sexta-feira, 12 de maio de 2017

MANUEL RODRIGUES DA ‘ESCOLA BENGALA BRANCA’ GANHA PRÉMIO NOBEL DA CRIANÇA EM ESTOCOLMO

[REPORTAGEM] O guineense Manuel Lopes Rodrigues, que é portador de uma deficiência visual desde os três anos de idade, ganhou o ‘Prémio Nobel da Educação de Criança’ em Estocolmo, capital da Suécia, pelos seus 20 anos de luta por crianças cegas bem como crianças com outras deficiências na Guiné-Bissau. Manuel ‘di bengala branca’, nome pelo qual também é conhecido pelos seus próximos, ficou cego muito cedo, ainda criança, devido à falta de cuidados apropriados.

As dificuldades e a discriminação sofrida ao longo da sua vida fez-lhe encarrar o desafio de lutar pelos direitos das crianças portadoras da deficiência visual e outras deficiências, com o propósito de lhes proporcionar uma vida condigna num país em que os deficientes e em particular os invisuais são relegados para o último plano ou simplesmente ignorados pelo Estado.

Essa é a razão principal da criação da Associação Guineense de Reabilitação e Integração dos Cegos (AGRICE), uma organização que tem a finalidade de promover a educação para os cegos, como também o enquadramento dos mesmos na sociedade guineense.

MANUEL TORNOU-SE NO PRIMEIRO GUINEESE E PRIMEIRO DA CEDEAO A GANHAR O PRÉMIO NOBEL DA CRINAÇA

Manuel Lopes Rodrigues é o primeiro cidadão guineense e o primeiro da África Ocidental que conseguiu ganhar o Prémio Nobel da Educação da Criança. Foram necessários 20 anos da luta. A luta do activista mereceu uma apreciação de outras entidades a nível interno, por exemplo, da Associação de Amigos das Crianças da Guiné-Bissau (AMIC) e a nível externo, por várias organizações que lutam pelos direitos das crianças.

AMIC é a entidade que promoveu a candidatura do activista para o concurso ‘Herói dos Direitos da Criança’, que decorreu de abril de 2016 a abril de 2017. Para o prémio concorreram mais de 300 activistas de diferentes partes do mundo, acabando por ser seleccionados três nomes para a fase final e na qual foi eleito um vencedor por júris formados apenas por crianças. Os três finalistas foram:

Manuel Lopes Rodrigues da Guiné-Bissau, que juntamente com a organização ‘AGRICE’ travaram uma luta de 20 anos para os direitos das crianças cegas e crianças com outras deficiências; Rosi Gollmann da Alemanha, que luta pelos direitos das crianças mais pobres e vulneráveis da Índia e Bangladesh e por último, Molly Melching dos Estados Unidos de América, que travou uma luta há 40 anos através da sua organização ‘TOSTAN’ para erradicação da prática de mutilação genital feminina, casamento infantil e o casamento forçado em África.

O guineense Manuel Lopes Rodrigues foi eleito com 73.477 votos a favor, seguida da Molly Melching com 9.217 e Rosi Gollmann com apenas 7.570 votos. Crianças elegeram assim, Manuel Lopes Rodrigues, como o vencedor do ‘Prémio Nobel da Criança’, pela sua luta em defesa das crianças cegas e crianças portadoras de outras deficiências. Recebeu o prémio no dia 26 de abril último, em Estocolmo, capital do reino da Suécia, das mãos da Rainha daquele país que se encontra no norte da Europa, Sílvia Renata Sommerlath.

“Este prémio demostra o valor que a Guiné-Bissau tem no mundo e que infelizmente alguns não reconhecem, porque perderam a dignidade. Quando recebi o prémio fiquei muito emocionado, porque na verdade não esperei que o trabalho que fazemos aqui na Guiné-Bissau chagasse àquele nível, ou seja, que ultrapassasse as nossas fronteiras. Estou contente de estar entre os finalistas e, sobretudo por ter ganho o Prémio Nobel da Educação das Crianças”, contou o activista com uma voz trémula de emoção, numa entrevista conjunta ao semanário ‘O Democrata’ e à Rádio Jovem.

Assegurou ainda que o seu trabalho permitiu-lhe entrar no Castelo do reino da Suécia construído no século XV. Reconheceu ainda que milhares das crianças no mundo conhecem os seus direitos, porque se fosse diferente, não votariam nele.

