Aplausos para o Presidente José Eduardo dos Santos04 Novembro 2013
Há cerca de uma semana, na cidade da Praia, num dos canais estrangeiros de televisão, vi e ouvi o Presidente José Eduardo dos Santos, na Assembleia Nacional, a apresentar aos legítimos representantes do povo angolano o relatório anual sobre o estado da Nação.
Por: JORGE QUERIDO
Eleito o ano passado com os votos de uma maioria muito expressiva da população angolana, numas eleições consideradas como tendo sido livres justas e transparentes por todos os muitos observadores internacionais que seguiram de perto o desenrolar do processo, o Presidente de Angola, com a ponderação e a serenidade que lhe são conhecidas, reconhece, a dado passo do seu discurso, que as relações bilaterais de cooperação e de parceria que Angola mantém – com quase todos os países que hoje compõem a comunidade internacional – estão bem, com uma única excepção: Portugal. E declara também que, face ao que tem vindo a acontecer em Portugal, já não existem condições para que se continue a tentar manter viva uma parceria estratégica que, pelo menos do lado angolano, sempre foi desejada, apreciada e acarinhada.
Mas afinal, o que aconteceu, ou melhor, o que de tão grave vem acontecendo em Portugal que levou o Presidente de Angola, com os aplausos de todos os representantes do povo angolano, a tomar semelhante decisão?
As razões apresentadas pelo Presidente José Eduardo dos Santos no seu discurso foram bem claras e creio que não deixaram quaisquer dúvidas, quaisquer pontos por esclarecer. Na verdade, nenhuma parceria, seja ela estratégica ou não, poderá ser construída em bases sérias, seguras e duradouras quando uma das partes é incapaz de, por uma razão ou por outra, conscientemente ou não, manter com a outra parte um relacionamento de igual para igual.
E é precisamente aqui, neste ponto, na falta de vontade ou na incapacidade de uma das partes poder reconhecer na outra um verdadeiro parceiro, com os mesmos direitos e os mesmos deveres, que reside todo o imbróglio e é nessa “ferida” que, agradando ou não, se terá de colocar o dedo.
Hoje ninguém ignora que o fenómeno colonial provocou nos colonizados, ao longo de mais de quatro séculos, danos incalculáveis. Os traumas ainda são visíveis e, apesar de todas as antigas colónias terem já conquistado a sua independência formal, em muitos dos países africanos nascidos nas últimas seis décadas ainda vigoram relações tipicamente neocoloniais: muitas das grandes decisões políticas continuam, sob várias formas, a ser tomadas ou fortemente influenciadas pela antiga metrópole, as riquezas desses países continuam quase que inteiramente controladas pelas antigas potências colonizadoras e, consequentemente, as sequelas deixadas pela colonização, em vez de desaparecer, adquirem novas formas ou até se agravam.
Se é verdade que os colonizados sofreram traumas enormes de que ainda restam sérias sequelas, também a estrutura mental dos colonizadores foi sofrendo, ao longo de séculos, graves deformações, que ainda perduram, e que, com o passar dos anos, com o suceder das gerações, foram ganhando, naturalmente, novas formas, novas roupagens, novas nuances, sem que se possa, no entanto, dizer que tenham desaparecido. Em alguns casos até, o tempo se encarregou de introduzir novos pequenos ingredientes, como sejam ressentimentos absurdos e injustificados, sentimentos de inveja, ciúmes e frustração, tudo fortemente potenciado quando, por razões que não vale a pena para aqui trazer, se verifica o sucesso crescente da parte que era suposto falhar e o avolumar de dificuldades financeiras, económicas e sociais da outra parte.
Hoje, porém, por mera conveniência de muitos, por ignorância de alguns ou ainda porque realmente a política assimilacionista levada a cabo pelo colonialismo português acabou por produzir os efeitos esperados, há gente a pretender transformar os séculos de violenta e desumana dominação em “tempos de harmoniosa convivência”, em que teria acontecido um extraordinário fenómeno de aculturação, com o colonizador a ser apresentado, já não como aquele que invadiu, desrespeitou, humilhou e destruiu, mas sim como um verdadeiro promotor/criador de “novos mundos”, de “novas gentes”, de “novas culturas”.
