quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Brasil. Zica. OS MÉDICOS NUNCA VIRAM NADA ASSIM. "HÁ UMA GERAÇÃO COMPROMETIDA"


Crianças com cabeças demasiado pequenas, mães assustadas e médicos em choque. Foi em Pernambuco que a epidemia brasileira de vírus zika começou e os dois médicos que detetaram a ligação à malformação neurológica falam ao Expresso sobre a infeção que está a alarmar o mundo. “Eu tenho 44 anos de experiência médica e já vi muita coisa: poliomielite, cólera, o vírus da gripe (H1N1), surtos de difteria e de sarampo. Mas nunca tinha visto nada como agora e nem com estas consequências”, dizem. “No início, as mães ainda acreditam que a cabecinha do bebé vai crescer, que a criança irá ficar normal. E somos nós que temos de explicar que não será assim”
Cristiana Martins – Expresso, IN PG
Crianças com o perímetro cefálico inferior a 32 centímetros começaram a nascer no Hospital Universitário Oswaldo Cruz, em Recife, a meio do ano passado. Eram demasiados bebés com cabeças anormalmente pequenas. Noutro ponto da cidade, no Instituto Materno Infantil, num único dia foram internadas 17 crianças com a malformação. Os neurologistas não compreendiam o que se passava e pediram ajuda. A Carlos Brito, como investigador de doenças infecciosas, e a Maria Ângela Rocha, como pediatra. Não foi fácil convencer as autoridades da ligação ao vírus zika, contam agora em conversas telefónicas com o Expresso.
Com 67 anos e 20 como coordenadora do Serviço de Infeções Congénitas daquela unidade hospitalar, Maria Ângela Rocha é a médica que tem lidado com mais casos de microcefalia. Fala de um só ímpeto. Está cansada e preocupada e diz que o choque está longe de terminar. A médica acompanhou a epidemia desde o início, no estado de Pernambuco, o mais afetado pela epidemia, e conta na primeira pessoa o que encontrou:
“Para nós, tudo começou no finalzinho de agosto e começo de setembro. Começaram a chegar três, quatro casos de bebés com microcefalia por dia, encaminhados pelos neurologistas. Antes, passávamos meses sem ver um único caso. No dia 27 de outubro, notificámos o Governo do estado de Pernambuco e o Ministério da Saúde para a gravidade da situação.
O nosso ambulatório já estava lotado e agora está superlotado. As crianças vêm encaminhadas pelos pediatras, mas também há muita procura espontânea de mães assustadas. Neste momento, temos 300 casos de microcefalia no hospital.
Estas crianças têm uma infeção, que provoca um processo inflamatório que deixa cicatrizes no cérebro. São calcificações, que podem ser maiores ou menores e estar em vários lugares do órgão. As áreas onde estão ficam como que mortas e o cérebro não consegue crescer bem.
O desenvolvimento das crianças vai depender de como o cérebro foi atingido. Mas vão sempre precisar de acompanhamento de um neurologista para toda a vida. Aquelas que tiverem sequelas mais importantes podem ter convulsões e vão precisar de medicação específica. Algumas poderão não falar, não andar e ter todo o desenvolvimento psicomotor alterado. A estimulação precoce será determinante e será necessário o acompanhamento do neurologista, mas também de um fisioterapeuta e de um terapeuta da fala.
Eu tenho 44 anos de experiência médica e já vi muita coisa: poliomielite, cólera, o vírus da gripe (H1N1), surtos de difteria e de sarampo. Mas nunca tinha visto nada como agora e nem com estas consequências.
No início, as mães ainda acreditam que a cabecinha do bebé vai crescer, que a criança irá ficar normal. E somos nós que temos de explicar que não será assim e que, na hora em que o cérebro for solicitado, as limitações irão surgir. Temos que explicar que a criança vai precisar de cuidados especiais, que será dependente e que pode viver pouco tempo, mas também pode viver muito, chegar aos 30 anos. Tudo isso causa muito stress à equipa médica.
Estou muito impressionada. Até hoje, não havia nada na literatura médica mundial que fizesse a ligação entre o vírus zika e a microcefalia. É algo absolutamente inédito para nós. E não podemos dizer que a situação não irá piorar. Ainda virá o tempo das chuvas, quando os mosquitos se reproduzem mais.