Manuel Lopes Rodrigues disse que a entrevista que concedeu a conceituada ‘Revista Globo’ permitiu que milhares de crianças compreendessem as dificuldades das crianças guineenses e em particular os portadores das deficiências visuais e outras deficiências. Adiantou que a sua luta para os direitos dessas crianças mereceu o reconhecimento de milhares das crianças no mundo que se demostraram solidários com a sua luta de proporcionar boa vida e direito ao ensino para as referidas crianças.

AGRICE ‘FIRKIDJA’ DE CRIANÇAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIAS VISUAIS ABANDONADAS

O activista dedicou a vida toda na luta pelos direitos das crianças deficientes, que na sua maioria não são registadas pelos pais. Antes da criação da AGRICE, não havia escolas para as crianças cegas nem para surdos e mudos. Foi graças ao activista Manuel Lopes Rodrigues que foram dados os primeiros passos no ensino especial para os portadores das deficiências visuais, bem como para os surdos e mudos na Guiné-Bissau.

Lembrou durante a entrevista que a situação das crianças deficientes na Guiné-Bissau é precária, dado que não lhes foram concedidas nenhumas oportunidades para se formarem. Recordou ainda que a educação inclusiva que sempre defende continua a ser negada pelas autoridades, porque os próprios professores não têm vontade de juntar crianças deficientes e com crianças ditas normais, numa sala de aulas.

“Este prémio dar-me-á mais força e energia na luta pela implementação da educação inclusiva, de forma a acabar com a discriminação no seio das crianças portadoras de deficiências bem como permitir-lhes o acesso ao ensino. Eu sou o pioneiro neste trabalho de promoção da educação inclusiva na Guiné-Bissau”, notou.

Interrogado sobre o que é possível fazer para que o Estado guineense aceite a educação inclusiva no país, respondeu que o Estado deve abrir as portas para a educação inclusiva, porque o mundo hoje não permite que haja apenas uma escola para cegos, surdos e mudos.

“Já vimos essa experiência no Brasil e na Suécia. A educação inclusiva não tem diferença de raças, cor de pele, religião ou diferenças de outra natureza! O Estado, como responsável máximo de uma Nação, deve criar mecanismo para que a população participe no sistema do ensino existente, sem diferenças nenhumas, sobretudo por causa da deficiência. O estado deve lutar ainda pela introdução da educação inclusiva nas escolas de formação superior, a fim de formar os estudantes em ‘braile’ e na língua gestual e acolher os deficientes que são considerados de ‘deficientes intelectuais”, notou o activista.

Manuel Lopes Rodrigues considerou de positivos os 20 anos de luta que travou pelos direitos das crianças cegas e crianças portadoras de outras deficiências juntamente com a sua organização AGRICE. Frisou que graças aos seus esforços hoje se vê uma portadora de deficiência visual a estudar na universidade.

“Vê-se um invisual hoje a trabalhar no computador, a vender saldo. Isso era impossível no passado. Os deficientes visuais eram isolados. Para sobreviverem, apenas podiam pedir esmolas nas ruas. Os mudos não conseguiam pelo menos atingir 50 anos de idade, porque eram usados apenas para os trabalhos pesados e nunca foi-lhes dada a oportunidade para se formarem e poder ter um emprego que lhe dá uma vida razoável. Graças ao surgimento da organização ‘AGRICE’. AGRICE fez os deficientes sentir que têm direitos e que são valorizados”, assegurou.

ESCOLA ‘BENGALA BRANCA’ FORMA ALUNOS QUE CURSAM NAS UNIVERSIDADES DO PAÍS

Nobel da Criança explicou que a escola ‘Bengala Branca’ que funciona na zona de aeroporto internacional ‘Osvaldo Vieira, conta com 390 alunos. Acrescenta ainda que a escola tem oito salas de aulas e 26 professores formados na Escola Superior do Ensino, que igualmente são submetidos à formação em ‘braile’. Lembrou neste particular que em 2007 a sua organização assinou um acordo com o governo através do ministério da Educação Nacional e o governo se comprometeu em enviar professores para leccionar alunos deficientes.

Actualmente a ‘AGRICE’ paga a formação dos seus estudantes nas universidades do país. Conta com três estudantes na Universidade Lusófona da Guiné, dois na Universidade Jean Peaget e dois alunos mudos no CIFAP, que estão fazer o curso de construção civil. Avançou ainda que a sua organização conta igualmente com um número significado os alunos no Liceu Samora Moiseis Machel, entre os quais, dez (10) estão a estudar 12° ano, sete (07) do 11° ano e seis (06) 10° ano.

