Tira Chapéu cresceu sem licença. Tijolos de cimento, acumulados como
peças de Lego descoloridas e empoeiradas, construíram um bairro. As crianças
correm pelas ruas, os cães insistem em chamar a atenção, os cadáveres dos
automóveis denunciam uma oficina e a parede vermelha da Ferro Bedjo destoa nas
noites de koladera. Na Cidade da Praia, capital de Cabo Verde, o
Tira Chapéu não é o único bairro a que chamam “problemático”. O sol brilha e
aquece da mesma forma bairros como o do Brasil, Eugénio Lemos, Chechénia ou
Achadinha. O que é que todos eles têm em comum?
Nas “bocas de fumo”, como lhes chamam, compra-se cannabis –
duas pequenas “almôndegas” de papel grosso e castanho com erva lá dentro – por
cem escudos locais. Mas o problema não é apadjinha – palhinha em
crioulo. Pelo mesmo preço, cerca de um euro e dez cêntimos, também se
compra uma dose de crack. Ou, a partir de 500 escudos, uma grama de
cocaína. E em quase todos eles existem tags, a versão cabo-verdiana
dos gangs, uma invenção de repatriados dos EUA, que aqui reproduzem
estilos de vida e de delinquência que são um cliché em tantos países. As novas
rotas internacionais do tráfico de droga aproveitaram o remanso cabo-verdiano
como ponto de paragem no seu trajecto para a Europa e deixaram as suas
consequências e algo mais. O problema é comum a toda a África Ocidental, refere
Ulrika Richardson Golinski, coordenadora residente do sistema das Nações Unidas
em Cabo Verde: “Não é só uma rota de tráfico; é também um destino final.”
Cabo Verde confronta-se com a sua impotência para vencer o crime
organizado, de proporções desconhecidas, mas seguramente de dimensão global, e
a sua incapacidade para patrulhar eficazmente as suas 200 milhas de zona
económica exclusiva. Carlos Reis, director da Polícia Judiciária (PJ), observa
que o tráfico de droga procurou e medrou no país devido ao crescimento
económico dos últimos anos e à consequente melhoria das infra-estruturas. Cabo
Verde terá passado, suspeita o magistrado, de uma zona de passagem a armazém. O
ex-Presidente Pedro Pires, afirmou mesmo, no último mês, que existe “droga
armazenada” no país e que ninguém sabe onde a mesma é guardada. Nesta luta
contra as drogas – uma guerra infinita e sempre falhada –, o director da PJ
prefere atingir o “elefante”, em vez da “formiga”, o que não quer dizer que a
formiga seja deixada em paz.
A guerra contra o narcotráfico não é de agora e alguns dos “elefantes”
de que fala o director da PJ foram julgados e presos. Zany Filomeno, mais
conhecida como “baronesa”, foi condenada a oito anos de prisão por tráfico
de droga, mas foi recentemente libertada, em troca da sua colaboração na
identificação e condenação de outros traficantes. Zany cumpriu metade da pena
e, “cansada de esperar, resolveu meter a boca no trombone e exercer pressão
sobre a justiça”, como explica o Expresso das Ilhas, um semanário
cabo-verdiano. A sua libertação foi inesperada. Um outro semanário, A
Nação, deu conta das queixas-crime que o procurador-geral da República
apresentara contra a “baronesa” por difamação e injúria, uma vez que esta
alegava ter sido usada para deter suspeitos do processo Voo da Águia e
de ter sido abandonada posteriormente. Mas ninguém sabe para onde foi Zany
Filomeno. O “trombone” pode ser estridente. Um outro processo tem dominado as
atenções em Cabo Verde. A Lancha Voadora implicou muitos
nomes, a condenação de traficantes a penas de 22 anos, no caso do seu principal
cabecilha, e o confisco de bens – um edifício na capital foi transformado
no quartel-general do Estado-Maior do Exército. Este caso, a maior apreensão de
sempre em Cabo Verde, foi objecto de recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça, cuja decisão será conhecida este ano.
Um primeiro estudo sobre consumo de droga no arquipélago, elaborado
pela Comissão de Coordenação de Combate à Droga, com a colaboração de
especialistas das Nações Unidas na Praia, confirma o sucesso da padjinha (a
planta da cannabis), a substância de maior consumo no arquipélago.
Seguem-se a cocaína, o haxixe (a resina da cannabis), e a heroína,
cujo consumo é francamente residual. Um segundo e último estudo sobre a
prevalência do consumo demonstra que os homens começam a consumir cannabis mais
cedo do que as mulheres” e que a idade média do primeiro consumo ocorre aos 18
anos. Mas nada é dito sobre o consumo de anfetaminas, que também é já produzido
no país e sobre o qual existe pouca informação disponível. Curiosamente, quando
os inquiridos foram convidados a pronunciar-se sobre as suas próprias
representações acerca dos consumidores de drogas, mais de 58% representaram o
utilizador de drogas enquanto doente.
As autoridades locais garantem que ninguém está preso no país por
consumir droga; que a lei da droga de 1993 pune os consumidores com uma pena de
prisão até aos três anos e com multa até aos 30 dias, mas que o Código
Penal de 2004 impede penas de prisão inferiores a três anos… Na prática,
orgulha-se o director da PJ, não é preciso descriminalizar o consumo, porque
ninguém é preso. Fernanda Marques, secretária executiva da Comissão de
Coordenação de Combate à Droga, chama a atenção para as idiossincrasias de Cabo
Verde em matéria de droga. De acordo com a mesma, não faz sentido falar em
programas de substituição, com recurso a substâncias como a metadona, à
semelhança do que acontece em Portugal, porque o número de utilizadores de
opiáceos não o justifica.
De resto, o tratamento do consumo de drogas em Cabo
Verde passa por experiências com a do projecto El Shady (Deus Todo-Poderoso, em
hebraico), que há 17 anos aplica um método de trabalho “espiritual”, como
explica o seu mentor, Honório Fragata. El Shady tem o apoio do Ministério da
Saúde e apoia-se no método Minnesota, semelhante ao seguido pelas comunidades
de alcoólicos anónimos. Fragata resume o essencial em três passos: “Esperança,
Luz e Reinserção.” O método Minnesota, conhecido com o programa dos 12 passos,
foi criado para o tratamento do alcoolismo, mas foi depois alargado a todos os
tipos de dependência. É o mesmo processo que é aplicado na Comunidade
Terapêutica Granja S. Filipe, a única do arquipélago, apoiada pelo Estado e
pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e do Vale do Tejo, na qual,
segundo José Moreira, o seu director, também se aposta na formação profissional
como forma de reinserção social.Leia o artigo completo - publico.pt