quarta-feira, 23 de março de 2016

O SUICÍDIO EUROPEU FACE À TURQUIA

Foto: Aquando da conferência de imprensa de 18 Março de 2016, o presidente da União Europeia, Donald Tusk (um Polaco que defende os interesses da Alemanha), parecia tentar acalmar a fúria do presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker (um Luxemburguês que defende os interesses dos E.U.A.). Para enorme satisfação de um Primeiro-ministro Turco, tranquilamente irónico, Ahmet Davutoğlu.© União europeia
 
 
Ao assinar um acordo —diga-se de passagem, ilegal no Direito Internacional— com a Turquia para abrandar o afluxo de migrantes, os dirigentes da União Europeia envolveram-se um pouco mais num pacto com o diabo. Uma grande parte dos 3 mil milhões (bilhões-br) alocados a Ancara servirá para financiar o apoio aos jiadistas e, por conseguinte, a aumentar o número de migrantes que fogem à guerra. Acima de tudo, revogando, nos próximos meses, os vistos com a Turquia, os Europeus instituem a livre circulação entre os campos da Al-Qaida, na Turquia, e Bruxelas. Esmagando assim os povos iraquiano e sírio sob a opressão dos jiadistas, que eles financiam indirectamente, e abandonando o povo turco à ditadura do Presidente Erdoğan, preparam as bases de um vasto enfrentamento do qual virão a ser as vítimas.
 
«A democracia é como um tramway, subimos para ir aonde queremos e aí chegados descemos» 

Recep Tayyip Erdoğan (1996)
 
O Conselho Europeu de 17 e 18 de Março de 2016 adoptou um plano visando resolver o problema colocado pelo afluxo maciço de migrantes provindo da Turquia [1]. Os 28 chefes de Estado e de governo submeteram-se a todas as exigências de Ancara.
 
Nós havíamos já analisado a maneira pela qual os Estados Unidos entendiam utilizar os acontecimentos do Próximo-Oriente para enfraquecer a União Europeia [2]. No início da actual crise dos «refugiados», fomos os primeiros a observar simultaneamente que este evento tinha sido deliberadamente provocado, e os problemas insolúveis que ele ia colocar [3]. Infelizmente, todas as nossas análises acabaram provadas, e as nossas posições foram, depois, amplamente adoptadas pelos nossos detractores de então.
 
Indo mais longe, interessa-nos avaliar a maneira como a Turquia tomou conta do jogo e a cegueira da União Europeia, que persiste em estar um passo atrás.

O jogo de Recep Tayyip Erdoğan

O presidente Erdoğan não é um homem político como os outros. E, não parece que os Europeus, nem os povos, nem os seus dirigentes, tenham tomado plena consciência disso.
• Primeiro, ele veio da Millî Görüş, um movimento islâmico pan-turquista ligado aos Irmãos Muçulmanos do Egipto e defensor do restabelecimento do Califado [4]. Segundo ele —como, aliás, segundo os seus aliados do Milliyetçi Hareket Partisi (MHP)— os Turcos são os descendentes dos Hunos de Átila, eles próprios filhos do lobo das estepes da Ásia Central, do qual herdariam a resistência e a crueza. Formam uma raça superior chamada a governar o mundo. A sua alma é o Islão.
 
O presidente Erdoğan é o único chefe de Estado do mundo a reivindicar-se de uma ideologia supremacista étnica, perfeitamente comparável ao arianismo nazista. É, igualmente, o único chefe de Estado no mundo a negar os crimes da sua história, nomeadamente os massacres de não-muçulmanos pelo Sultão Abdulhamid II (os massacres hamidianos de 1894-1895: pelo menos 80. 000 Cristãos mortos e 100.000 Cristãs incorporadas à força nos haréns), depois pelos Jovens Turcos (genocídio dos Arménios, dos Assírios, dos Caldeus, dos Siríacos, dos Gregos pônticos e dos Yazidis de 1915 a 1923: pelo menos 1,2 milhões de mortos); um genocídio que foi executado com a ajuda de oficiais alemães, entre os quais Rudolf Höss, futuro director do campo de Auschwitz [5].
 
Ao celebrar o 70º aniversário da libertação do pesadelo nazista, o presidente Vladimir Putin sublinhou que «as ideias de supremacia racial e de exclusivismo provocaram a guerra mais sangrenta da História» [6]. Depois, aquando de uma marcha —e sem nomear a Turquia—, ele apelou a todos os Russos para estarem prontos a renovar o sacrifício dos seus avós, se necessário, afim de salvar o princípio da própria igualdade entre os homens.
 
