Fonte: gbissau.com
“No passado, bateram palmas aos fuzilamentos acordados por um tribunal militar; hoje batem palmas à expulsão de camaradas decidida por acórdão de um tribunal partidário; ontem, ficaram todos caladinhos perante assassinatos de camaradas em nome (sempre) de uma estabilidade perversa. A nossa memória é mesmo muito curta” – Fernando Delfim da Silva
Diário de Bissau: O que pensa desta crise que grassa no PAIGC?
Fernando Delfim da Silva: É mais uma desgraça política que se está a configurar. Só falta saber a dimensão das suas consequências – dentro e fora do PAIGC. Mas para quem realmente viveu a história do PAIGC, esta crise é apenas “mais uma” crise, mas não no sentido fraco do termo, como se fosse uma pequena constipação que “juridicamente” se vai curar, voltando tudo à normalidade como se, antes, nada tivesse acontecido. É mais uma crise, sim, mas não é propriamente uma crise passageira. Ela é cumulativa.
DB: Mas centremos a questão: que acha do Programa do Governo de Carlos Correia?
Fernando Delfim da Silva: Sim, tem razão. Vamos ao essencial. Na verdade não é a questão do programa que está em cima da mesa, aliás, isso nunca esteve em discussão. O programa do Governo é um véu que ninguém parece querer destapar com receio de ir ao cerne da questão, ao verdadeiro problema que é politico, ideológico e não propriamente programático.
Do meu ponto de vista, o que está em cima da mesa é o modelo de governo (a “inclusão” e a sua extensão) associado ao perfil ético que alguns pretendem dar ao Executivo, o que, bem entendido, não significa discutir a moralidade de cada membro do Governo. Não é isso. É, para os críticos, um problema de autenticidade da inclusão politica, de uma inclusão calibrada nas suas várias dimensões constitutivas. Com mais ou menos razão é isto que está em cima da mesa, não o programa. Até os cegos já viram isso.
“O PAIGC perde grande parte do seu tempo a discutir apenas estabilidade, sem discutir a sua própria unidade”.
DB: Não será um problema de disciplina?
Fernando Delfim da Silva: Seria apenas um problema de disciplina se ainda estivéssemos na era do centralismo democrático. Mas falemos a sério: considerar que o problema que está a agitar o PAIGC é apenas um problema disciplinar para o Conselho de Jurisdição do PAIGC resolver por via da repressão, do “saneamento”, de afastar do PAIGC os que são considerados “lixo”, parece-me ser uma visão demasiado técnica, muito simplista. Nem é um problema da ANP e menos ainda é um problema do Supremo Tribunal da Justiça. Dito isto, considero o rumo (disciplinar-repressivo-eliminatório) que as coisas tomaram como uma via completamente errada, imprudente, perigosa.
DB: Mas como sair desta situação?
Fernando Delfim da Silva: Tirar o PAIGC desta crise é, em primeiro lugar, um teste para o seu líder e para o primeiro-ministro. Os “quinze” estão dentro da crise, é certo. Mas o líder do PAIGC e o primeiro-ministro não podem fazer de conta que tudo o que está a acontecer nada tem a ver com eles. Que é um problema apenas dos outros, dos maus da fita. Eles também estão “dentro” da crise. E, postas assim as coisas, só resta saber se se mantêm apenas como partes da crise ou se se tornam partes muito mais ativas da sua solução. Não sei se há ainda margem de manobra suficiente para tirar o barco da lama onde se atolou. Mas é muito pior se não se tentar sair do pântano.
“O verdadeiro problema [do PAIGC] é politico, ideológico e não propriamente programático”.
DB: Pode precisar melhor a sua tese?
Fernando Delfim da Silva: Eu pensei – na semana anterior – que uma das vias seria um retorno ao statu quo ante seguido de uma abertura governamental à uma inclusão feita a três. Que teria, com certeza, o seu preço, como qualquer outra estratégia de compromisso também teria. Mas hoje – passado uma semana – reconheço que ficou mais difícil recuar do ponto de não-retorno a que parece ter-se chegado. Mas é preciso tentar.