Presentemente, não é raro encontrar no ocidente, particularmente nas antigas potências coloniais, casos de dirigentes políticos, operadores económicos ou simples cidadãos a assumir, com toda a naturalidade, atitudes de feição marcadamente colonialista, por vezes até racista, o que leva a pensar que ou se está perante uma estratégia deliberadamente montada, contando com as facilidades que pensam sempre encontrar entre as massas dos agora ex-colonizados, ou então perante casos em que os seus autores, vítimas também de um processo alienante, que como que obnubilou a sua consciência, adquirem um estatuto muito próximo do do inimputável.
O que está, neste momento, a acontecer entre Angola e Portugal não deveria constituir surpresa para quem conheça minimamente esses dois países. De um lado temos Portugal, um país pequeno que, por circunstâncias várias, se viu dono de um vasto “império” que se viria a desmembrar dando origem, em África, a cinco países, todos atrasadíssimos e exibindo, à data das independências, taxas de analfabetismo que em alguns deles ultrapassavam os noventa e nove por cento; um país que, depois de viver, ainda recentemente, um relativamente curto “período das vacas gordas”, se vê numa situação aflitiva, transformado pelos seus principais credores numa espécie de protectorado. Do outro lado temos Angola, um país que partiu de muito baixo, da situação de recém-libertado do jugo colonial, aguentou décadas de uma guerra sangrenta que lhe foi imposta, soube construir a paz e, vencendo enormes dificuldades, consegue exibir um crescimento económico digno de registo.
Em 1995, mais precisamente, no dia 2 de Novembro desse mesmo ano, na cidade do Porto, um ex-primeiro ministro português, em campanha como candidato à presidência da república, falando perante uma numerosa plateia constituída principalmente por empresários, declarou que “Portugal deve impedir que os países africanos falantes do português falem directamente com a Europa e que isso deve ser encarado como um desígnio fundamental do Estado português”; e acrescentou: “Portugal deve ser visto pelos PALOP como um parceiro estratégico” (ver o semanário A Semana de 6 de Novembro de 1995). Era a primeira vez, depois do 25 de Abril, que alguém - alguém que pouco depois viria a ser Presidente da República portuguesa - tinha a coragem de apresentar como “desígnio nacional fundamental” de Portugal privar de política externa os países independentes de África que têm o português como língua oficial.
O curioso, porém, é que Aníbal Cavaco Silva - candidato em 1995, hoje Presidente da República - quando, há cerca de uma semana, falava a um grupo de jornalistas sobre a decisão do Governo angolano de considerar terminada a parceria estratégica entre Portugal e Angola, respondeu, com um largo sorriso e um ar muito confiante, que já tinha falado com o Presidente angolano e que “tudo não passara de um grande mal-entendido”.
Posso até estar enganado, mas custa-me acreditar que Angola considere como sendo um simples “mal-entendido” o facto de, repetidamente, as mais altas instâncias do poder judicial de Portugal, deliberadamente, violando princípios básicos e fundamentais sobre os quais deve assentar qualquer Estado de Direito - que são, entre outros, a presunção da inocência e o segredo da justiça - passem para a comunicação social, selectivamente, elementos que claramente visam achincalhar e cobrir de lama os mais altos representantes do Estado angolano.
Não me parece que o Governo angolano, os empresários angolanos e o cidadão comum angolano aceitem considerar como sendo um mero “mal-entendido” o facto de, em Portugal, ao mesmo tempo que se precisa, se aceita e se diz oficialmente que os investimentos angolanos são bem-vindos e são necessários, se insiste, com claras conivências ao mais alto nível, em adoptar, sistematicamente, em relação a todo o capital proveniente de Angola e aos seus detentores uma atitude que só não é sempre claramente hostil porque o instinto de sobrevivência acaba quase sempre por falar mais alto.
E o curioso é que, apesar da situação que se vive em Portugal, tais pruridos, que até são passíveis de várias outras interpretações e explicações, só se têm manifestado quando aquele que investe é alguém que, à luz da lógica neocolonial que ainda povoa a mente de muita gente, devia estar, sorridente, grato e de mãos estendidas, a receber “ajuda ao desenvolvimento”, nunca a investir, principalmente no território do seu antigo colonizador, porque o seu “estatuto” não lhe devia permitir ainda semelhante ousadia.
Espero, sinceramente, que esta situação se resolva da melhor maneira. Mas, para isso, é absolutamente necessário que o bom senso se instale e prevaleça lá onde, lamentavelmente, ele vem escasseando.