Era um símbolo do Bairro Alto
cultural e boémio dos anos 1980. Gostava de jazz, moda e da vida nocturna,
tendo estado por detrás da abertura de espaços marcantes como As Noites Longas.
Morreu na sexta-feira Zé da
Guiné, personalidade marcante da vida nocturna e cultural da Lisboa dos anos
1980. Sofria há mais de dez anos de uma doença degenerativa do foro
neurológico, impeditiva de qualquer actividade. Morreu durante a noite, no
hospital de São José, em Lisboa.
Nos últimos anos passava por
dificuldades materiais, tendo-se avolumado as iniciativas públicas, promovidas
por amigos artistas, cineastas, jornalistas ou músicos em seu auxílio e foi
produzido o documentário Zé da Guiné – Crónica de um africano em Lisboa,
da autoria de José Manuel S. Lopes, que reflectia a sua vida, desde a chegada a
Lisboa nos anos 1970, passando pela sua relevância na fervilhante actividade
cultural e na vida boémia dos anos 1980.
O realizador lembra o amigo como
alguém que "teve a particularidade de ter modificado os hábitos de Lisboa,
tanto na forma de estar como de usufruir da cidade". "Foi um
precursor e arrastou outras pessoas nesse movimento", diz ao PÚBLICO.
"Não consigo encontrar outra pessoa como ele: inovador, de espírito
aberto, aventureiro e, ao mesmo tempo, cuidadoso, amigo e óptimo em relações
públicas." Durante 14 anos, continua, lutou contra a doença,
esclerose lateral amiotrófica, a mesma que vitimou Zeca Afonso, "o
que revela a sua grande capacidade de luta e resistência."
Como
escreveu na altura da homenagem Miguel Esteves Cardoso numa crónica no
PÚBLICO: "Zé da Guiné é um grande artista. Não foi só uma inspiração,
um exemplo e um catalisador, embora também fosse essas coisas. Criou ambientes
e criou mentalidades. Abriu caminhos e diversões. A noite de Lisboa era
fechada, triste, mesquinha e clandestina antes do Zé e do Manuel Reis
[Frágil/Lux], cada um à maneira dele. Contra todas as más vontades,
burocracias, pessimismos e letargias, estes dois artistas públicos conseguiram
abri-la, alegrá-la, engrandecê-la e mergulhá-la no presente."
No final dos anos 1970 foi ele um
dos primeiros a aventurar-se no território de prostitutas e de má fama que era
então o Bairro Alto, abrindo o espaço Souk. Mais tarde viria a embarcar no
projecto Rock House (mais tarde, Juke Box), assumindo várias funções, entre
elas a de porteiro, participando na emergência do Bairro Alto como o lugar por
excelência de afirmação da Lisboa cultural dos anos 1980.
Era conhecido de todos, artistas,
músicos, cineastas ou jornalistas. De alguma forma era um símbolo de uma cidade
que, depois do 25 de Abril, se queria abrir à modernidade e ao exterior. Não é
por acaso que muitas das publicações de referência internacionais da época –
como a revista inglesa The Face – quando abordavam as
dinâmicas culturais em ligação com as actividades nocturnas da época, o
procuravam.
Uma das suas paixões era a moda,
tendo sido uma personalidade inspiradora, assistindo à emergência da geração
que consolidou a moda em Portugal através de iniciativas como as Manobras de
Maio.
Mas o projecto onde se envolveu e
que talvez mais marcas deixou foi as Noites Longas, ao largo do Conde Barão, em
Santos, num palacete do século XVI, que mais tarde viria a albergar o B. Leza e
que hoje se encontra desactivado. Ideia partilhada com Hernâni Miguel, viria a
transformar-se numa das experiências mais cosmopolitas da época.
A meio dos anos 1980 era ali que
a Lisboa artística se misturava, até de manhã, com a Lisboa castiça do Cais do
Sodré e do mercado da Ribeira e com a Lisboa do roteiro das discotecas
africanas. Depois dessa aventura surgiram outras, como a abertura, já nos anos
1990, do Be Bop, no Bairro Alto onde se ouvia jazz, a sua grande paixão.
Com Sílvia Pereira