Descuido ou crueldade?
Alguém precisa de ser responsabilizado ou
então assumir a própria desumanidade perante o abandono daqueles com quem um
dia partilhou um lar e teve relações de afecto. É preciso, caso contrário, a
pouca vergonha e a maldade ficam impunes.
A questão dos idosos e pessoas com
problemas de saúde que vivem abandonados na ilha de São Vicente, está a
preocupar as autoridades. É que essas pessoas vivem sozinhas, à mercê da sua
sorte e quando morrem, os vizinhos só se apercebem quando o corpo já se
encontra em avançado estado de decomposição e o mau cheiro invade o bairro.
Crueldade? Distracção? Abandono? Certamente. Isto numa comunidade pequena que é
tida como solidária. E os culpados do abandono são sem dúvidas as famílias: “a
maior parte das mortes resulta de doenças prolongadas ou devido à idade
avançada dessas pessoas. Mas o certo é que depois de abandonadas, vivem
retraídas no seu meio. Isto é, saem poucas vezes à rua pelo que os vizinhos nem
dão pela sua falta. E quando morrem, só são descobertas quando o mau cheiro do
corpo se espalha pelo bairro” – esclarece a Delegacia de Saúde. Esta
contestação dos técnicos está de acordo com o que se constata na no dia a dia:
existem cada vez mais velhos e doentes abandonados à própria sorte. A realidade
é dura e triste mas essas pessoas passaram a viver sozinhas sem o apoio da
família. Isto numa comunidade pequena, onde praticamente todos se conhecem. O
mais grave é que estes casos estão a aumentar.
Nos últimos meses, as autoridades
criminais e sanitárias registaram várias mortes de idosos que viviam sozinhos e
abandonados. E agora, no espaço de três dias, foram encontrados dois homens com
cerca de 50 anos sem vida nas próprias casas, cujos corpos se encontravam em
estado de decomposição. E com as averiguações descobriu-se que estavam doentes.
Preocupação
Nestas circunstâncias, quer a PJ, quer a
PN e a Delegacia de Saúde mostram-se preocupadas com a situação que tem sido
recorrente na ilha de São Vicente. Por isso, asseguram que é urgente que as
famílias assumam as suas responsabilidades perante os familiares com idade avançada.
Muitos são asilados em residências e, posteriormente, passam a viver sozinhos e
abandonados. E, por saírem raramente à rua, acabam por cair no esquecimento das
pessoas que vivem à sua volta.
O NN conversou com um inspector da PJ e
uma médica que partilham da mesma opinião acerca deste problema que assola a
ilha de São Vicente. Segundo os nossos entrevistados “a família é a principal
culpada quando ocorrem casos desta natureza, uma vez que abandonam os seus
parentes nalguma residência e não lhes prestam qualquer auxílio. A maioria
padece de alguma doença e precisa de apoio regular”.
Por outro lado, defendem que “quando se
encontra o corpo em avançado estado de decomposição, providenciamos esforços
para fazer a autópsia, para saber a causa da morte. Mas há casos em que a
putrefacção do cadáver impossibilita a realização do exame, ao mesmo tempo que
traz riscos para a saúde dos moradores. Por isso, ordena-se a sua condução
imediata ao cemitério. E há famílias que criticam o nosso procedimento quando,
na verdade, elas poderiam ter evitado essa fatalidade”.
O certo é que o número crescente de
pessoas doentes e idosas abandonadas e que acabam por morrer não permite
continuar a fechar os olhos diante dessa barbaridade. Alguém precisa de ser
responsabilizado ou então assumir a própria desumanidade perante aqueles com
quem um dia partilhou um lar e teve relações de afecto. É preciso, caso
contrário, a pouca vergonha e a maldade ficam impunes.