• Em segundo lugar, o presidente Erdogan, que apenas tem o apoio de um terço da sua população, governa sozinho o país pela força. É impossível saber com precisão o que pensa o povo turco, uma vez que a publicação de qualquer informação pondo em causa a legitimidade do presidente Erdoğan é agora considerada como uma violação da segurança do Estado, e conduz imediatamente à prisão. No entanto, se nos referirmos aos mais recentes estudos publicados, em outubro de 2015, menos de um terço do eleitorado o apoia. O que é nitidamente menos que os nazistas em 1933, que dispunham, então, de 43% dos votos. Esta foi a razão pela qual o presidente Erdoğan só pode ganhar as eleições legislativas após uma grosseira falsificação.
 
Entre outras: 

- Os média (mídia-br) da oposição foram amordaçados: os grandes jornais quotidianos Hürriyet e Sabah assim como a televisão ATV foram atacadas por homens de mão do partido no poder; foram lançadas investigações visando jornalistas e órgãos de imprensa acusados de apoiar o «terrorismo» ou de ter feito comentários difamatórios contra o Presidente Erdoğan; “sites” web foram bloqueados; prestadores de serviços digitais suprimiram do seu cartaz os canais de televisão da oposição; três dos cinco canais de televisão nacionais, entre os quais a emissora pública, foram nos seus programas claramente partidários do partido no poder; outros canais de televisão nacional, o Bugün TV e Kanalturk, foram fechadas pela polícia. 

- Um estado estrangeiro, a Arábia Saudita, derramou £ 7 mil milhões (bilhões-br) de «donativos» para «convencer» os eleitores a apoiar o presidente Erdoğan (ou seja cerca de 2 mil milhões de euros).

- 128 sedes políticas do Partido de esquerda (HDP) foram atacadas por sicários do partido do presidente Erdoğan. Inúmeros candidatos e suas equipes foram espancados. Mais de 300 lojas curdas foram saqueadas. Dezenas de candidatos HDP foram presos e colocados em prisão preventiva durante a campanha. 

- Mais de 2. 000 opositores foram mortos durante a campanha eleitoral, quer pelos ataques, quer por causa da repressão governamental visando o PKK. Várias aldeias do sudeste do país foram parcialmente destruídas por tanques do exército.
 
Desde a sua «eleição», uma cortina de chumbo desceu sobre o país. Tornou-se impossível alguém poder informar-se sobre o estado da Turquia através da sua imprensa nacional. O principal diário da oposição, Zaman, foi colocado sob tutela e limita-se agora a louvar a grandeza do «sultão» Erdoğan. A guerra civil, que lavra já no Leste do país, estende-se, com atentados em Ancara e até Istambul, perante a total indiferença dos Europeus [7].
 
Erdoğan governa quase só, rodeado por um grupo restrito, no qual se inclui o Primeiro-ministro Ahmet Davutoglu. Ele declarou publicamente, durante a campanha eleitoral, que não respeitava mais a Constituição e que, agora, todos os poderes lhe estavam entregues.
A 14 de março de 2016, o presidente Erdogan declarou que face aos Curdos: «A democracia, a liberdade e o estado de direito não têm mais o menor valor». Ele anunciou sua intenção de alargar a definição legal de «terroristas» para incluir todos os que são «inimigos dos Turcos» —quer dizer os Turcos e não-Turcos que se opõem ao seu supremacismo—.
 
 
Por metade de mil milhões de euros, Recep Tayyip Erdoğan, fez construir para si próprio, o maior palácio jamais ocupado por um chefe de Estado na história mundial. O «palácio branco», em referência à cor do seu partido, o AKP. Ele estende-se por 200. 000 metros quadrados e compreende todo o tipo de serviços, entre os quais “bunkers” de segurança ultra-modernos ligados a satélites.
 
• Terceiro, o presidente Erdoğan utiliza os poderes que anti-constitucionalmente se atribuiu para transformar o Estado turco em padrinho do jiadismo internacional. Em Dezembro de 2015, a polícia e a Justiça turcas conseguiram estabelecer os laços pessoais de Erdoğan e do seu filho Bilal com Yasin al-Qadi, o banqueiro global da Al-Qaida. Ele despediu, pois, os policias e os magistrados que tinham ousado «pôr em causa os superiores interesses da Turquia» (sic), enquanto Yasin al-Qadi e o Estado colocavam um processo judicial ao quotidiano de esquerda BirGün por ter reproduzido o meu editorial, «Al-Qaida, eterna reserva da Otan».
 
Em Fevereiro último, a Federação da Rússia entregava um relatório de Inteligência ao Conselho de Segurança da ONU atestando o apoio do Estado turco ao jiadismo internacional, em violação de inúmeras resoluções [8]. Eu publiquei um estudo aprofundado sobre estas acusações, imediatamente censurado na Turquia [9].