A metodologia a seguir seria mais ou menos esta: as expulsões seriam levantadas, condição para se regressar ao diálogo interno sem exclusões. Aliás quando se acordou uma moratória parlamentar – adiando por mais uma semana a data da segunda apresentação do programa do Governo – era, do meu ponto de vista, para dissolver tensões, conciliar, integrar, e nunca para expulsar.
“O verdadeiro problema [do PAIGC] é politico, ideológico e não propriamente programático”.
“Saindo Carlos Correia pelo seu próprio pé, o nível de tensão política cairia rápida e significativamente, e essa alteração positiva do clima político daria um incentivo aos protagonistas para explorarem sincera e empenhadamente a via do diálogo”.
DB: E o preço desse statu quo ante?
Fernando Delfim da Silva: O preço a consentir seria o primeiro-ministro sair pelo seu próprio pé, apresentando um pedido de demissão ao Presidente da República. Só um sentido extremo de dever (de obediência partidária) pode explicar a surpreendente aceitação do cargo de primeiro-ministro por parte do eng. Carlos Correia, num período tão conturbado para o qual visivelmente ele não está suficientemente preparado.
Um primeiro-vice-presidente para se ocupar exclusivamente do funcionamento do partido, aliás, compatível com a recuperação do conteúdo (não da forma) de um dos modelos apresentados no Congresso de Cacheu, era o melhor que se podia dar ao eng. Carlos Correia (e que, segundo opinião corrente, ele manifestamente queria para si: ocupar-se apenas do partido). Agora a conversão estatutária do eng. Carlos Correia num candidato a primeiro-ministro (em vez de gestor do PAIGC) – uma conversão que só “foi útil” como instrumento para reverter a posição inicial do Presidente da República, que então nomeou Baciro Djá -, é algo (essa sua conversão a primeiro-ministro) que eu não esperava ver acontecer.
Saindo pelo seu próprio pé, o eng. Carlos Correia contribuiria para abrir um espaço de diálogo interno no PAIGC e provavelmente, com a sua ausência, também contribuiria para a abertura de um canal de diálogo fluido e construtivo com o Presidente da República.
“[Carlos Correia] como um protagonista (primeiro-ministro) não está a protagonizar rigorosamente nada”.
DB: Isso parece óbvio. E porque se abandonou essa via?
Fernando Delfim da Silva: Realmente pareceu-me estranho ver o rumo que as coisas tomaram, e mais estranho ainda foi ver o eng. Carlos Correia a não bater com a porta. Tirando a experiência sui generis de Francisco Mendes, Carlos Correia foi o único primeiro-ministro que durou no seu posto quatro anos, de 1990 a 1994. Esteve à frente de um Executivo que passou durante três anos consecutivos aos testes do FMI, que colocou o país na rampa do perdão da dívida (tornando-o elegível a receber os benefícios de uma politica destinada aos “países pobres altamente endividados”), e, por conseguinte, que preparou o país para vencer – como a seguir venceria, no governo seguinte que ele já não presidiu – as reservas iniciais que foram postas à nossa adesão à UMOA (FCFA). Carlos Correia, na altura, andava à volta dos sessenta anos. Eu sei do que estou a falar, e sei muto bem de quem estou a falar – de uma pessoa que respeito -, e, a propósito disso, nem preciso de abundar em adjetivos. O que não me impede de – construtivamente e com todo o respeito – defender a sua retirada. Porque ele como um protagonista (primeiro-ministro) não está a protagonizar rigorosamente nada.
Resumido. Neste período – 2015-2016 – lançar o eng. Carlos Correia a primeiro-ministro não foi, do meu ponto de vista, uma boa opção. E mais: foi uma grande surpresa o facto de ele ter aceitado tal indicação partidária, de não ter conseguido reformular o seu próprio imperativo deontológico…
“O líder do PAIGC e o primeiro-ministro não podem fazer de conta que tudo o que está a acontecer nada tem a ver com eles”.
