Fonte: http://palantanda.blogspot.pt
Havendo necessidade de um esclarecimento sobre a atual situação política, ainda antes de darmos início à nossa argumentação jurídica e análise constitucional, façamos um pequeno resumo de como chegámos a esta situação caótica, de desregulação institucional e de subversão dos mais elementares princípios do Direito ou mesmo do simples bom senso.
Tudo gira em torno daquilo que se passou no dia 18 de Janeiro na Assembleia Nacional Popular (ANP), que passo a tentar resumir: estava reunido o plenário, tendo por ordem de trabalho a «segunda volta» do Programa que deveria ditar o futuro do Governo, que se encontrava presente, estando assim reunidas todas as condições requeridas.
O ex-presidente da ANP transportava um pesado fardo de abuso de autoridade num passado recente, de desrespeito pelo plenário, pelos prazos constitucionais, pelas ordens de trabalho e, em última análise, pelos deputados e deputadas da Nação nominalmente eleitos, na expectativa sempre frustrada de conseguir reunir uma maioria favorável aos seus intentos.
Ao verificar que o Comissário da Polícia da Ordem Pública (POP), José António Marques, cumprira os procedimentos legais, baseando-se no Boletim Oficial, e o resultado seria de novo desfavorável, pela enésima vez, Cipriano Cassamá anunciou a suspensão invocando «falta de condições de segurança». No entanto, nunca a segurança fora tão forte, como nesse último dia do Governo de Carlos Correia, em que até o ex-Primeiro-Ministro foi revistado, para entrar no hemiciclo.
Ora as reuniões da plenária só podem ser interrompidas nos termos do art.º 69.º do Regimento da ANP.
Quanto aos argumentos jurídicos, em defesa da legitimidade do novo Presidente da Mesa da ANP, Alberto Nambeia, julgo que foi sobre os artigos 23.º e 24.º do Regimento, que incidiram as principais críticas, pelo que quero começar precisamente por aí. O Artigo 23.º fala-nos sobre o Mandato do Presidente da ANP. O legislador traduz a configuração assumida pelo Parlamento, pelo que, no caso de alterações substanciais na maioria, é lícito que esta maioria, em democracia, assuma esse mandato em consonância, em nome do povo.
E o Artigo 24.º prevê a Substituição do Presidente da ANP. O ex-presidente deu FALTA DE COMPARÊNCIA (pois a sessão parlamentar fora suspensa e não encerrada, como o próprio defendeu posteriormente), e viu-se IMPEDIDO de continuar, embora estivesse presente nas instalações da ANP.
O ex-presidente da ANP reuniu assim cumulativamente as condições de faltoso e de impedido. Verificando-se o QUÓRUM (art.º 60.º do Regimento) suficiente para permitir deliberar. Em consequência, nos termos constitucionais e regimentares, o colectivo parlamentar validou o segundo Vice-Presidente, conforme estipulado no primeiro ponto desse artigo 24.º, para dar provimento à substituição do ex-Presidente, considerado indigno para o exercício do cargo, após recorrentes e grosseiras violações do Regimento e do respeito devido à dignidade da instituição.
Em síntese, o PAIGC praticou uma série de atropelos e deslealdades, recorrendo à sua máquina de manipulação, protelando indefinidamente qualquer solução que lhe fosse desfavorável, abusando dos mais absurdos subterfúgios legais para subverter a Constituição e as regras regimentais da ANP.
Perante a sucessão de inúmeros pequenos golpes na legalidade, a paciência esgotou-se. A Assembleia Nacional Popular é o órgão competente por excelência para dirimir esta alegada crise, como recentemente se resolveu em Portugal, porque tem mecanismos próprios à luz do Regimento e da Constituição da República, porque se deve evitar a judicialização dos atos políticos. Os problemas políticos devem ser resolvidos politicamente.
O Governo de Carlos Correia caiu no momento em que abandonou o Parlamento e cabe agora ao Presidente da República convidar o PRS para propor uma solução política.
O ex-Governo não tem condições políticas para continuar a reunir em Conselho de Ministros, ou sequer a invocar a qualidade de governantes. Entre os casos feridos de ilegitimidade, está a exoneração apressada e arbitrária, na Segunda-Feira passada, do Comissário da POP, a qual deve ser, para todos os efeitos, considerada nula e inexistente.
Quanto aos deputados do PAIGC, deverão voltar aos seus lugares, sob pena de perda de mandato, essa sim, justificada, por absentismo. Ou seja, da desagregação da antiga maioria saída das últimas eleições de 2014 resultou uma nova maioria, que devemos acreditar empenhada na estabilidade político-governativa do País, coisa que o PAIGC já demonstrou ser incapaz de oferecer, apesar de ter reunido todas as condições para tal.