Este é um problema emocional muito grave. E também é um problema económico muito sério para a saúde pública. Temos de criar uma estrutura de atendimento que ainda não existe. As grávidas estão em pânico. Estamos a nos organizar para atender as pessoas, sobretudo do interior, mas este é um esforço de longo prazo. É toda uma geração que fica comprometida. É triste ver tantas crianças nascerem já com os cérebros lesados porque estas pessoas terão uma inclusão muito difícil na sociedade”.
Foi em outubro que Carlos Brito, 47 anos, médico, professor da Universidade de Pernambuco e membro do comité técnico do Ministério da Saúde para a estudos sobre doenças infecciosas transmitidas por mosquitos, foi chamado por uma neurologista do Instituto Materno Infantil, em Recife, para avaliar uma situação atípica, caracterizada pelo elevado número de recém-nascidos com microcefalia. Num único mês, 58 casos tinham sido registados em diferentes cidades do estado de Pernambuco, o primeiro do Brasil a registar a infeção por vírus zika.
Num único dia, a médica internara 17 crianças com microcefalia, três vezes mais do que o número verificado nos cinco anos anteriores. A dimensão causou espanto e chamou a atenção por ser bastante mais elevada do que a média registada anualmente pelo Sistema Nacional de Recém-Nascidos brasileiro: cinco casos em 2011, nove em 2012, dez em 2010, 12 em 2014. Pernambuco lidera o número de notificações de microcefalia. Até agora, estão identificados 1.185 casos, o que representa 37,33% do total registado em todo o Brasil. Mas, em dezembro, o estado era responsável por 100% das notificações no país.
“Reunimos cerca de 70 mães numa mesma sala para entrevistá-las e percebemos que ali havia um padrão”, explica Carlos Brito. O surgimento de muitos casos, simultaneamente em várias cidades, indiciava uma doença de rápida dispersão, provavelmente transmitida por insetos, deixando para trás a possibilidade de a causa ser toxoplasmose ou citomegalovírus, causadores habituais de microcefalia, mas cujas formas de contágio seriam distintas.
Também as características dos próprios casos de microcefalia revelavam uma situação compatível com infeções congénitas e a maior parte das mães (70%) dos bebés com malformações neurológicas tinham elas mesmas apresentado sintomas de infeção pelo zika durante o primeiro trimestre da gravidez, ou seja, marcas vermelhas na pele, dores corporais ou febre baixa. Além disso, o zika é considerado um vírus com maior tendência a atacar o sistema nervoso central do que outros da mesma família, como o dengue ou o chicungunha, doenças também transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti.
Assim, foi com base nestes sinais que Carlos Brito relacionou o zika com a microcefalia e este percurso já mereceu, inclusive, a publicação na “Acta Médica Portuguesa”, com o título “Vírus Zika: Um Novo Capítulo na História da Medicina”. Mas não foi fácil convencer as autoridades de saúde de Pernambuco. A primeira reação foi de descrença: “Compreendo, porque o zika está a mudar uma série de paradigmas”. Mas, 25 dias após o início da investigação, o ministro da Saúde brasileiro decretou o estado de emergência.
A confirmação da ligação entre o zika e a microcefalia veio quando o vírus foi encontrado no líquido amniótico de uma mulher no quinto mês de gravidez, cujo bebé revelava sinais da malformação neurológica e quando um virulogista detetou a presença do zika no sangue de dois nado-mortos com microcefalia. No fim de outubro, a Organização Mundial de Saúde foi avisada do surto de microcefalia.
O médico que juntou as peças deste quebra-cabeças já teve dengue hemorrágica e aprendeu a ser disciplinado: “Só ando de mangas compridas e aplico regularmente repelente. Não é 100% eficaz, mas é uma forma de prevenir a picada do mosquito. Mas, infelizmente, vivemos uma situação de grande insegurança.” Esta quarta-feira Carlos Brito estará em Brasília para discutir diretivas aplicáveis aos países da América Latina sobre o zika e já foi convidado para falar sobre o tema em Washington, mas foi impedido de o fazer pelo grande nevão do último fim de semana.
Em dezembro, eram mais de quatro mil os casos de microcefalia em investigação pelo Ministério da Saúde no Brasil. Outras patologias continuaram a ser encontradas nos recém-nascidos, como problemas ósseos e musculares ou alterações auditivas e visuais e mais de 1,5 milhões de pessoas já terão sido infetadas em todo o país. A Organização Mundial de Saúde lançou dois alertas globais e El Salvador aconselhou as mulheres a não engravidarem durante dois anos. O pânico espalhou-se. E ainda faltam seis meses para começar os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.

Na foto: Larvas do mosquito aedes aegyti, que transmite o vírus. Juan Carlos Ulate / Reuters