DB: Acha que esse seria o preço a pagar para o programa passar?
Fernando Delfim da Silva: Não sei se o programa passaria logo. Também não sei o que, a este propósito, estará a pensar o Presidente da República, uma vez que ele certamente está a ponderar as opções que lhe são disponíveis. Ainda assim, creio que, saindo Carlos Correia pelo seu próprio pé, o nível de tensão política cairia rápida e significativamente, e essa alteração positiva do clima político daria um incentivo aos protagonistas para explorarem sincera e empenhadamente a via do diálogo.
“O mais “famoso” organismo do PAIGC é esse seu Conselho de Jurisdição Nacional. Não a Escola do Partido”.
DB: Pode este recuo ser prejudicial à estabilidade do partido e mesmo do governo?
Fernando Delfim da Silva: O PAIGC perde grande parte do seu tempo a discutir apenas estabilidade, sem discutir a sua própria unidade. Repare-se que a estabilidade comporta uma base política e uma base ética que precisam de ser expostas, dialogadas, assumidas. E, de facto, a estabilidade fica minada pela base quando se compreende mal a politica que o partido leva a cabo; quando se percebe mal a base ética dos certos comportamentos; quando certas escolhas são consideradas incompreensíveis ou mesmo chocantes. Quando isso começa a acontecer, então, o poder que se pretende estabilizar entra em choque com a legitimidade que precisa para ter consistência.
O ponto é que, nos últimos anos, conseguiram reduzir a questão da estabilidade politica à uma mera questão técnica, funcional, à exigência de submissão (ao chefe) vigiada pelo Conselho de Jurisdição Nacional. É por isso que o mais “famoso” organismo do PAIGC é esse seu Conselho de Jurisdição Nacional. Não a Escola do Partido.
Só darei um exemplo, muito recuado, evitando entrar em casos sangrentos mais recentes, de estabilização politica perversa.
Em 1986, mataram Paulo Correia e mataram vários outros camaradas nossos, em nome da estabilidade politica, lembram-se? Sem que tivessem cometido um único crime. Na altura, todos gritavam e batiam palmas: “mata e esfola”. E quando um tribunal pediu a pena de morte para os principais acusados, todos aplaudiram as execuções. Só duas ou três vozes – só duas ou três pessoas em toda a direção do PAIGC – timidamente pediram, aliás, em vão: “não façam isso”! Mataram para garantir estabilidade política, sem nenhum crime que justificasse um tal desfecho. Até hoje estamos a pagar por isso.
Foi quando começou a cheirar dinheiro dentro do partido, naquele tempo de negócios, quando todos exigiam ao Chefe que garantisse a “estabilidade”. Porque o “país estabilizado” – dizia-se então – iria brevemente “arrancar” para o desenvolvimento! Tudo falso. Foi uma estabilidade mais para se safar, do que para safar a Guiné-Bissau. Uma estabilidade perversa, sem legitimidade. Enfim, no passado, bateram palmas aos fuzilamentos acordados por um tribunal militar; hoje batem palmas à expulsão de camaradas decidida por acórdão de um tribunal partidário; ontem, ficaram todos caladinhos perante assassinatos de camaradas em nome (sempre) de uma estabilidade perversa. A nossa memória é mesmo muito curta.
DB: E como encara a hipótese da dissolução da ANP?
Fernando Delfim da Silva: Também é uma opção, que eu não defendo. É uma hipótese a não excluir, mas que não entra na minha proposta de regresso a um status quo ante dialógico. Isso de “correr” para novas eleições, a meu ver, é uma fuga para a frente que não resolve o problema de unidade do partido, pode até agravá-lo. Mas para quem acha que as eleições constituem um bom caminho para reforçar e estabilizar o seu poder (mesmo à custa da unidade do partido), essa alternativa de eleições antecipadas tem realmente os seus atrativos.
20 de Janeiro de 2016