domingo, 6 de novembro de 2016

JUÍZA BRASILEIRA COM CURRÍCULO INTERNACIONAL REVELA TRAJETÓRIA DE RACISMO NA PROFISSÃO

 
"Um advogado pediu que seu cliente fosse julgado por um juiz branco e não por mim". Juíza do trabalho desde 1994, Mylene Pereira tem mestrados pela Universidade de Stanford, na Califórnia, e pela Universidade de Columbia (NY). Seu currículo não a impede de ouvir com frequência a frase: "Mas a sra. não tem cara de juíza"
 
Nossa, mas a senhora não tem cara de juíza” é uma frase que a juíza Mylene Pereira Ramos está muito acostumada a ouvir. Para muitos de seus interlocutores, Mylene não tem cara de juíza por uma razão específica: ela é negra.
 
Formada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mylene tem mestrados pela Universidade de Stanford, na Califórnia, e pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde se aprofundou em  Direito Internacional do Trabalho.
 
Juíza do trabalho desde 1994, há alguns anos ela teve de ler um recurso que a deixou ultrajada. O advogado de um skinhead que requeria vínculo trabalhista com uma gravadora musical e teve o pedido negado por ela, ajuizou um recurso em que pedia que seu cliente fosse julgado por um juiz branco. “Foi muito aviltante ler aquilo. Nunca tinha visto uma coisa como aquela”, afirma.
 
Atualmente, Mylene é diretora do Fórum Trabalhista da Zona Sul e substitui um desembargador no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. A juíza recebeu a reportagem do JOTA em seu gabinete e falou sobre preconceito, falta de diversidade nos tribunais e reforma trabalhista.
 
Leia a entrevista:
 
Por que a senhora quis ser uma juíza do trabalho?

Quando eu tinha cinco, seis anos de idade, meu pai trabalhava nas obras do metrô aqui de São Paulo. Ele ficava a semana inteira no trabalho, não voltava para casa. Eu via minha mãe brava, falando com ele. Ele não tinha problemas de saúde, mas tomava remédios – para não dormir. Trabalhava dias seguidos sem dormir. Depois de quatro dias seguidos sem dormir, trabalhando 24 horas, ele sofreu um derrame cerebral, aos 36 anos. Nem uma máquina produz desta forma.  Ele ficou dois meses entre a vida e a morte, sobreviveu com sequelas e se aposentou por invalidez logo em seguida. Minha mãe trabalhou a vida inteira como empregada doméstica e também se aposentou por invalidez. Quando comecei a pensar em prestar concurso, pensei na Justiça do Trabalho porque imaginei que com minha experiência de vida poderia contribuir – não defendendo os trabalhadores, mas tendo o conhecimento de uma insider, de quem já viu algumas situações por dentro. Quis ser juíza do trabalho porque uma das experiências que mais me marcou na vida, foi ver o meu pai perdendo a saúde dele em função do remédio que ele tomava para não dormir e trabalhar. Sempre que ando de metrô lembro do momento em que um amigo dele chegou em casa para nos dizer que ele estava no hospital entre a vida e a morte.
 
Há pouca diversidade nos tribunais em geral. Quantos desembargadores são negros aqui no TRT-2?
 
Aqui no TRT-2 temos apenas uma desembargadora negra, a doutora Rilma Hermetério [entre 93 desembargadores], e no primeiro grau conheço apenas outro juiz de primeiro grau que se identifica como negro [entre 415 juízes]. Eu falei sobre essa questão no TEDx São Paulo, sobre a necessidade de haver mais diversidade racial na magistratura. Aqui não tem diversidade racial. E falta diversidade de gênero, de transgêneros ou mesmo em relação à questão de opção sexual nós não vemos juízes se posicionando. A Justiça precisa de diversidade. Cada um de nós é diferente. Somos na essência iguais, mas cada um tem uma experiência diferente de vida. A minha mãe ter sido doméstica me moldou no que sou hoje. Eu não sou como alguém que nasceu nos Jardins ou que o pai é fazendeiro. Eu sou eu, a Mylene, que teve esta determinada experiência de vida. É isso que faz com que o juiz estabeleça determinados critérios de avaliação na vida, crenças e valores. Quando você tem juízes diversos, vai ter pessoas diversas avaliando os casos. Por exemplo, um reclamante diz que era discriminado porque era chamado de “negão” ou que ouvia dos colegas “samba aí”. Mas a testemunha diz: “era brincadeira, a gente pedia para ele sambar porque achava bonito. Meu melhor amigo é preto, não era preconceito”. Um determinado juiz pode se perguntar: “onde está o racismo? Não tem problema nenhum”. Eu, por causa da minha história, vou analisar de outra forma.
 
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A senhora já sofreu preconceito como juíza?
Sim.
 
De que forma?
 
