A sucessão de manifestações que, sob a capa de celebração de um aniversário, vem sendo protagonizada por um restrito segmento muito bem identificado na nossa sociedade, causa deveras perplexidades pelo que contém de teatral, surreal, retrógrado e paranóico.
Nós que atravessámos o penoso e desértico regime de partido único, conhecemos os contornos destes métodos que mais não são do que a idolatria em exaltação, ou se quisermos, o culto de personalidade, sempre com o inconfesso propósito de obnubilar a realidade, iludir os incautos e manipular consciências, e até buscar um pretexto para esmagar os que a essa teatralidade se opuserem.
São os mesmos processos e procedimentos de um mesmo regime arcaico que, desta feita, bem embrulhado e enfeitado, se nos tenta confrontar, agredindo os nossos sentidos e ofendendo a nossa inteligência, através de um ritual minuciosamente orquestrado, com luzes e ruídos de pretensão mágica.
Todavia, essas manifestações, que reputamos de folclóricas, configurando um espetáculo lamentável, ridículo e vergonhoso, não deixam de suscitar preocupações, pelos ingredientes regressivos e anacrónicos que encerram.
Na verdade, não compreendemos que em pleno século XXI, existam no nosso país pessoas que, movidas por um certo saudosismo mofo e inqualificável, tentam fazer regredir as conquistas democráticas da sociedade, fazendo ressuscitar fantasmas politicamente nocivos, a partir de figuras ultrapassadas e identificadas com o regime de repressão instaurado de 1975 a 1990.
Na presente conjuntura, tais figuras de inspiração estalinista, já deviam estar depositadas no museu de antiguidades, não fosse a benevolência, a generosidade, o espírito democrático e de tolerância que passou a reinar desde 1991, com a emergência de um novo regime arrancado com muito custo aos detentores e especialistas da repressão.
Nesta saga idólatra, os seus mentores tentam ofuscar as mentes, desvirtuando as ocorrências passadas, marginalizando, de forma subtil ou declarada, alguns dos actores que, apesar de não terem estado nas matas da Guiné, deram uma contribuição valorosa ao processo de emancipação de Cabo Verde, emprestando abnegadamente sacrifício e dedicação à luta política, para que o nosso país pudesse ascender à independência.
Aliás, diga-se de passagem, em condições difíceis e adversas, já que a luta clandestina se operava no território colonial, onde a manobra era limitada e todos os passos eram seguidos e controlados. Bem hajam esses resistentes que a história seguramente absolverá.
A tentativa de segregação política levada a cabo por determinados combatentes provenientes da luta armada vem de longe e tem a sua razão de ser. Só que a partir de um ângulo perverso, na lógica dos “melhores filhos da nossa terra”.
“Marxistas-leninistas, trotskistas e maoistas”
Afinal, Amílcar Cabral e o seu colégio directivo sabiam ou não quem eram os “resistentes da clandestinidade”, particularmente os “estudantes” e o que propugnavam? Se sim, porque os manteve nas fileiras do PAIGC, já que defendiam coisa diferente da deles? Nós conhecemos as razões dessa hipócrita coabitação, assim como conhecemos as razões que levaram muitos outros nas matas da Guiné a abandonarem o PAIGC.
Tudo isso tem a ver com a natureza intrínseca do PAIGC/PAICV, um partido linear, que não se presta ao verdadeiro contraditório e que não coabita senão por puro oportunismo. Faz concessões quando “forçado” para depois, no momento certo, desferir o golpe de morte. Fê-lo em diferentes momentos da história recente de Cabo Verde e isso será seguramente averbado. Mesmo entre os camaradas da luta armada há registos (por enquanto em surdina) que dão conta dessa psicose.
A história não é susceptível de ser apagada. Uma parte do povo pode ser ludibriada por um certo tempo, mas nunca todo o povo, por todo o tempo.
O novo mito e o culto da personalidade
E quem segue de perto, mas todavia, de forma desatenta, os depoimentos, fica com a impressão que o “novo mito”, construiu sozinho este Cabo Verde que tanto aprendemos a amar. Também por ele aprendemos a resistir, sobretudo em tempos difíceis de repressão movida sob o signo de um regime arrogante e monolítico, protagonizado pelo PAIGC/PAICV.
Para os mentores dessa ficção, dizemos apenas o seguinte: Não! Não foi ele que construiu Cabo Verde. Foi a população que, debaixo de chicote, perseguição, sacrifício e tortura psicológica e física, foi aceitando construir Cabo Verde, ciente de que o seu país está acima de tudo. E desse percurso ainda guardamos as mazelas da repressão que nos incutiu o medo e a fobia, entre outros tantos traumas.
É assim que os repressores da década de 70 e 80, particularmente o seu “comandante”, passam de bestas a bestiais. Leia o artigo completo - expresso das ilhas CV