Na lógica da doutrina constitucional do nosso sistema parlamentar, os governos formam-se com a base em maiorias que possam garantir a governabilidade, e não forçosamente nas maiorias saídas das urnas, como aliás recentemente se verificou em Portugal, e se está a desenhar em Espanha, para não falar do caso do Luxemburgo.
Há que fazer uma leitura dinâmica e atual dos factos, e não estática. À luz da nossa Constituição semipresidencialista, o Governo emana e responde politicamente perante o parlamento, considerado o centro da vida política (art.º 103.º).
Há vários precedentes, dos quais podemos citar, em Fevereiro de 2007, o então presidente da ANP, do PAIGC, que defendia: «os Deputados são candidatos apresentados pelos partidos políticos para as Eleições Legislativas, declarados Eleitos e cujos Nomes foram publicados no Boletim Oficial».
No Acórdão n.º 1/06 (do Proc. N.º 2/05) do Supremo Tribunal da Justiça estatuía-se que «… uma vez que as eleições legislativas se expressam na escolha de Deputados, ainda que enquadrados mas não absorvidos pelos Partidos Políticos.»
Francisco Benante, defendia pouco depois, no Diário de Notícias de 20 de Março de 2007: «Agora, quem tem de se pronunciar é o Presidente da República», aludindo às regras constitucionais em vigor no país, considerando-as razoavelmente semelhantes às portuguesas.
Noutro precedente, mas desta vez a favor do PAIGC, a mesma agência noticiava, a 22 de Setembro de 2004, que o PUSD expulsara oito deputados, por minarem a disciplina partidária votando o Orçamento ao lado do PAIGC, exigindo a sua substituição nas Comissões, mas nunca colocando em causa o seu mandato.
Ou seja, nunca, na Guiné-Bissau, como hoje, se tinha ofendido tão óbvia e ostensivamente a Constituição, ao ponto de tentar revogar mandatos unipessoais aos deputados. Ao principal artífice de tal habilidade, aplicou-se a lei de Talião, que, em suma, apregoa «Não faças aos outros aquilo que não gostas que te façam a ti».
Havendo necessidade de um esclarecimento sobre a atual situação política, ainda antes de darmos início à nossa argumentação jurídica e análise constitucional, façamos um pequeno resumo de como chegámos a esta situação caótica, de desregulação institucional e de subversão dos mais elementares princípios do Direito ou mesmo do simples bom senso.
Tudo gira em torno daquilo que se passou no dia 18 de Janeiro na Assembleia Nacional Popular (ANP), que passo a tentar resumir: estava reunido o plenário, tendo por ordem de trabalho a «segunda volta» do Programa que deveria ditar o futuro do Governo, que se encontrava presente, estando assim reunidas todas as condições requeridas.
O ex-presidente da ANP transportava um pesado fardo de abuso de autoridade num passado recente, de desrespeito pelo plenário, pelos prazos constitucionais, pelas ordens de trabalho e, em última análise, pelos deputados e deputadas da Nação nominalmente eleitos, na expectativa sempre frustrada de conseguir reunir uma maioria favorável aos seus intentos.
Ao verificar que o Comissário da Polícia da Ordem Pública (POP), José António Marques, cumprira os procedimentos legais, baseando-se no Boletim Oficial, e o resultado seria de novo desfavorável, pela enésima vez, Cipriano Cassamá anunciou a suspensão invocando «falta de condições de segurança». No entanto, nunca a segurança fora tão forte, como nesse último dia do Governo de Carlos Correia, em que até o ex-Primeiro-Ministro foi revistado, para entrar no hemiciclo.
Ora as reuniões da plenária só podem ser interrompidas nos termos do art.º 69.º do Regimento da ANP.
Quanto aos argumentos jurídicos, em defesa da legitimidade do novo Presidente da Mesa da ANP, Alberto Nambeia, julgo que foi sobre os artigos 23.º e 24.º do Regimento, que incidiram as principais críticas, pelo que quero começar precisamente por aí. O Artigo 23.º fala-nos sobre o Mandato do Presidente da ANP. O legislador traduz a configuração assumida pelo Parlamento, pelo que, no caso de alterações substanciais na maioria, é lícito que esta maioria, em democracia, assuma esse mandato em consonância, em nome do povo.
