terça-feira, 21 de junho de 2016

DOS AVISOS DA UNIÃO AFRICANA AO SURGIMENTO DO “PAULO PORTAS GUINEENSE”


Distintos leitores, desta vez, não trago chanfanas, nem churrascos, nem touradas, porque parece que algumas pessoas comeram tanto que conseguiram resistir durante 15 dias barricadas.

O post de hoje é um pouco extenso, com diversos tópicos relevantes da actualidade da Guiné-Bissau. Na primeira parte, falo sobre os avisos da União Africana «UA» ao Presidente da República «PR» José Mário Vaz «Jomav». Na segunda parte, sobre o relatório relativo à justiça guineense da relatora para as Nações Unidas «NU» Mónica Pinto. Na terceira parte, abordo as declarações do embaixador dos EUA na Guiné-Bissau sobre as relações entre os dois países. Na quarta parte, louvo a criação de uma Associação dos filhos de antigos combatentes guineenses que lutaram por Portugal na Guerra Colonial (Comandos Africanos) na Guiné-Bissau. Na quinta parte, faço uma análise sobre a criação de um novo partido político na Guiné-Bissau. Na sexta parte, toco na questão da rescisão de contratos entre o Governo e os bancos comerciais. Finalmente, na sétima parte, apresento Botche Candé como o “Paulo Portas guineense”, pela sua irrevogável declaração de que não tomaria posse neste Governo.

Primeira parte. A União Africana «UA» pediu ao PR da Guiné-Bissau que promova o respeito pela Constituição como uma das medidas para resolver a prolongada crise política no país, apelando também aos actores sociais para que coloquem “os melhores interesses do país acima de quaisquer considerações pessoais ou partidárias". A UA lamentou que, apesar de inúmeros esforços de mediação da comunidade internacional, as divergências se tenham aprofundado, em particular entre o PR e a liderança do PAIGC. O comunicado da UA avisou ainda que a Guiné-Bissau se arrisca a perder os mil milhões de euros prometidos por doadores em 2015 (Voz da América, 16-06-2016).

Estas declarações da UA parecem ser só “para inglês ver”, ou seja, sabendo que a UA é claramente pró-Jomav, estas afirmações têm como objectivo causar agitação e “alergia” na ala pró-Domingos Simões Pereira «DSP». Se a UA quisesse mesmo ajudar, teria tido um peso forte ao longo da crise na Guiné-Bissau – e não emitiria apenas pareceres e recomendações, enviando emissários que em nada contribuem para a resolução do problema. Até porque o financiamento principal não provém da UA, pelo que estas "ameaças" não passam de palavras vazias de "corta-fitas". Aconselho os responsáveis guineenses a dar mais atenção, por exemplo, ao trabalho que está a ser feito pela Comissão para a Conferência Nacional de Reconciliação, liderada pelo Padre Domingos Fonseca, e às posições assumidas por Filomena Mascarenhas Tipote, enquanto representante da Voz di Paz (RDP África, 23-05-2016). O Governo poderá e deverá trabalhar em parceria com estes agentes para evitar eventuais erros que possam minar a credibilidade país.

Segunda parte. Segundo a argentina Mónica Pinto, relatora independente para as Nações Unidas, a situação do sector da justiça na Guiné-Bissau é assustadora e reformá-lo é uma tarefa monumental. Segundo a relatora, "Apesar das descobertas assustadoras, parece que o sistema de justiça tem tido dificuldades em obter a atenção das autoridades" com vista à reforma necessária. Embora a tarefa seja monumental, há "uma nova geração de profissionais dispostos e capazes de melhorar" o sector, acrescenta. O relatório inclui 37 recomendações importantes que abrangem várias áreas, desde a investigação criminal à instrução de processos (Sapo Notícias, 15-06-2016).

Este relatório baseia-se numa visita da relatora à Guiné-Bissau em Outubro de 2015, pelo que será legítimo questionar a sua actualidade, pondo em causa a análise do contexto realizada. Há prazeres que devem ser servidos quentes, e este relatório já está completamente frio. Contudo, tenho de reconhecer que os conteúdos deste relatório parecem assentar nos problemas reais, que já tinham sido identificados pelo intelectual guineense Basílio Sanca. O Bastonário da Ordem dos Advogados da Guiné-Bissau defende uma «reforma integral a nível nacional na área da justiça» e da advocacia. Basílio Sanca reconhece a existência da corrupção na Guiné-Bissau, em especial no campo da justiça, afirmando que esta se deve essencialmente ao “Sistema”, que está mal montado e deve ser revisto porque não corresponde à realidade do país (Rádio Sol Mansi, 08-02-2016).