A resposta da União Europeia

A União Europeia tinha enviado uma delegação para vigiar as eleições legislativas em novembro de 2015. Ela adiou longamente a publicação do seu relatório, depois resolveu-se a publicar sobre isso uma curta versão, adocicada.
 
Em pânico pelas respostas das suas populações reagindo duramente à entrada maciça de migrantes —e, para os Alemães, à abolição do salário mínimo que daí resultou—, os 28 Chefes de Estado e de Governo da União finalizaram com a Turquia um procedimento para que ela resolva os seus problemas. O Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, Filippo Grandi, declarou, de imediato, que a solução escolhida viola o direito internacional, mas, mesmo supondo, a propósito, que as coisas possam ser melhoradas, nem é este o principal problema.
 
A União comprometeu-se a

- pagar 3 mil milhões de Euros anuais à Turquia para a ajudar a fazer face às suas obrigações, mas sem qualquer mecanismo de verificação da utilização destes fundos;
- pôr fim aos vistos exigidos aos Turcos para entrar na União [
10] —o deve ser feito em alguns meses, ou até semanas— ; 

- acelerar as negociações de adesão da Turquia à União —o que, pelo contrário, será muito mais demorado e aleatório—.
 
Por outras palavras, cegos pela recente derrota eleitoral de Angela Merkel [11], os dirigentes Europeus contentaram-se em encontrar uma solução provisória para abrandar o fluxo dos migrantes, sem procurar resolver a origem do problema e sem ter em conta a infiltração de jiadistas neste fluxo.
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Que fizemos?
© União europeia

O precedente de Munique

Nos anos 30, as elites europeias e norte-americanas consideravam que a URSS, devido ao seu modelo, ameaçava os seus interesses de classe. Eles apoiavam pois, colectivamente, o projecto nazi de colonização da Europa Oriental e de destruição dos povos eslavos. Apesar dos repetidos apelos de Moscovo para a criação de uma vasta aliança contra o nazismo, os dirigentes europeus aceitaram todas as reivindicações do chanceler Hitler, incluindo a anexação das regiões povoadas pelos Sudetas. Foi o Acordo de Munique (1938), conduzindo a URSS a adoptar o salve-se quem puder e a concluir o Pacto germano-soviético—1939—(Molotov-Ribbentrop- ndT). Só muito tardiamente é que certos dirigentes europeus, depois norte-americanos, perceberam o erro e decidiram aliar-se com Moscovo contra os nazis.
 
Diante de nossos olhos repetem-se os mesmos erros. As elites europeias consideram a República da Síria como um inimigo, seja porque defendem o ponto de vista colonial de Israel, seja porque esperam recolonizar, eles mesmos, o Levante apropriar-se das suas gigantescas reservas de gás ainda inexplorado. Elas apoiaram, pois, a operação secreta norte-americana de «mudança do regime» e fingiram acreditar na fábula da «Primavera Árabe». Após cinco anos de guerra por procuração, constatando que o presidente Bashar el-Assad ainda está lá, embora tivessem mil vezes anunciado a sua demissão, os Europeus decidiram financiar pelo montante de 3 mil milhões de euros anuais o apoio turco anual aos jiadistas. O que, segundo a sua lógica, deveria permitir a sua vitória e, portanto pôr um fim às migrações. Eles não tardarão a perceber [12], mas já muito tarde, que ao abolirem os vistos para os cidadãos turcos, autorizaram a livre-circulação entre os campos da Al-Qaida na Turquia e Bruxelas [13].
 
A comparação com o final dos anos 30 é tanto mais parecida quando na altura do Acordo de Munique o Reich nazista já havia anexado a Áustria, sem provocar reação notável de outros Estados europeus. Ora, hoje em dia, a Turquia ocupa já o Nordeste de um Estado-Membro da União Europeia, Chipre, e uma faixa de alguns quilómetros de profundidade na Síria, que administra através de um walli (prefeito) nomeado para este efeito. Não apenas a U.E. aceita isso, como pela sua atitude, ela encoraja Ancara a prosseguir as suas anexações com total desprezo pelo Direito internacional. A lógica comum ao chanceler Hitler e ao presidente Erdoğan é baseada na unificação da «raça» e na purificação da população. O primeiro queria unir as populações de «raça alemã» e purificá-las de elementos «estrangeiros» (Judeus e Roma), o segundo quer unir as populações de «raça turca» e purificá-las de elementos «estrangeiros» (os Curdos e Cristãos).
 
Em 1938, acreditavam na boa fé do chanceler Hitler, hoje em dia na do presidente Erdoğan.
 
Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).
Tradução Alva