Acho que um dos grandes preconceitos é você não ser reconhecida pelo que você realmente é. Nesta semana, uma advogada veio me entregar memoriais. Eu estava na sala junto com os funcionários. Falei: “sim?”. Ela ficou meio assim e disse: “a senhora que é a juíza? Nossa, a senhora é tão jovem, nem pensei que pudesse ser a juíza. Não tem cara de juíza”. Não tem cara de juíza é uma frase que sempre ouço. Quando a pessoa se assusta e não consegue reconhecer num negro a figura de um juiz, a culpa não é dela; é da sociedade. Isto é um reflexo da falta de diversidade no Judiciário. Minha mãe às vezes vinha ao fórum para me ver atuando. Isso aconteceu pouquíssimas vezes. Mas, nessas pouquíssimas vezes, minha mãe ouviu comentários, como por exemplo: “olha que absurdo: essa mulher é juíza. Há um tempo atrás ela estaria na cozinha da minha casa lavando o chão”. Às vezes acontecem casos muito extremos. Julguei improcedente uma reclamação trabalhista de um skinhead que, de fato, não tinha cabimento algum. Depois de ter sido preso em flagrante por ter agredido um homossexual negro na Avenida Paulista, ele foi desligado do trabalho. O advogado entrou com um recurso dizendo que queria que o processo de seu cliente fosse julgado por um juiz branco, não por mim. Eu estou tendo preconceito porque sou negra? A pessoa de fato escreveu isso, estamos numa sociedade doente.
 
A senhora tomou alguma medida contra este advogado?
 
Não. Eu faço parte da comissão de igualdade racial da OAB e tenho um ótimo relacionamento com a classe dos Advogados. Sempre opto pelo diálogo e preferi não criar uma polêmica, até porque o questionamento sobre a minha parcialidade em razão da cor da minha pele foi arguida em recurso ordinário, sobre o qual o TRT-2 iria se manifestar. Mas foi muito aviltante ler aquilo. Nunca tinha visto uma coisa como aquela.
 
E por parte de pares? A senhora também já sofreu preconceito?
 
(silêncio por sete segundos) Pares? Não posso dizer que sofri preconceito, algo que tenha sido na minha frente. Tenho amizade com todos, procuro ser uma pessoa cordial. Estou na Justiça, aqui em São Paulo, desde 1995. Sou juíza desde 1994. As pessoas sabem que sou muito bem preparada, que criei uma teoria sobre assédio processual, que foi reconhecida internacionalmente e também influenciou o Novo Código de Processo Civil como ele é hoje. Então, fica mais difícil você chegar e enfrentar. Mas nós sabemos que muitos critérios são subjetivos. Por exemplo, o critério da meritocracia. A meritocracia dentro do Judiciário tem alguns requisitos básicos – e ser negro não ajuda. Alguns critérios excluem. Se você tem a oportunidade de promover um juiz branco ou um juiz negro, o branco, com sobrenome, com histórico familiar, em geral é o escolhido. Isso vale para a eleição do quinto constitucional também. Na última eleição tinha uma candidata negra que era muito bem preparada – e não foi a primeira vez que ela não foi eleita. Por ser subjetivo, este critério pode excluir os negros e outros integrantes de grupos historicamente discriminados. Faço parte de um grupo de mulheres negras justamente para discutir o empoderamento da mulher negra.
 
A senhora se considera uma ativista dessa causa?
 
Sim. Agora, a palavra ativismo é meio perigosa. Não sou uma ativista judicial. Precisamos de mais juízes negros não porque os magistrados negros defenderão as partes negras. Precisamos, sim, para ter mais representatividade. Agora, como cidadã, mulher e negra eu sou uma ativista para o empoderamento das mulheres negras e por mais diversidade em geral. Aqui dentro sou uma juíza como qualquer outra. Não olho diferente para ninguém seja de uma cor ou de outra. Sou ativista na minha vida como cidadã.
 
As cotas raciais funcionam bem na Justiça do Trabalho?
 
Temos um problema estrutural. Por toda uma herança da escravidão, os negros se encontram no patamar mais inferior da pirâmide social. Essa questão toda faz com que a maior parte dos negros não tenha acesso a uma educação de qualidade. O concurso para acesso ao cargo de juiz é muito exigente – e tem que ser exigente mesmo. As cotas, neste caso, não resolvem absolutamente nada porque não faltam e, sim, sobram vagas. Os negros, entretanto, não passam porque não tiveram uma educação de qualidade como os candidatos brancos tiveram. Enquanto as crianças negras e os adolescentes negros não tiverem acesso a uma educação de qualidade, eles não terão condições de passar no concurso da magistratura. E sem uma magistratura diversa na primeira instância também não teremos uma magistratura diversa na segunda. Os negros ficam represados do outro lado da cerca, que divide estes concursos.
 
No Itamaraty, foi montada uma comissão para avaliar a autodeclaração dos candidatos que se disseram negros. Um critério mais objetivo para as cotas, como o econômico, não seria mais adequado?
 