Terceira parte. O embaixador dos EUA na Guiné-Bissau, James Peter, declarou que os EUA continuam determinados em apoiar a Guiné-Bissau no seu processo de desenvolvimento, apesar da crise política vigente no país. O diplomata elogiou o papel do Supremo Tribunal de Justiça «STJ» no actual processo da crise política e destacou que em qualquer sistema político a existência de instituições judiciais e judiciárias fortes e independentes são cruciais para a estabilidade democrática. Segundo o embaixador, os EUA não se posicionam a favor de um partido A ou B e continuarão a apoiar os esforços dos oficiais das Forças Armadas através de criação de novas parcerias na capacitação e na profissionalização dos militares” (Rádio Sol Mansi, 09-06-2016).
      Finalmente, depois dos meus múltiplos “ataques” aos EUA (por exemplo, neste post e também neste e neste), o embaixador decidiu prestar declarações apaziguadoras. Não pretendo acusar directamente os EUA – o que pretendo é que haja uma política equilibrada em termos de cooperação. Os EUA estão, aliás, contemplados na minha proposta de mudança, como uma das principais potências com preferência para instalar uma base militar numa das ilhas da Guiné-Bissau (além do Alemanha, Reino Unido, Rússia, etc.).

Quarta parte. Foi legalizada a Associação de viúvas e filhos de ex-combatentes guineenses que lutaram por Portugal na Guerra Colonial na Guiné-Bissau. Elogio esta iniciativa, mas sugiro que incluam também nesta associação outras vítimas daquele conflito como, por exemplo, filhos dos antigos funcionários da Administração Colonial, ou dos régulos que foram perseguidos por apoiarem Portugal. Este tipo de movimentos pode contribuir para uma maior solidariedade e coesão, favorecendo a reconciliação que tenho vindo também a defender. Tanto o Estado português como o Estado guineense devem cumprir as suas obrigações para com as famílias das vítimas deste conflito (incluindo os soldados), para que não haja desequilíbrios entre os filhos dos antigos combatentes do PAIGC e os filhos dos antigos Comandos Africanos e outros aliados de Portugal. Todas estas propostas estão bem detalhadas no meu livro e também na minha dissertação de Mestrado (Mendes,2010: 97).
Quinta parte. O Supremo Tribunal de Justiça da Guiné-Bissau aprovou o processo de legalização do Partido para a Justiça, Reconciliação e Trabalho – Plataforma das Forcas Democráticas (PJRT-FD). O PJRT-FD é liderado por Malam Nanco, empresário guineense, atualmente presidente da associação comercial do país (Sapo Notícias, 14-06-2016). Com a legalização do PJRT-FD, de acordo com o meu estudo, a Guiné-Bissau passa a contar com 42 partidos políticos legalizados, para um universo eleitoral de cerca de 700 mil eleitores, num país com 1,5 milhões de habitantes (Mendes, 2015: 382, 440).

Verifica-se claramente que esta multiplicidade excessiva de partidos políticos não é a solução ideal para a Democracia. Qual será então? Segundo o cientista político britânico Anthony Giddens (2006), o grande envolvimento dos cidadãos na política está mais relacionado com o associativismo do que com o facto de ter uma filiação partidária. Sendo para isso necessário apostar na sociedade civil que inclui a família e outras instituições de natureza não económica. A sociedade civil é um fórum onde as atitudes democráticas, incluindo a tolerância, têm de ser cultivadas (Giddens, 2006: 76-77; Rudebeck, 1997: 44-47; Teixeira, 2008). Seria importante que a democratização da democracia dependesse também do fomento de uma profunda cultura cívica. Para que isso aconteça é imperativo investir na educação para depois trabalhar a mudança de mentalidades. A aposta na sociedade civil é um dos potenciais para o desenvolvimento do país, pois expressa o verdadeiro sintoma dos cidadãos numa democracia que não está fortemente estruturada (Mendes, 2010: 79).

No meu livro, defendi que, rigorosamente, não existem partidos políticos na Guiné-Bissau, do ponto de vista dos pressupostos da Ciência Política pura e dura. Neste sentido, apresentei uma proposta que se enquadra na “lipoaspiração”/emagrecimento partidária, em que a Guiné-Bissau terá dois partidos principais para concorrer às eleições legislativas e presidenciais. Um terceiro partido servirá de pêndulo da balança, isto é, para evitar aquilo que designo por “excesso de velocidade governativa” ou de “velocidade excessiva da governação”. Este terceiro partido – Governo de Manutenção e Coordenação -  entrará em funções para substituir os órgãos superiores do Aparelho do Poder do Estado – PR, Primeiro-Ministro «PM», Governo, Assembleia Nacional Popular «ANP», Ministros, Secretários de Estado, Procurador-Geral da República «PGR», STJ, Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas «CEMGFA», etc., – que tenham terminado o seu mandato, impedindo estes órgãos de continuar a ocupar, manter e exercer o cargo/Poder até ao empossamento dos novos corpos do Aparelho do Poder do Estado recém-eleitos[1].

A existência de muitos partidos políticos na Guiné-Bissau não põe em causa a existência dos dois/três pilares partidários que proponho. Isto é, independentemente destes dois/três pilares partidários, que têm o direito de concorrer às eleições primárias para a escolha dos seus candidatos nas eleições presidenciais, legislativas, etc., os restantes partidos políticos guineenses poderão, em função dos seus estatutos ou ideologias, associar-se a um dos dois pilares ou investir numa acção mais focada a nível local ou regional.

