segunda-feira, 20 de março de 2017

Crônica: A COR PÚRPURA NO SUL

Herdaram de seus avós um pedaço de terra que, a priori, já lhes pertencia por questões de ordem genética. Pois, tinham seus antepassados, oriundos do sul, antes de serem deportados, devido aos interesses do tráfico negreiro, para o Atlântico, por onde passaram a viver.

Lá, misturaram-se à linhagem alba, e nessa miscigenação, constituíram uma nova entidade genética. Anos mais tarde, e ainda por questões de natureza genética, começaram por reclamar uma nova ordem de identidade. Nova mesmo?

E não é que a natureza dita as regras do jogo?

Passados anos, a fome começou por acometer-lhes. E sem saberem por onde andar tiveram que voltar às raízes renegadas para, de lá, saciarem-se tanto da sede quanto da fome que os fustigava décadas a fio.


O refrão de fome. Trouxe ele, em nome da sua superioridade étnica, o refrão de fome, para que fosse cantado por outrem. E é em nome de sua gula que os do sul passaram a se desentenderem. E a matarem-se. Sempre, em nome do lugar, da penosa luta diária para garantirem o sustento.

Toda a vez que sentem fome, instauram a confusão. Toda vez é assim. E assim, já por muitos anos, gozando da proteção de seus avós paternos, pisa nos seus irmãos, também eles netos de seus avós maternos.
  1. A mistura da linhagem
Era pobre, nascera pobre, e vivera pobre. Chegou como refugiado, mas agora é ele quem dita as regras na moransa. Sempre que a fome lhe ameaça semeia desordem nos irmãos que ontem o acolheram.

Era pobre, repito, nascera e crescera sob as agruras das pedras que espezinhavam seus pés, criando-lhe calos. Com os calcanhares duros de muito penar, pois nem convivera séria e honestamente com os gentios do Sul, mas convivera ele e os seus com os portugueses.

Quem sabe, e talvez, e quem sabe ainda por isso, seus interesses que partiram da amizade, amizade essa resultante da cor mulata de satisfação do apetite sexual.

Eis a sua origem: nasceu da satisfação de um apetite sexual, e para isso já se julga ser o dono das terras do sul.

Nascera pobre como a maioria da população autóctone nacional, mas beneficiara do crédito bancário para construir sua pequena colónia. E fê-lo a ferro e a fogo; pois as agruras e a discriminação impostas pelo sistema colonial faziam dos aborígenes vivenciarem a terrível experiência da humildade feita humilhação, da modéstia feita moléstia e da vontade de lutar à vontade de subjugar e de vencer a arma de afirmação de homens simples à complexidade de homem com dignidade.
  1. Esqueletos saídos do armário
Investido sei lá por quem, começou silenciosa e perigosamente, a imiscuir-se nos assuntos do solo do Sul. Com pinças de camaleão, investe-se de “poderes espirituais especiais”. Pois também ele é neto das balobas e dos irãs deste chão.

E, assim, impõe lentamente a sua autoridade e, com o tempo, verga, aos seus pés, a máquina mortífera – a da anarquia para reinar soberano.

Mas, no entretanto, mesmo sabendo desembaraçar-se, de mansinho, de uma herança que lhe parecera adversa à estratégia que vinha implementado, começa, já de si, a perceber, que não continuará a ser fácil implementar a sua estúpida astúcia, nem a sua espúria ambição desmedida.
  1. O epicentro da pequena purga política e ideológica
A chuva começa já a estar sob o telhado de zinco, e o guarda-chuva que protegia-o do regime do semi-holocausto, sofreu sismo na sua estrutura com o Conselho da Revolução; embora mais tarde com uma governação desgastada, sucumbida às delícias da trilogia nacional: sexo, poder e dinheiro, provou também ele o veneno da corrupção, mas temendo o pior, autoexilou-se no nacionalismo de avestruz.

Começará a reerguer-se das cinzas?

O prestígio interno começou a ruir-se, a perder base, e como corolário de tudo isso, tornou-se inquilino de uma casa em polvoroso processo de descrença, de perda de prestígio também externo.

O tempo vai passando, e vai consumindo os anos, e estes, os meses, e estes, as semanas, e estas, os dias, e estes, as horas, e estes, os minutos, e estes, os segundos, e estes, os centésimos.

Ora, quanto mais um dia se passa, menos um dia se tem, quando todo o mundo precisa de um vintém.
  1. As boas e/ou más intenções de interesses estabelecidos
São papéis adquiridos. São intenções delineadas, e planeadas, os quais resultaram nas escolhas individuais que fazemos, que ainda rompem com a nossa firme determinação em exarar o decreto da esperança que, há muito, no nosso ser, e na nossa maneira de viver a vida, que de vida, só tem nome, e nada mais, para provar que, todos nós, sem exceção, servimos para interesses nenhuns.

Se dissolvéssemos a casa da fé, talvez a ideia estabelecida entre os dois sexos, a saber, o masculino que veio do arquipélago, e o feminino que está nesta parte continental, com o redesenho da guineidade, fundado na liberdade de pertença de dois solos pátrios, pela miscigenação étnica, não abusava ele da mulher que pariu seus filhos na casa que o aconchegou.

Assim, a possibilidade da reinvenção étnica, teria fundamento na reinvenção ética, fruto da criação erótica que permitiu com que redefiníssemos a ontologia do macho estrangeiro imigrante e/ou da fêmea nativa. Cativa?

E se assim é, é porque, tendo havido ao longo destes anos todos os maus tratos, a exploração dos recursos do chão da fêmea para o chão do macho, é porque do amor não se pode falar. Pois, nenhum dos dois imaginara se seus testículos e ovários estavam em sincronia.

Eis o reflexo do nosso mundo que oscila entre a paz e os sucessivos sobressaltos para confluir-se no viés de liberdade como marco da subjetividade sexual e do pertencimento desta pátria.

Sabe-se que quando se esquece das raízes, seja por estupidez, ou até mesmo por pretensões de superioridade rácica, cai-se no abismo da desolação.

Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.


Por: Jorge Otinta, ensaísta e crítico literário guineense
Bissau – NTIN – outubro de 2016 e março de 2017.