A cota social com base em rendimentos não atinge o propósito racial. Se você é branco e pobre vai ter mais condições de ascender socialmente e economicamente do que um negro pobre. A cota racial é uma reparação em razão da escravidão. Mães escravas muitas vezes pegavam suas crianças no colo e jogavam no tacho de óleo quente para que seus filhos não passassem pelo que elas passavam nas senzalas. As famílias eram separadas, as pessoas não tinham sequer noção do conceito de família. Temos cicatrizes lá de traz que repercutem aqui hoje com relação à desestruturação familiar. Tem que haver uma reparação. A cota social não resolve isso. Essas comissões para coibirem fraudes são necessárias. Participei de uma sessão numa dessas comissões na esfera municipal, em que candidatas iam com as mãos e rostos maquiados para parecerem negros. Em contrapartida, há casos limiares em que a pessoa não tem o fenótipo de negro, mas a família toda é negra. Não é um caminho fácil. Está se procurando resolver. A lei tem que ser específica. O critério precisa ser objetivo, assim como para obter cidadania estrangeira, como, por exemplo, comprovas uma ascendência negra até segundo grau. As comissões não são diabólicas. São um caminho para se descobrir como navegar nesta política nova.
 
Os empregadores reclamam muito da Justiça do Trabalho. Existe preconceito contra o empresário por parte dos magistrados?
 
É interessante essa questão. Uma mentira repetida muitas vezes acaba se tornando uma verdade. Para dizer que a Justiça do Trabalho tem preconceito contra a empresa precisaríamos ver as estatísticas. Quantas causas são julgadas totalmente procedentes? Uma minoria. O juiz do trabalho não criou a lei, foi o legislador. É ele quem pode mudar a lei. Nós aplicamos a legislação como ela é. É certo que o empregado é parte menos favorecida nesta relação, então é por isso que a lei destina a ele uma proteção maior. Tem empresas que fecham deliberadamente as portas e não entregam sequer as guias para que o trabalhador possa receber o seguro-desemprego. Vemos isso diariamente. A Justiça do Trabalho aplica a lei para que este país não se torne um grande navio negreiro como já foi.
 
A Justiça do Trabalho sofre preconceito por parte dos outros operadores do Direito?
 
É muito comum ouvir que a Justiça do Trabalho é uma “justicinha”. É um termo muito comum. A Justiça do Trabalho sofre preconceito, sim, mas é um preconceito que está embutido na sociedade brasileira. É um preconceito contra o negro, contra a mulher, o menos favorecido, o mais pobre e também contra aquela justiça que recebe os trabalhadores. O menos favorecido pode vir aqui, inclusive sem advogado. Daí vem o preconceito.
 
Qual a sua visão sobre a reforma trabalhista?
 
O direito não é estático porque a sociedade não é estática. O direito regula o que está dentro de uma sociedade e, por isso, precisa caminhar. Agora, de que forma essa reforma vai ser feita? Uma reforma baseada em ilações, de que os empregados não precisam mais de nenhum tipo de proteção porque tem um sindicato forte, entre aspas nós sabemos, num momento como este principalmente, me cheira mais a golpe. Primeiro precisa ser estabelecida uma tranquilidade social para que se possa discutir. Vejo vídeos na internet dizendo que a culpa dessa crise é da Justiça do Trabalho porque julga sempre a favor do trabalhador, sendo que isso não é verdade. Ou então, que os juízes do trabalho poderiam estar num tribunal soviético. Esse tipo de campanha é extremamente perigosa. Uma reforma trabalhista proposta com base em premissas falsas não está pronta para seguir adiante.
 
E quanto ao negociado acima do legislado?
 
Vai existir um momento em que o negociado poderá prevalecer sobre o legislado. Mas não estamos na hora adequada para isso, seja do ponto de vista político, jurídico ou econômico. Você tem milhões de pessoas desempregadas. Há cidades do interior do estado de São Paulo, em que 70% da população está desempregada, e se você for negociar que eles trabalhem 24 horas por dia, eles vão aceitar. A negociação tem que ser justa. As partes têm que estar em parâmetros iguais. O trabalhador não pode ter seus direitos aviltados. Primeiro, precisamos pensar em como colocar as pessoas num patamar igual para depois poder negociar. E essa terceirização desmedida é liberar a precarização em todas as áreas.
 
A senhora, então, é contrária à terceirização?
 
A maioria dos acidentes de trabalho, dos casos de discriminação, de precarização, todos estão ligados à terceirização. O Estado mesmo contrata empresas que quebram pouco depois.
 
Já teve algum caso em que a União foi demandada por trabalhadores de empresas terceirizadas pelo próprio TRT-2?
 
Não vou dizer que não existiu. Sim, existiram e existem casos assim, mas o TRT-2 tem um olho muito mais clínico em cima dessas terceirizações.
 
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