Apesar de esforços na integração dos deficientes na sociedade guineense, reconhece as dificuldades enfrentadas, em particular no concernente a falta de intérpretes para surdos. Contudo, prometeu para breve um intérprete para surdos na televisão nacional. Frisou que os cegos conseguem acompanhar a televisão através de audição e os mudos também conseguem.

Informou que a ‘AGRICE’ conseguiu implementar as suas células nas regiões de Bafatá e Gabú. Adiantou ainda que no centro de Bafatá têm todo o tipo de deficientes que estão sob os cuidados da sua organização, tendo avançado que nas regiões de Quínara e Cacheu têm representantes que trabalham na identificação de deficientes cegos abandonados pelas famílias. E afiançou que no futuro a sua organização pretende alargar a iniciativa para todo o território nacional, de forma a ajudar os deficientes que na sua maioria são abandonados.

Explicou que os estudantes da Universidade Jean Peaget beneficiam de isenção para o pagamento do curso, devido a um acordo a que chegaram com a direcção da universidade. Enquanto os estudantes da lusófona pagam apenas 25 por cento do valor total.

Questionado sobre a origem dos fundos para pagar as despesas da sua organização, respondeu que a ‘AGRICE’ recebe apoio financeiro da Cooperação Portuguesa, que segundo ele, não consegue cobrir todas as despesas. Informou, no entanto, que a organização possuiu máquinas de descasque de arroz nas aldeias através das quais conseguem angariar alguns fundos, como também praticam algumas actividades geradoras de rendimentos que lhes permite angariar mais fundos para ajudar no sustento das suas actividades. Sublinhou que a sua organização não recebe nenhuma ajuda do Estado da Guiné-Bissau, nem sequer uma subvenção que as organizações congéneres recebem nos seus respectivos países.

Lamenta neste particular o comportamento das autoridades guineenses que não se dignaram até ao momento da reportagem em telefonar-lhe para o encorajar pelo prémio conseguido no âmbito do seu trabalho. Sublinhou que nem o Chefe de Estado, nem o primeiro-ministro, ou seja, nenhum membro do governo telefonou-lhe.

“Fui recebido como herói na Suécia, onde recebi o prémio das mãos da Rainha daquele país. Foi o hino da Guiné-Bissau que tocou e a bandeira nacional foi içada. Prémio Nobel da Educação de Criança foi ganho por mim, mas fui lá como um representante da Guiné-Bissau”, observou o activista da defesa das crianças deficientes visuais e crianças portadoras de outras deficiências, que diz sente-se ignorado pelo Estado da Guiné-Bissau.

BIOGRAFIA

Manuel Lopes Rodrigues nasceu no dia 30 de Janeiro de 1962, em Bolama. Ficou cego logo a sua nascença, mas só aos três anos de idade é que acabou por ser declarado como portador da deficiência visual em Lisboa, onde se encontrava para tratamento.

A mãe do Manuel estava grávida de nove meses e fora à bolanha, numa aldeia na região de Bolama, para cortar o arroz que ia preparar para o almoço. De regresso para casa, parou numa pequena aldeia de balantas, onde foi pegar uma pequena piroga para atravessar o rio e voltar para a cidade de Bolama. Foi pelo caminho que começou a sentir dores de barriga, mas não teve a coragem de entrar numa das casas (morança) porque não estava ali ninguém. Isso porque os balantas têm hábitos de fechar a casa com ‘irã – ser super natural’, por isso foi para cural de bovinos.

Foi ali que deu a luz a criança (Manuel Lopes Rodrigues), sozinha. Ficou ali desde as 11 de manhã até às 17 horas, sem receber apoio dos terceiros. A criança recém-nascida ficou com o sangue nos olhos, o que acabou por lhe criar problemas de vista.

Passou a infância nas matas a correr do ataque das forças portuguesas com ajuda dos familiares adultos e até que foi levado para Conacri, onde foi colocado no centro de acolhimento de crianças. Foi ali que conheceu o líder da guerra, Amílcar Lopes Cabral, que prometeu levá-lo à Europa para outra tentativa de tratamento.

A morte de Cabral, infelizmente ‘matou’ também o sonho de ‘menino’ Manuel Lopes Rodrigues de ver o mundo ou de viver na Europa. Após a luta trabalhou nos correios de Bissau. Depois de ter sido despedido do emprego, exerceu um pouco actividade comercial que acabou por deixar e dedicar-se à luta pela defesa dos direitos das crianças cegas e crianças portadoras de outras deficiências.


Por: Assana Sambú
Foto: Marcelo Ncanha Na Ritche