Guiné-Bissau: Artigo 8º da Constituição da República à prova do Acórdão nº. 1/2016, do Supremo Tribunal de Justiça em sede de Tribunal Constitucional
Por: Carlos Vamain
Um dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico-constitucional guineense é de que o Estado subordina-se à Constituição e baseia-se na legalidade democrática (Artigo 8º). Acresce-se a este princípio a clara imposição do constituinte guineense a respeito da necessidade de os actos do Estado se conformarem com a Constituição sob pena de nulidade. Pois, na Guiné-Bissau, a validade das leis e dos demais actos do Estado depende da sua conformidade com a Constituição (n.º 2, do Artigo 8º). A contrario sensu, toda a vez que um acto de um dos órgãos do Estado, a saber, o Presidente da República, a Assembleia Nacional Popular, o Governo, os Tribunais e o Poder Local não se conformarem com a Constituição é nulo. Isso porque todo o acto jurídico que não preencha os critérios de validade não produz efeitos úteis em direito.
Apenas em regimes democráticos podem ser encontrados a necessidade de um aprofundamento do Estado de Direito, pela presença de mecanismos jurisdicionais independentes de influências políticas que possam garantir a normalidade ao nível das relações institucionais do Estado – pessoa colectiva e sujeito de direito.
Em princípio, o processo judicial só se inicia sob impulso da parte mediante pedido, assim como da fixação do objecto do processo, com vista à anulação de um determinado acto pela sua não conformidade com a Constituição. Uma realidade que continua a suscitar apreensões nos meios académicos e judiciais guineenses. E, uma vez mais os guineenses foram brindados pelo Supremo Tribunal de Justiça, em sede de fiscalização da constitucionalidade (Acórdão Nº. 2/2016, de 22 de Março) com uma decisão ab absurdum, ao declinar a sua competência para apreciar um incidente de inconstitucionalidade, sob fundamento de tratar-se de uma decisão judicial, portanto, insindicável. Lavando assim, as suas mãos como Pilatos. Adiando, assim, uma decisão que devia ter sido adoptada em nome do povo, pela afirmação da independência, da imparcialidade e da credibilidade dos tribunais.
Ora, em regra geral, a fiscalização da constitucionalidade (jurisdicional) deve ser entendida como se (...) «o soberano tivesse estabelecido uma autoridade constituinte secundária sob a forma do juiz da constitucionalidade, embora (com) autoridade supletiva, derivada e sem poder de ultrapassar certos quadros», Cf. Georges Burdeau apud J. Miranda, in Manual de Direito Constitucional, Parte II, Constituição e Inconstitucionalidade, p. 388, notas de rodapé.
Quanto à fiscalização da constitucionalidade, pode-se dizer que ela consiste numaacção - quando a lei é atacada directamente diante de um tribunal (Corte Suprema ordinária ou especial) com vista à sua anulação com força geral obrigatória por não se conformar com o disposto na Constituição, ou numa excepção, que é o caso guineense, quando, por ocasião de um litígio perante um tribunal comum, se o Tribunal, o Ministério Publico ou qualquer das partes no processo levantar a questão da inconstitucionalidade, uma vez admitida essa questão pelo Juiz da causa, o incidente (da inconstitucionalidade) sobe em separado ao Supremo Tribunal de Justiça, que decidira em plenário (Artigo 126º, da Constituição). Isso porque os tribunais são proibidos de aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição (Artigo 126º, n. 1, da Constituição).
Acontece que o STJ fora chamado para conhecer e decidir sobre o incidente de inconstitucionalidade suscitado, « (…) na sequência de um recurso de agravo interposto no dia 24/02/016, contra a decisão de suspensão de eficácia do acto administrativo, nos autos de uma providencia cautelar e admitido no dia 02/03/016 por despacho do juiz a quo , que também ordenou a subida do mesmo para o Plenário do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artº. 126º, da Constituição da República.», tendo-se declarado incompetente para conhecer e decidir sobre esse incidente de inconstitucionalidade suscitado.
Convém sublinhar a característica processual da Providencia Cautelar que, por natureza, consiste numa medida urgente que, em princípio, visa sustar a ocorrência duma lesão grave de direito, dificilmente reparável e que a lei processual faculta ao juiz proferir decisão por despacho provisório, sem a necessidade de ouvir a outra parte em conflito, nos termos do Artigo 399º, do Código de Processo Civil. A parte contrária só dispõe da capacidade de agir depois de ter sido notificada da decisão provisória em questão, pelo juiz. Ademais, não se tratou de uma sentença transitada em julgado, mas simplesmente, duma decisão com validade temporária, dependendo da propositura de acção principal pertinente, no prazo de trinta dias e, portanto, com possibilidade de recurso.
E, segundo o STJ, « (…) uma vez que os preceitos alegadamente violados são preceitos constitucionais, ainda que de uma providência cautelar se trata, o tribunal a quo , ao abrigo do artº 126º da CRGB, deveria ter suspendido a instancia e formular incidente, mesmo que oficiosamente (já que os requerentes não o formularam) e enviar o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para ser apreciada a questão de inconstitucionalidade da deliberação da Comissão Permanente posta em causa, nos termos da Lei Nº. 6/2015, de 20 de Agosto, artigo 27º, alíneas d) e e) ».
