da democracia e da liberdade” – interpretadas na Ucrânia por grupos fascistas, mas isso para o caso não interessa nada – a OTAN praticamente fechou o cerco militar à Rússia. Washington e Bruxelas alarmam-nos com as hipóteses de a todo o momento “Putin poder invadir a Ucrânia” enquanto, na prática, as tenazes imperiais são capazes de o impedir, hoje muito mais do que ontem, ontem muito mais do que anteontem.
Um inimigo a sério, mesmo que seja criado através da estratégia da provocação sucessiva, é o maior aliado das tramoias dos mercados financeiros porque, nem que seja através da manipulação propagandística, é indispensável para criar no mundo as variantes que as proporcionam.