Ironia da história, volvidos poucos anos, as mesmas potências que em nome desse nobre princípio facilitaram a desintegração jugoslava, defendem agora, firmemente, no caso da Ucrânia, a proeminência da integridade territorial do Estado.
Quando, nos anos 90, depois do colapso da URSS, as repúblicas que integravam a Jugoslávia começaram a querer separar-se de Belgrado, os países europeus e os EUA pouco ou nada fizeram para manter a integridade territorial daquele país.
A Alemanha – mesmo antes de consultar os seus parceiros europeus - apoiou as intenções separatistas da Croácia e da Eslovénia, primeiro, e das outras repúblicas depois.
Os sérvios, que defendiam a unidade do Estado, ficaram isolados e não conseguiram sequer manter ligado a si o território autónomo do Kosovo, onde no século XIV se travou uma batalha histórica contra os turcos do império otomano que passou a integrar a mitologia nacional sérvia.
Quando Slobodan Milosevic, último dirigente jugoslavo, lançou uma ofensiva militar contra os separatistas kosovares, foi acusado de pretender levar a cabo uma limpeza étnica da população albanesa maioritária.
As forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte/OTAN intervieram, submetendo a Sérvia a intenso bombardeamento durante mais de dois meses (incluindo contra a sede da televisão sérvia), acabando por submeter Belgrado.
Finalmente, em 2008, contra as objeções da Sérvia e da Rússia, Pristina acabaria por declarar unilateralmente a independência do Kosovo. Estava completada a desintegração da Jugoslávia, em nome do direito dos povos à autodeterminação.
Ironia da história, volvidos poucos anos, as mesmas potências que em nome desse nobre princípio facilitaram a desintegração jugoslava, defendem agora, firmemente, no caso da Ucrânia, a proeminência da integridade territorial do Estado.
O referendo realizado na Crimeia, em que a maioria votou pela reintegração na Rússia, não é reconhecido e os autonomistas de Donetsk e Lugansk, que recusam submeter-se às ordens de Kíev, são considerados separatistas e a sua luta ilegítima, como se fosse destituída de quaisquer razões e apoio local, apenas se sustentando com a ajuda de Moscovo.
A Rússia, por seu turno, também não é isenta de contradições e de duplicidade de critérios: em nome da unidade do Estado e dos seus interesses geo-estratégicos, esmagou sem piedade a independência da Chechênia, mas reivindica agora o direito à autonomia por parte da Nova Rússia.
Duas narrativas, o mesmo resultado – uma guerra em que basicamente EUA e Rússia se defrontam no território europeu pelos acertos finais da Guerra Fria: os americanos tentando potenciar ao máximo os proveitos da vitória, expandindo e reforçando a NATO em torno das fronteiras russas, dentro da lógica the winner takes all (o vencedor leva tudo); os russos ensaiando limitar o mais de podem os efeitos da derrota, esforçando-se por não deixar escapar inteiramente a Ucrânia.
De um lado e do outro, os princípios invocados variam ao sabor dos interesses e das conveniências.
A questão, agora, é saber como se vai sair desta situação – por um ajustamento mútuo, um compromisso, ou pela intensificação do embate, que pode chegar a um confronto direto entre a NATO e a Rússia, com o perigo real de uma guerra nuclear.
A pressão do Congresso americano junto de Obama para que os EUA apoiem a Ucrânia com mais poder de fogo e equipamento sofisticado fez soar os alarmes nas principais capitais europeias e levou Merkel e Hollande (aparentemente sem consulta prévia com Washington) a uma reunião de emergência com Pútin, em Moscovo.
Em política, como ensinou Salazar, o que parece é. O gesto da chanceler alemã e do presidente francês é significativo e marca uma viragem na posição europeia.
Uma coisa é apoiar tant bien que mal os EUA nas sanções contra a Rússia, deixando alastrar um conflito de relativa fraca intensidade e sem vencedores à vista, capaz de desgastar Moscovo, outra é aceitar que haja uma escalada de consequências imprevisíveis.
Não por acaso, Nikolas Sarkozy, enfatizava, também esta semana, que não é do interesse da União Europeia cavar um fosso nas suas relações com a Rússia nem que haja um regresso à Guerra Fria.
O ex-presidente francês foi mesmo mais longe, justificando a opção da Crimeia e sublinhando que "a Ucrânia não tem vocação nem para entrar na UE, nem na NATO", devendo antes permanecer como uma ponte entre a Europa e a Rússia.
Empurrada pelos falcões de Washington para um confronto aberto com Moscovo, a Europa tomou portanto as suas distâncias, abrindo uma nova janela de oportunidade para se chegar a um entendimento.
Entre o belicismo americano e o pacifismo europeu, o governo de Kíev parece hesitar, inclinando-se ora para um lado, ora para o outro, tentando conciliar as facções que o integram e retirar da situação a melhor vantagem.
Mas, à beira da bancarrota, com a moeda em queda livre, corroída pela corrupção e incapaz, até agora, de realizar as reformas de que dependem as ajudas externas, Kíev também tem motivos mais que suficientes para não se deixar inebriar em excesso pela sua própria retórica e enfrentar as realidades.
Quanto à Rússia, perturbada pelas sanções, a quebra o preço do petróleo e o relativo isolamento, tendo conseguido, apesar de tudo, manter o jogo empatado com vantagem, está certamente desejosa de consolidar o que já foi adquirido.
E o próprio Obama deverá preferir que a sua linha mais conciliatória vingue sobre os falcões bi-partidários do Congresso.
Os deuses parecem, portanto, conspirar para que na próxima quarta-feira em Minsk se chegue a um entendimento razoável.
Um entendimento cujos pontos principais todos conhecem, mas ao qual todos se furtaram até agora:
- cessar-fogo;
- afastamento da artilharia para uma distância que não permita bombardear as populações civis;
- controlo da fronteira com a Rússia;
- estatuto especial para as regiões rebeldes - com reconhecimento da língua russa e maior autonomia;
- manutenção da integridade territorial da Ucrânia.
Façamos votos para que a lucidez e a razoabilidade não precisem de uma nova tragédia para vencer e possamos finalmente encerrar o capítulo da Guerra Fria e não começar uma nova e muito menos caminhar para um confronto em que todos perderíamos
Sobre este tema, pode ver:
Declarações de Sarkozy:
Armar a Ucrânia – um perigo para o Ocidente
A View from NATO's Russian Front
http://www.wsj.com/articles/weekend-interview-gen-frederick-hodges-on-natos-russian-front-1423266333
* Carlos Fino, jornalista português, foi enviado especial e correspondente internacional da RTP - televisão pública portuguesa - em Moscou, Bruxelas e Washington, e correspondente de guerra em diversos conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão, Albânia, Oriente Médio e Iraque. Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012), cidade onde atualmente reside.