Ora, é sob esta fundamentação que os juízes Conselheiros (11) decidiram declinar a sua competência, indeferindo liminarmente o incidente de inconstitucionalidade levantado pelo Juiz a quo. Uma decisão que, do ponto de vista jurídico, constitui uma afronta ao disposto no Artigo 126º, da Constituição da República e violação flagrante do disposto no Artigo 8º, da Constituição da República, a saber: «A validade das leis e dos demais actos do Estado e do Poder local depende da sua conformidade com a Constituição». Neste contexto, faz todo o sentido a aplicação do brocardo latino segundo o qual ubi les non distinguit, nec nos distinguere debemus (Não se pode distinguir onde a própria lei não distingue, seja ela fundamental ou ordinária). Tanto mais que, em direito, em princípio, só há lugar à interpretação em face de um texto obscuro, ambíguo ou susceptível de várias acepções. O que não nos parece ser o caso do Artigo 8º, nº. 2, nem do Artigo 126º, da Constituição da República. Pois, aqui, não se faz menção a actos normativos, mas simplesmente aos demais actos do Estado, independentemente de serem normativos ou não, incluindo para todos os efeitos, as decisões dos tribunais que infrinjam as normas constitucionais ou princípios nela consagrados, não podendo, em consequência, ficarem imunes à fiscalização da constitucionalidade prevista pela própria Constituição. Portanto, todos os actos do Estado não conformes com a Constituição são sindicáveis no ordenamento jurídico guineense, por força da disposição do citado Artigo 8º, da Constituição, em conjugação com o disposto no Artigo 126º, nº.1, da Constituição. Pois, a fundamentação da decisão judicial deve basear-se, não na doutrina, mas na lei, conforme o disposto no Artigo 123º, nº. 2, da Constituição da república. Um comando legal que não fora respeitada pelo STJ, tornando-se absurdo o recurso à doutrina dos Professores José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Morreira para fundamentar a incompetência do STJ da Guiné-Bissau, em sede do incidente de inconstitucionalidade devidamente proposto, nos termos da Constituição da República. Aliás, nesta matéria, a fiscalização da constitucionalidade é diametralmente oposta a de Portugal, a saber: Na Guiné-Bissau, a fiscalização da constitucionalidade faz-se por excepcao, enquanto que, em Portugal, procede-se por acção, podendo ser preventiva e por excepcao. Neste último caso, através de recursos das decisões dos tribunais ao Tribunal Constitucional.
Por outro lado, mesmo na hipótese da não consagração pela Constituição guineense da fiscalização da constitucionalidade das decisões dos tribunais - o que não é o caso, conforme fora fundamentado anteriormente -, o tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio, sobretudo, em sede da inconstitucionalidade das leis, que é da competência do plenário do STJ, em razão da clareza das suas disposições constitucionais. E das decisões que proferir, nesta circunstância, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes de direito (Artigo 8º, do Código Civil).
Em conclusão e sem necessidade de recurso a outros institutos jurídicos que pudessem fundamentar a decisão constante do Acórdão Nº. 2/2016, do STJ, só o facto de se proibir aos juízes, no ordenamento jurídico guineense, de decidirem contra as normas que infrinjam a Constituição, constitui a demonstração clara de que o constituinte guineense ordena a sindicância das decisões dos tribunais desde que estas não se conformem com a própria Constituição da República, por tratarem de actos do Estado, cuja fiscalização se opera por excepção, tal como se procedeu no caso em espécie, enviando ao STJ para decisão da constitucionalidade ou não, sobre o incidente de inconstitucionalidade suscitado em relação à matéria objecto da decisão provisória proferida pelo juiz a quo, nos devidos termos constitucionais (Artigo 126º, da CRGB), contrariamente à fiscalização mista de orientação portuguesa, que serviu de fundamento à sua decisão de incompetência, denegando, assim, a justiça requerida pelo próprio Juiz a quo, sob pena da aplicação da Lei nº. 7/97, de 2 de Dezembro, relativa ao crime de responsabilidade dos titulares dos cargos políticos, em conjugação com o disposto no Artigo 123º, n.º 3, da Constituição da República. Pois, ninguém está acima da lei, incluindo os tribunais.
Em suma, se as decisões dos tribunais, por decisão do STJ da Guiné-Bissau, não são sindicáveis, deve-se entender a fortiori que não são também sindicáveis as decisões do Presidente da República, da Assembleia Nacional e do Governo, por serem todos eles órgãos de soberania e, portanto, do poder político do País, ocupando todos eles o mesmo nível de legalidade e de responsabilidade pela conformidade dos seus actos com a Constituição da República, por força do disposto no seu Artigo 8º, nº. 2. Uma situação que prenuncia o impasse total ou a volta ao statut quo ante da decisão de inconstitucionalidade proferida pelo STJ relativamente ao Decreto-Presidencial, em razão do carácter não sindicável dos actos do Estado que nos propõe o STJ neste novel Acórdão, revogando todos os anteriores Acórdãos em matéria da fiscalização da constitucionalidade dos actos do Estado. É pelo menos, uma das ilações, entre outras, que se pode tirar deste Acórdão Nº. 2/2016, de 22 de Março.