E o Artigo 24.º prevê a Substituição do Presidente da ANP. O ex-presidente deu FALTA DE COMPARÊNCIA (pois a sessão parlamentar fora suspensa e não encerrada, como o próprio defendeu posteriormente), e viu-se IMPEDIDO de continuar, embora estivesse presente nas instalações da ANP.
O ex-presidente da ANP reuniu assim cumulativamente as condições de faltoso e de impedido. Verificando-se o QUÓRUM (art.º 60.º do Regimento) suficiente para permitir deliberar. Em consequência, nos termos constitucionais e regimentares, o colectivo parlamentar validou o segundo Vice-Presidente, conforme estipulado no primeiro ponto desse artigo 24.º, para dar provimento à substituição do ex-Presidente, considerado indigno para o exercício do cargo, após recorrentes e grosseiras violações do Regimento e do respeito devido à dignidade da instituição.
Em síntese, o PAIGC praticou uma série de atropelos e deslealdades, recorrendo à sua máquina de manipulação, protelando indefinidamente qualquer solução que lhe fosse desfavorável, abusando dos mais absurdos subterfúgios legais para subverter a Constituição e as regras regimentais da ANP.
Perante a sucessão de inúmeros pequenos golpes na legalidade, a paciência esgotou-se. A Assembleia Nacional Popular é o órgão competente por excelência para dirimir esta alegada crise, como recentemente se resolveu em Portugal, porque tem mecanismos próprios à luz do Regimento e da Constituição da República, porque se deve evitar a judicialização dos atos políticos. Os problemas políticos devem ser resolvidos politicamente.
O Governo de Carlos Correia caiu no momento em que abandonou o Parlamento e cabe agora ao Presidente da República convidar o PRS para propor uma solução política.
O ex-Governo não tem condições políticas para continuar a reunir em Conselho de Ministros, ou sequer a invocar a qualidade de governantes. Entre os casos feridos de ilegitimidade, está a exoneração apressada e arbitrária, na Segunda-Feira passada, do Comissário da POP, a qual deve ser, para todos os efeitos, considerada nula e inexistente.
Quanto aos deputados do PAIGC, deverão voltar aos seus lugares, sob pena de perda de mandato, essa sim, justificada, por absentismo. Ou seja, da desagregação da antiga maioria saída das últimas eleições de 2014 resultou uma nova maioria, que devemos acreditar empenhada na estabilidade político-governativa do País, coisa que o PAIGC já demonstrou ser incapaz de oferecer, apesar de ter reunido todas as condições para tal.
Na lógica da doutrina constitucional do nosso sistema parlamentar, os governos formam-se com a base em maiorias que possam garantir a governabilidade, e não forçosamente nas maiorias saídas das urnas, como aliás recentemente se verificou em Portugal, e se está a desenhar em Espanha, para não falar do caso do Luxemburgo.
Há que fazer uma leitura dinâmica e atual dos factos, e não estática. À luz da nossa Constituição semipresidencialista, o Governo emana e responde politicamente perante o parlamento, considerado o centro da vida política (art.º 103.º).
Há vários precedentes, dos quais podemos citar, em Fevereiro de 2007, o então presidente da ANP, do PAIGC, que defendia: «os Deputados são candidatos apresentados pelos partidos políticos para as Eleições Legislativas, declarados Eleitos e cujos Nomes foram publicados no Boletim Oficial».
No Acórdão n.º 1/06 (do Proc. N.º 2/05) do Supremo Tribunal da Justiça estatuía-se que «… uma vez que as eleições legislativas se expressam na escolha de Deputados, ainda que enquadrados mas não absorvidos pelos Partidos Políticos.»
Francisco Benante, defendia pouco depois, no Diário de Notícias de 20 de Março de 2007: «Agora, quem tem de se pronunciar é o Presidente da República», aludindo às regras constitucionais em vigor no país, considerando-as razoavelmente semelhantes às portuguesas.
Noutro precedente, mas desta vez a favor do PAIGC, a mesma agência noticiava, a 22 de Setembro de 2004, que o PUSD expulsara oito deputados, por minarem a disciplina partidária votando o Orçamento ao lado do PAIGC, exigindo a sua substituição nas Comissões, mas nunca colocando em causa o seu mandato.
Ou seja, nunca, na Guiné-Bissau, como hoje, se tinha ofendido tão óbvia e ostensivamente a Constituição, ao ponto de tentar revogar mandatos unipessoais aos deputados. Ao principal artífice de tal habilidade, aplicou-se a lei de Talião, que, em suma, apregoa «Não faças aos outros aquilo que não gostas que te façam a ti».
Carmelita Pires
(Ex-Ministra da Justiça)