Sexta parte. O Conselho de Ministros da Guiné-Bissau decidiu rescindir o acordo com os bancos comerciais privados a operar no país, que tinha assinado pelo Governo anterior, do PM Carlos Correia (RDP África, 20-06-2016).
Os detalhes desta notícia ainda não foram divulgados, mas recomendo que esta seja uma decisão bem estudada e ponderada. O peso dos bancos na economia é indiscutível, tanto positiva como negativamente, pelo que decisões deste tipo têm sempre grandes repercussões. Chamo apenas para uma questão importante: substituir alguém não é sinónimo de invalidar tudo o que essa pessoa tinha feito antes de nós. É necessário descartar os aspectos negativos e aceitar os aspectos positivos, assumindo um compromisso entre as ideias pessoais e a prossecução do interesse público. A concertação entre o actual e os anteriores Governos, além de todas as partes interessadas, é fundamental para concretizar estes objectivos. Neste sentido, este assunto poderá merecer um debate público dos prós & contras, nos órgãos de comunicação social, por parte de especialistas na matéria, para que os guineenses, tanto no país como na diáspora, possam estar bem informados. Esta é uma oportunidade para o Governo do PM Baciro Djá assumir uma postura de honestidade e transparência, conquistando a confiança dos guineenses.

Sétima parte. O PR Jomav conferiu no passado dia 17, posse aos quatro membros do governo em falta no elenco governamental. A equipa empossada inclui o ministro dos Negócios Estrangeiros, da Cooperação Internacional e das Comunidades, o ministro de Estado e do Interior, o Ministro dos Recursos Naturais e o Secretário de Estado do Orçamento e Assuntos Fiscais (O Democrata, 17-06-2016). O cargo de ministro de Estado e do Interior ficou à responsabilidade de Botche Candé, tal como se previa. Anteriormente, Botche Candé disse ter sido convidado para o cargo pelo PR através de telefone, tendo respondido que não podia aceitar antes de consultar o seu partido. Apesar disso, afirmou que jamais trairia o seu partido, o PAIGC (ANG, 03-06-2016). O facto de o PR Jomav e o PM Baciro Djá não desmentirem as alegações de Botche Candé, e de ele ter tomado posse, sugere que Botche Candé foi obrigado a engolir as suas palavras.

Isto leva-me a comparar a atitude de Botche Candé com Paulo Portas, que fez um pedido de demissão do cargo de Ministro de Negócios Estrangeiros, nas suas palavras, “irrevogável”, mas acabou por revogar o que tinha dito, regressando ao Governo com o cargo de Vice-Primeiro Ministro (Jornal de Negócios, 23-07-2013). Na minha opinião, a transformação de Botche Candé no “Paulo Portas guineenese” foi uma estratégia para tentar iludir a ala pró-DSP do PAIGC relativamente à sua colaboração com Jomav. Além disso, esta sua nomeação é um grande paradoxo, já que o próprio PR o tinha demitido anteriormente das mesmas funções. Resta saber por conta de quem está Botche Candé no Governo – pela ala pró-DSP do PAIGC? Pelo PRS? Pelo PR? Se for da parte do PR Jomav, e resistir até às próximas eleições, poderá contribuir para manter o PR, o Governo e o PRS nas suas actuais posições de vantagem. Se estiver por conta da ala pró-DSP, é porque pode virar o jogo ao contrário, acabando por favorecer DSP na sua tentativa de recuperação do Poder. Neste momento, Botche Candé é uma das peças mais importantes do xadrez político guineense (para além do PRS e dos 15 Deputados expulsos/retornados). Jomav poderá estar encurralado, sem se aperceber, como o Rei de Baceâral ficou, depois da Batalha de Kansala – entre a aliança Mandinga (Biafadas, Balantas, etc.) e a aliança Fula (portugueses, cabo-verdianos, etc.).

Para terminar, quero deixar algumas reflexões sobre a actual situação de DSP e da sua ala. Perante o facto, cada vez mais evidente, de que DSP está quase isolado dentro do partido, as opções disponíveis parecem cada vez mais restritas. Questiono-me se não seria uma jogada inteligente se DSP e Carlos Domingos Gomes “apanhassem boleia” [ou barriga de aluguer] de um outro partido para se candidatarem às próximas eleições legislativas e presidenciais, já que o PAIGC parece ter-lhes virado as costas. E é aqui que o papel de Botche Candé se revelará realmente decisivo. Se acontecer algo deste género, a Guiné-Bissau sofrerá uma reviravolta completa na sua organização política.

Resta ver como a situação evoluirá até às eleições.
Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau (pp. 93, 109-116, 144-145, 164, 382, 440, 467, 487, 490-493, 544). Lisboa: Chiado Editora.




[1] Tal como todos os seres animados e inanimados necessitam de um período de descanso ou de intervalo para funcionarem melhor, é assim que a Ciência Política precisa de colmatar uma das grandes lacunas que nenhum sistema de governo, sistema de partido, sistema eleitoral e regime político preencheu ao longo da História.